sábado, 6 de julho de 2024

OS MAIORES DA HISTÓRIA DO FLAMENGO -- Ponteiros/Atacantes: Zagallo, a "Formiguinha"; e Joel

 Certamente você já ouviu o nonsense de que o Flamengo não dá ''sorte'' para a Seleção Brasileira. Nesta série sobre os maiores da História d'O Mais Querido, apresentados por posição e em ordem cronológica, refuto também essa "acusação" dos adversários. Tivemos a primeira dupla de zaga da história do escrete, o primeiro capitão/treinador. O primeiro artilheiro em Copas. Por duas vezes seguidas jogadores do Flamengo se destacaram como os melhores da Copa. Hoje, vamos falar de dois campeões mundiais: os imortais Zagallo e Joel, partícipes da Copa de 1958 [Mundial em que o Flamengo foi o clube que mais forneceu jogadores]. Além disso, esses dois pontas marcaram época no futebol carioca e no Maracanã, tomando parte do Rolo Compressor dos anos 1950, cuja fama se tornou internacional. De quebra, apresento dois textos que escrevi em homenagem a Zagallo e que foram publicados noutros locais.


3) ZAGALLO, A “FORMIGUINHA” [1950/58]


"Não havia dúvidas daquela vez", escreveu Glanville, "de que o melhor time tinha vencido". Feola* disse que a chave para o sucesso tinha sido o papel de Zagallo, oferecendo equilíbrio ao brilhantismo anárquico de Garrincha. Inicialmente um atacante que jogava por dentro, Zagallo se converteu em ponta porque percebeu que era sua única chance de atuar pela seleção, e mostrou-se o jogador ideal para a função de avançar e recuar continuamente pelo lado esquerdo do campo."
Jonathan Wilson sobre a Copa de 1958, "A Pirâmide Invertida"
*Vicente Feola, técnico da seleção



A história de Mário Jorge Lobo Zagallo e de seu famoso número 13 se confundem com boa parte das conquistas da seleção brasileira e da Era de Ouro do nosso futebol. Ele estava plenamente justificado quando dizia ser uma lenda vida, que no mundo todo só uma pessoa era capaz de ostentar quatro Copas do Mundo, ele próprio. Mas a trajetória do Velho Lobo está inextrincavelmente ligada também ao Mais Querido do Brasil, e a camisa preta e encarnada bate fundo no peito desse gênio.


Nascido em Maceió e criado no Rio desde criança, Zagallo vem da elite. Sua família era dona de um fábrica de tecidos. O garoto teve de convencer o pai que não tinha nada demais treinar nas divisões de base do América. Na época, o futebol já tinha perdido o charme burguês e se tornado efetivamente popular, e mais do que popular, um esporte profundamente nacional.


Logo mudou de clube, indo para os juvenis do Flamengo, e então mudou de posição. O meia-esquerda se aproveitou de uma contusão do titular Esquerdinha para tornar sua a ponta.

Habilidoso e disciplinado taticamente – característica que lhe valeu o apelido de “Formiguinha”, já que trabalhava para a equipe --, rapidamente assumiu a titular do famoso ataque que se tornou “dono do Maracanã” e que foi inteiro para a equipe canarinho.


Zagallo não queria sair do Flamengo depois da Copa da Suécia. Mas, dono de seu passe, preferiu ir para o ascendente Botafogo, se tornando parte de uma das maiores equipes do século passado, e na qual se aposentou em 1965.


[Mas a história dele com O Mais Querido não terminou por aí. Foi técnico do clube em três ocasiões, e em todas elas abocanhou algum título. O mais marcante, talvez, o do tricampeonato carioca em 2001, aquele mesmo do gol do Pet, em que se debulhou em lágrimas com um terço e uma imagem de São Judas Tadeu em mãos.]


A relação da Formiguinha com a seleção é tão umbilical que trabalhou como segurança na final da Copa de 1950, vendo toda a tragédia do gramado. Sua estrela o levou à Copa, em 1958, já que Canhoteiro foi cortado por medo de avião, e Pepe sofreu um estiramento muscular. Bicampeão no Chile, foi o pivô da criação do 4-3-3, abandonando a ponta para marcar no meio campo, como em seus tempos iniciais de meia-esquerda.


Depois de aposentado, Zagallo se tornou um técnico de sucesso. Liderou o Brasil em três Mundiais, incluindo a mítica seleção de 1970. Tem também uma final, em 1998, e um quarto lugar, em 1974. Era coordenador da seleção de 1994, tetracampeã do mundo nos EUA. Impossível ser mais vitorioso.


O Velho Lobo nunca admitiria em público, já que tem estátua em sua homenagem em General Severiano. Mas aposto que seu coração é rubro-negro. Suas lágrimas e títulos do Flamengo são genuínas e transcendem a questão profissional. A ida ao Maracanã para ver o time de Jorge Jesus, em 1994, tampouco é fruto de curiosidade em cima do trabalho do português. Ele não diria nunca, mas Zagallo era Mengão.


Como jogador, suas principais conquistas são os Cariocas de 1953/54/55. Como treinador, venceu as Taças Guanabara de 72/73, 84 e 2001, o Torneio do Povo de 1972, os Cariocas de 1972 e 2001, a Taça Sesquicentenário da Independência [1972], e a Copa dos Campeões em 2001.



* Quando do falecimento de Zagallo, no início desse ano, escrevi um texto em sua homenagem, publicado noutros locais, mas que reproduzo no fim dessa postagem. É acompanhado de um segundo texto, também meu, e escrito cinco meses antes do adormecimento do Velho Lobo.


4) JOEL [1951/58; 1961/63]




Um colega de infância do bairro em que moro, e que no início dos anos 1990 treinou por um tempo nos juvenis do Flamengo, me disse certa feita que os treinadores apresentaram os meninos a um velhinho de bengala, dizendo: “Esse é o Seu Joel, e ele colocou o Garrincha no banco”.


O idoso era Joel Antônio Martins, carioca que foi profissionalizado pelo Botafogo em 1948, mas que era rubro-negro de coração e mudou de clube em 1951 – uma das históricas batalhas por atletas entre a Gávea e General Severiano, que tiveram em Leônidas da Silva e William Arão outros capítulos marcantes.


Ponta driblador e com um fantástico cruzamento, Joel deu o toque final no ataque do Rolo Compressor, que se tornaria lendário no Brasil e fora dele, com inúmeras taças conquistadas em torneios internacionais, como o Internacional de Lima, o Troféu Juan Domingo Perón, o Torneio Internacional do Morumbi, o Octogonal da Argentina e outros.


Seus principais feitos, no entanto, são os cariocas de 1953/54/55 e 1963, e o Torneio Rio São Paulo de 1961. Joel é também o 16º jogador que mais defendeu o Manto Sagrado, com mais de 410 partidas pelo rubro-negro; e também o 18º maior artilheiro d’O Mais Querido, com 116 gols.


Chegou à seleção em 1957, e fez parte do elenco que levantou a Copa do Mundo de 1958. Foi titular nas duas primeiras partidas. Afinal, ele deixou mesmo Mané no banco. Depois do Mundial, foi vendido para o Valencia, da Espanha, só retornando ao Flamengo em 1961.


Joel é um dos grandes patrimônios da Gávea, um apaixonado que dizia em entrevistas, “Joguei no Flamengo, que mais posso querer da vida?” __________________________________

Por André Luiz dos Reis

Publicado originalmente em 06 de janeiro de 2024 em Sol da Pátria [clique]

Um ano depois de perder Pelé, o Brasil se despede de Mário Jorge Lobo Zagallo. Espero, sinceramente, que a grande mídia lhe preste em morte todas as devidas homenagens que parte ruidosa dela teimavam em contestar durante a carreira dessa lenda brasileira.

Zagallo foi um gênio. Em campo, foi responsável pelo azeite do escrete de ouro, o mítico time que nos deu o primeiro título mundial. Vicente Feola, técnico da seleção de 1958, declarou que Zagallo foi a verdadeira chave do sucesso da equipe.

Não contente em revolucionar o futebol em campo, o velho Lobo também o fez como técnico. A esquerda sempre tentou retirar os méritos dele em relação à seleção de 1970. Preferia atribuir a montagem da equipe a João Saldanha, comunista de carteirinha. Trata-se de uma das maiores falsidades da história do esporte, uma narrativa abjeta que só podia mesmo sair da pena e da voz de representantes da mídia corporativa do nosso país, uma das mais desonestas que existem.

A verdade é que, enquanto Saldanha buscava jogar num insosso e comum esquema dos anos 1960, e ainda inventava mentiras para tentar tirar Pelé do time titular e quiçá da seleção, Zagallo criou novidades estrondosas cujos desenvolvimentos táticos ainda repercutiam nesse século: transformar volante em zagueiro pra ganhar na saída de bola, pontas que atuavam por dentro como meias, falso nove e o escambau. O resultado foi o recital mais fenomenal, o time mais poderoso, aniquilador, original e belo de que já se teve notícia, ainda mais mais lendário porque as partidas foram transmitidas por TV para países de todos os continentes.

Se a seleção de 1970 consolidou a imagem do futebol brasileiro como a quintessência da genialidade, do improviso, da técnica e da vanguarda, a carreira de Zagallo em clubes não foi menos desprovida de vitórias. Ganhou títulos importantes à frente dos grandes do Rio de Janeiro, e também no exterior, em uma época em que o Brasil exportava treinadores.

E, ainda assim, o mais marcante de sua trajetória talvez não esteja em nada disso. E sim em sua figura nacionalista, agarrada em lágrimas à camisa da seleção ["a amarelinha!", como a chamava], proclamando para os quatro ventos que ela era superior aos céus e à terra. Esse patriotismo inflamado, que desaguava em um dos maiores símbolos populares, a seleção, se abraçava a um misticismo genuinamente nosso. O emotivo Zagallo cultivava a imagem de homem favorecido pela forças do além. Ele era querido pelos deuses, o homem do número 13, da sorte, do imponderável, que comemorava títulos abraçado a figas e a imagens de santos.

Zagallo é como o Brasil: um narciso apaixonado que crê, de modo inabalável, na própria grandeza, no próprio destino, e é competente o suficiente para materializá-lo em conquistas que ele próprio proclama dos telhados com festa, barulho e desafio. O falecimento de Zagallo torna o Brasil um pouco menos brasileiro. _____________________




Por André Luiz dos Reis

Publicado originalmente em 14 de julho de 2023 em Zagallo: ícone vivo da nação brasileira [clique para ler]

Acordo e vejo Zagallo nos topics. Tremo pensando no pior. Mas é só uma horda criticando o velho lobo por ter brigado com o meia Giovanni, que atuou no Santos em meados dos anos 1990.

Cresci ouvindo horrores de Zagallo. A grande mídia o detestava, e muitos populares repetiam os jargões vindos do rádio e TV. Depois dos anos 1990, a moda foi falar mal do Pelé: que Pelé não derrubou a ditadura; que Pelé não acabou com o racismo; que Pelé não reconheceu uma filha;que Pelé não militou a favor dos gays; que Pelé não era socialista como Maradona.


Nelson Rodrigues já tinha identificado esse viés na alma brasileira. O de certa ingratidão, como ele chamou em distante artigo publicado em 1959. Não sei se é bem ingratidão, mais parece uma reação impulsiva do vira-latismo inoculado na nossa mentalidade, e que sempre emerge pra negar mérito aos nossos heróis.


Voltando a Zagallo, diziam que ele era ''retranqueiro''. Foi a imagem que ficou, com o péssimo desempenho da seleção na Copa de 1974, quando marcamos apenas 6 gols em 7 partidas [metade deles na risível seleção do Zaire]. A mídia corporativa [corporativismo em mais de um sentido aqui] gostava de atribuir a seleção de 1970 ao grande parceiro João Saldanha.


Um absurdo completo: quando assumiu a seleção, Zagallo mudou não só a convocação, mas a escalação e, principalmente, o esquema. Saldanha, sim, era biruta: queria barrar Pelé, e pra isso inventou que o Rei do Futebol estava ficando ''cego'', tinha um problema ''de vista''. Não custa dizer que Pelé foi eleito o melhor jogador da Copa de 1970.


Foi Zagallo quem decidiu escalar Wilson Piazza de quarto-zagueiro. Meio século depois, diversos técnicos europeus acharam bonito escalar volantes na zaga pra melhorar a saída de bola. O Lobo também decidiu escalar Jairzinho e Rivelino nas pontas. Praticamente inventou o 'meia-ponta', que não jogava aberto nas extremas, mas caía pro entrelinhas [Jairzinho era ponta de lança de origem, Rivelino era meia armador]. Tostão foi a primeira versão de falso nove da história. Uma criação bastante original, em vez de fazê-lo disputar posição com Pelé, o escalou jogando como pivô na frente da área e caindo para os lados. Tostão era ponta de lança de origem e não tinha corpo algum pra trombar com zagueiros na área. Mas sua posição permitia a entrada em facão de Jairzinho, que acabou marcando gols em todos os jogos da Copa, algo nunca mais igualado. Essa manobra se tornou comum na Europa quarenta anos depois da seleção de 1970.


Quando fez tudo isto, Zagallo já era considerado um gênio, já tinha deixado seu nome na História. Era um ponta esquerda habilidoso mas não especial. O que tinha de singular era a inteligência tática. Ele recuava para acompanhar os meias adversários, e acabava se tornando um terceiro homem de meio campo. Foi sua atuação nos gramados que criou DE FATO o 4-3-3.


Então, anotem aí: Zagallo criou o 4-3-3 como jogador, e criou uma penca de novidades significativas na espetacular seleção de 1970, não por acaso considerada pela maioria dos analistas como a maior já montada.


Mas a mídia corporativa preferia dizer que o cérebro da seleção de 1970 era Gérson, que nunca foi treinador de nada na vida. Ou Saldanha, o ''gênio'' que queria barrar Pelé. Riam de Zagallo quando ele dizia em 1998 estar inventando um novo sistema tático, o 4-3-1-2. Mas é porque não entendiam que era justamente esta a discussão vigente então na Europa, a ressurreição do ponta-de-lança.


Zagallo é o único homem a levantar quatro Copas do Mundo. É um ícone vivo, um monumento da nação, uma glória do país. Sempre foi ufanista, como o povo é ufanista.


Mas estão discutindo sua briga com Giovanni, como se houvesse qualquer comparação possível ou imaginável entre os dois nomes. Giovanni quem?
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Ponteiros/Atacantes:



Meia-Atacantes:








Meia-Armadores:









Volantes:





quinta-feira, 4 de julho de 2024

OS MAIORES DA HISTÓRIA DO FLAMENGO -- Ponteiros/Atacantes: Jarbas, "a Flecha Negra"; e Valido


Os ponteiros a que me refiro nessa seção dizem respeito aos típicos pontas direita e esquerda, que dominam a imaginação do futebol brasileiro desde os anos 1930. Nosso estilo de jogar bola é marcado pelo drible mais do que qualquer outro do mundo. No Maracanã, certos dribles são tão lembrados quanto gols que garantiram campeonatos, alguns até mais.

Mas não é o amor pelo drible que explica a união de ponteiros e ‘Atacantes’ na mesma lista. Há um sentido tático nessa escolha, conforme adiantei quando falei sobre Pontas de Lança. Nos anos 1970, o Brasil começou a assimilar duas revoluções europeias. A primeira é o advento do futebol-força na Copa de 1966, com uma ênfase maior na preparação física. A segunda, foi o futebol compacto nascido do trabalho do técnico italiano Arrigo Sacchi, que deu sua própria versão para o impacto produzido no mundo pelo futebol-total da “Laranja Mecânica” holandesa liderada por Johann Cruyff.

Resumindo, houve uma multiplicação de “volantes” no meio campo, e os meias ganharam cada vez mais funções defensivas. O 4-3-3 foi sumindo em prol de mais jogadores no meio, em 4-4-2 ou 3-5-2. A principal posição sacrificada pelos novos esquemas foi justamente a dos ponteiros, um símbolo da dominância e da habilidade diferenciada dos brasileiros.

O Flamengo de Carlinhos na Copa União 1987: imagem retirada do livro "Escola Brasileira de Futebol", de Paulo Vinícius Coelho


O nosso futebol respondeu, no entanto, com sua própria transformação radical. No São Paulo do “Menudos”, treinado por Cilinho e Pepe, e no Flamengo de 1987, capitaneado por Carlinhos, se gestou um novo tipo de jogador: o Atacante [com ‘a’ na maiúscula] que era um “comandante de Ataque”, infiltrando na área a partir dos lados, sem se reduzir ao papel nem de ponta nem de centroavante.

A nova posição era uma síntese do ponteiro e do ponta-de-lança, e encontra expressão perfeita na dupla Bebeto e Renato Gaúcho do ataque rubro-negro de 1987. O primeiro era originalmente um ponta-de-lança/meia-atacante que foi ganhando funções cada vez mais ofensivas; o segundo, um ponta-direita de muita força e “fominha” no drible que ganhou permissão para jogar por todos os cantos ao redor da área e atacar o gol.

Muitos treinadores viram no novo tipo de jogador uma reformulação do antigo Ponta-de-Lança [é a opinião de Parreira e Zagallo, que viam assim o papel de Romário e Bebeto no time de 1994]. Mas o Atacante não acabou com o ponta-de-lança clássico.


A Seleção Brasileira de Parreira na Copa de 1994: imagem retirada do livro "Escola Brasileira de Futebol", de Paulo Vinícius Coelho


Ele continuou existindo, como no Palmeiras com Edilson e depois Alex; no Corinthians com Marcelinho “Carioca”; no Flamengo com Petkovic; no Vasco com Ramón e Juninho “Paulista”. É verdade que, assim como Bebeto, alguns deles se tornaram “Pontas de Lança modernos” ou Atacantes, mas a posição, em si mesma, sobreviveu.

O ferido de morte foi o ponteiro. Assim como Renato Portaluppi, eles se tornaram “Atacantes”. Romário era ponteiro esquerdo no Vasco – o centroavante era Roberto Dinamite – até se consagrar como um ponta-de-lança no sentido moderno [de Zagallo, e que estamos chamando de “Atacante”]. Só se tornou centroavante mesmo na Europa e depois no Flamengo. O mesmo aconteceu com Muller, Edmundo, Paulo Nunes e outros.

Quando a Europa ressuscitou a figura do ponta nos anos 2000, iniciando uma defasagem tática para a qual a América do Sul ainda não produziu uma resposta, muitos jogadores brasileiros já formados na ‘cultura’ do Atacante enfrentaram dificuldades de adaptação. Pense em Dagoberto, em Alexandre Pato e outros. Eles não conseguiram ser nem pontas nem centroavantes. Foram “traídos” pelo tempo.

Alguns, de técnica ímpar, conseguiram se adequar, é claro. Assim, o ponta-de-lança Ronaldinho Gaúcho podia render muito bem de ponteiro esquerdo; e Neymar consegue atuar em qualquer posição do ataque.

Mas a ligação entre sumiço e reaparição das funções de ponta e Atacante revela a conexão tática entre ambas. E é por isso que vou considerá-las juntas, distinguindo-a do Ponta-de-Lança/Meia-atacante e do centroavantes tradicionais.

Isto posto, a minha lista de Ponteiros/Atacantes mais relevantes d’O Mais Querido.


1) JARBAS, A “FLECHA NEGRA” [1933/46]



Durante décadas, Jarbas Barbosa -- nascido em Campos dos Goytacazes e profissionalizado no Carioca, um clube de operários da Gávea, bairro então popular para o qual o Flamengo se mudou nos anos 1930 – foi considerado o primeiro negro a se tornar importante no clube.



Mas nos últimos tempos se criou toda uma polêmica sobre a “cor” do mulato Nonô, centroavante dos anos 1920. Na minha perspectiva, ambos eram mulatos, mestiços de pretos e brancos, ou "morenos" [como se costuma dizer no Rio de Janeiro], como se pode conferir pelas fotos. A questão racial no Brasil é mais complexa do que o bi-colorismo defendido por alguns movimentos, influenciados por sociedades com outras classificações raciais.



Jarbas era um ponteiro esquerdo rápido, hábil e goleador. Foi titular em oito temporadas consecutivas n’O Mais Querido do Brasil, e mesmo depois que saiu da equipe principal continuou contribuindo nas campanhas até encontrar substituto ideal na figura de Vevé.



Em uma época de transição do amadorismo para o futebol profissional, Jarbas foi a alma preta e encarnada do nosso uniforme, com uma longevidade e uma paixão impressionante pelo Flamengo. Foram mais de 380 partidas defendendo o Manto Sagrado. É nosso sétimo maior artilheiro, com 154 gols.



Figurou também na seleção brasileira de 1932, que derrotou a Celeste, então bicampeã olímpica e Mundial, em pleno Estádio de Montevidéu, dando sinais do futuro colosso futebolístico do nosso país.

Seus principais títulos no Flamengo são os campeonatos cariocas de 1939, 42/43/44.






2) AUGUSTÍN VALIDO [1937/1943; 1944]

O tricampeonato conquistado em 1944 ilustra bem a tensão entre as identidades vascaína e rubro-negra. Este título talvez tenha sido o primeiro grande momento da radicalização da rivalidade nacionalista que vinha sendo gestada nos anos anteriores. É claro que Flamengo e Vasco já eram grandes rivais desde os tempos as regatas chiques e ensolaradas. Mas o confronto de 1944 teve ingredientes diferentes. Primeiro, porque ocorreu em meio aos acontecimentos mais tensos e decisivos da Segunda Guerra Mundial. José Lins do Rego causou espanto em setores da imprensa quando afirmou que o tricampeonato do Flamengo "era mais importante para o povo brasileiro do que as batalhas de Stalingrado" [...]. Mário Filho engrossou o coro daqueles que viam no jogo uma grande batalha, assim como o amigo José Lins. Segundo Filho, havia uma guerra desencadeada também aqui dentro do país, que fora gerada "pela paixão do povo pelo seu clube, pela sua cidade, pelo seu Estado e até pelo seu Brasil." Por isso se justificava, segundo Filho, o aparato de guerra montado pelo Flamengo na Gávea, que contava até mesmo com suporte militar. O GMAC -- Grupamento Móvel de Artilharia da Costa -- organizou a segurança dos torcedores nas arquibancadas, além de, segundo Filho, torcer pelo Flamengo.

Renato Soares Coutinho, "Um Flamengo Grande, um Brasil Maior"




Houve um “gol do Pet’’ muitas décadas antes de Petkovic chegar no Flamengo. Ou ainda, seria melhor dizer que o gol de Pet, eternizado por câmeras de TV e ocorrido no maior templo do futebol mundial, foi uma reedição cósmica do original.

O tento original foi marcado também por um estrangeiro, mas no caso um vizinho sul-americano, e também contra o Vasco. Também valeu um tricampeonato. Mas o cenário era o estádio de São Januário, símbolo da grandeza d’O Gigante da Colina, maior estádio da América Latina durante os anos 1930, e palco dos imortais discursos de Vargas no Primeiro de Maio.


Ou a melhor comparação seria com o gol, também de cabeça, de Rondinelli, que decidiu o campeonato de 1978 e iniciou a Era de Ouro?

O ponta direita Augustín Valido é puro amor ao Flamengo.

Profissionalizado pelo Boca Juniors e atleta do Lanus em uma época em que mal se ganhava salários nos clubes de Buenos Aires, veio ao Rio para participar de amistosos com um selecionado de portenhos. Despertou interesse do América RJ, mas assinou contrato com O Mais Querido.

Começava uma história de paixão que inspiraria gerações. Quando se tornou técnico do Flamengo em 1995, o radialista Washington Rodrigues, conhecido como Apolinho, usava entrevistas de Valido para explicar para seu elenco o significado de jogar no clube.


Soldados do GMAC -- Grupamento Móvel de Artilharia da Costa -- invadem o campo para comemorar o gol do título rubro-negro: o primeiro tricampeonato rubro-negro foi acompanhado de fervor nacionalista em plena II Guerra Mundial


[É por isso também que alguns jogadores daquele grupo, Romário e Edmundo por exemplo, emocionados com a história que descobriam, deram declarações cada vez mais fortes de identificação com o Flamengo. Mas essa é outra história.]

No ano do centenário, em 1995, Valido dizia, “O que pode ser mais inesquecível do que essa bendita camisa do tricampeonato? Quer um momento mais bendito do que este? Queria botar a camisa do Flamengo nesse aniversário! Porque eu amo tanto meu clube! Não há ninguém que possa imagina o sentimento profundo que eu tenho em meu coração sobre o meu querido Flamengo. Ganhar, perder. De qualquer maneira!

Valido participou ativamente das conquistas dos Cariocas de 1939, 42/43. E então se aposentou aos 29 anos de idade, cuidando de sua Tipografia no Rio de Janeiro.



Foi então que decidiu visitar a Gávea, e a pedido de velhos conhecidos bateu uma “pelada” no clube. O treinador Flávio Costa não titubeou e convidou o ponta direita para participar dos últimos jogos do Carioca. Afinal, o time havia perdido Leônidas na temporada anterior. Perácio estava servindo o país na Segunda Guerra Mundial e alguns jogadores, como Pirilo, Zizinho e Modesto Bría, atuavam no sacrifício.

Valido estava há mais de um ano sem entrar em campo, mas sua paixão não lhe permitiu dizer não. Jogou o Fla X Flu, em que O Mais Querido aplicou uma surra de 6 a 1 sobre o rival das Laranjeiras. E estava presente no jogo decisivo pela taça em São Januário contra um Vasco que começava a montar seu famoso Expresso da Vitória, que seria o melhor time do país pelo restante da década.



Sofrendo com a falta de ritmo, com a pouca recuperação do esforço do jogo anterior, e com 39ºC de febre, Valido teve uma das piores atuações de sua vida. Até que aos 41 minutos do segundo tempo, a defesa cruz-maltina faz uma falta do lado esquerdo da área. Vevé bate para o meio da zona de agrião, e o ponta, mais alto do que a defesa adversária, sobe e desfere uma cabeçada certeira.

Mais tarde, os vascaínos choraram o resultado, disseram que o ponta se apoiou nas costas do lateral Argemiro. Mas nem os jornalistas presentes concordam com a versão, nem as imagens filmadas conseguiram captar qualquer irregularidade. Começava a tradicional choradeira da torcida arco-íris!

E assim, o mito d’O Mais Querido do Brasil, projeto iniciado pelo presidente José Bastos Padilha, se consolidava definitivamente em pleno território inimigo com a conquista do primeiro tricampeonato através de um improvável gol de cabeça de um atleta argentino que fez da camisa preta e encarnada a grande paixão de sua vida.



O gol do primeiro tricampeonato é um dos mais importantes de nossa história. Valido é um dos maiores heróis da Gávea. E também um dos que melhor captaram o significado do Manto Sagrado.

Segundo ele, “Nasci longe, mas Flamengo. Não há nada que se compare a esse clube. Imperfeito, como todos; onde, ao que se diz, mandam muitos, superado até em organização por outros. No entanto, vence sempre! Por que vence? Porque está na alma do povo. Porque é a própria alma do povo!"