segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

O ANTIGO TESTAMENTO NA PATRÍSTICA, OU: O Pastor Yago Martins e o Cânone Judaico parte 4

 “Tomei os cinco homens, como me tinha ordenado; partimos para o campo e permanecemos lá. No dia depois aconteceu-me que, eis uma voz me chamou dizendo: “Esdras, abre a boca e bebe o que eu te forneço”. Abri a boca e eis que me era oferecido um cálice cheio: era como se fosse água, mas a sua cor era semelhante ao fogo. Eu tomei-o e bebi e, enquanto bebia, o meu ânimo fazia jorrar inteligência para fora e no meu peito crescia a sabedoria, porque o meu espírito conservava a memória; a minha boca abriu-se e não se fechou mais. O Altíssimo deu inteligência [também] aos cinco homens, e o que lhes era dito, passo a passo, escreviam-no com caracteres que não conheciam, ficando lá durante quarenta dias, escrevendo durante o dia, e comendo pão durante a noite, enquanto durante o dia falava, mas durante a noite não me calava. Foram escritos, nestes quarenta dias, noventa e quatro livros. Acontece que, quando se completaram os quarenta dias, o Altíssimo falou-me dizendo: “Os vinte e quatro livros que escreveste antes torna-os públicos, que os leia quer quem é digno quer quem é indigno; mas os setenta escritos por último conserva-os, para os entregar aos sábios do teu povo, porque neles está a fonte da inteligência, a fonte da sabedoria e o rio do conhecimento!”

4 Esdras



O historiador Eusébio de Cesareia foi largamente usado como fonte para o vídeo do Pastor Yago Martins



Me volto agora para o terceiro bloco de argumentos do Pastor Yago, focado em escritos patrísticos. Segundo o vídeo Lutero tirou livros da Bíblia? [clique para ver], "não é de se espantar que a patrística tivesse rejeitado também estes livros deuterocanônicos e os tratado como textos apócrifos."


A partir de 14 autores, compreendidos entre o ano 170 e 420 da Era Cristã, ele alega que: i. Os Padres seguiam o cânone judaico; ii. rejeitavam os deuterocanônicos; iii. consideravam os deuterocanônicos inferiores.


Algumas observações antes de colocar a mão na massa. 


Vou seguir um critério: só valem aqueles Padres que de fator propuseram listas de obras canônicas. Como vai ficar claro, nem todos os autores citados por Martins sugeriram um cânone. Além disso, ele deixou passar pelo menos dois nomes que, também fazendo parte da Patrística, e vivendo no mesmo período abordado, se posicionaram sobre o tema: Santo Anfilóquio de Icônio e Santo Inocêncio de Roma. 


Esse critério torna menos difícil a posição do Pastor. Na verdade, seria muito simples demonstrar que os "deuterocanônicos'' foram citado a torto e a direito como livros inspirados e proféticos pelos Padres dos primeiros séculos. São Clemente de Roma, a quem são atribuídas duas cartas que quase foram incluídas definitivamente no Novo Testamento, citava Judite ainda no século I. São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João Teólogo [São João Evangelista], citou Tobit na primeira metade do século II; e Santo Irineu de Lyon, um dos campeões contra os ''apócrifos'' gnósticos, argumentava com Bel e o Dragão em mãos. Ainda no mesmo século II, Santo Atenágoras de Atenas citava Baruch, e São Clemente de Alexandria se posicionava de modo favorável até mesmo a pseudo-epígrafos do Antigo Testamento. No início do século III, Tertuliano chamava de Escritura tanto Macabeus quanto I Enoque, e Santo Hipólito de Roma tratava o Livro da Sabedoria como obra profética. 


Eu poderia continuar, mas estes nomes já indicam que me ater apenas àqueles autores que nos legaram intencionalmente uma lista livra os protestantes de uma série de problemas com os primeiros séculos da Igreja. 


Além disso, o sentido do termo cânone mudou ao longo dos tempos. Santo Atanásio de Alexandria foi o primeiro a aplicá-lo a um conjunto de escritos, já na primeira metade do século IV. Quando aparece antes, seja em Epístolas Paulinas ou em obras de São Justino Mártir e Santo Irineu de Lyon, cânone significa a ''regra de fé'' herdada dos Apóstolos, ou seja, uma tradição não escrita, e que, segundo estes mesmos Padres, tinha continuidade nos Bispos e nos Presbíteros. Era mais comum se referir às Escrituras como ''os livros da Aliança". 


Orígenes de Alexandria deixou um legado inestimável para a Igreja. Apesar disso, seu nome foi envolvido em uma série de disputas trinitárias e cristológicas que se estenderam dos séculos IV ao VI, e terminou anatematizado pelo V Concílio Ecumênico

O mesmo se aplica ao termo ''apócrifo''. Nem sempre queria dizer ''espúrio". Este sentido está presente às vezes, como nos textos de Santo Irineu de Lyon contra os gnósticos. Mas em outras oportunidades o termo é neutro, como em Orígenes, que o aplicava a obras de acesso restrito -- porque consideradas literatura reservada para sábios. Nem sempre o livro era retirado da leitura pública por ser inferior ou errôneo, e sim por ser visto como profundo demais para o fiel comum. 


Isto nos leva aos critérios de canonicidade empregados nestes tempos. A necessidade de uma lista oficial de livros só se fez sentir na Igreja a partir da segunda metade do século II, por pressão interna mas também como resposta ao Rabinismo e ao gnosticismo. Mas ela só se intensificou no século IV, quando as perseguições chegaram ao fim e os cristãos se aproximaram do poder romano. Muitos Padres tentavam adequar o cânone a 22 ou 24 livros, número de letras do alfabeto hebraico ou grego. No mundo helenístico, isto denotava perfeição [já usada por Homero], e os próprios Rabinos se apegaram a esse critério para consolidar os 24 livros da Tanack. No século IV, se tornou quase que norma a adequação ao número 22 [e em menor medida, ao número 24], uma prática que só foi rompida quando Santo Agostinho preferiu a multiplicação de 22 por dois, a fim de chegar aos 44 livros de sua lista.


Esse ímpeto numerológico traz também uma influência da literatura apocalíptica. O livro de 4 Ezra/Esdras, que é também chamado de 2 Esdras e de Apocalipse de Esdras, impactou fortemente tanto judeus quanto cristãos -- e foi acolhido no Antigo Testamento da Igreja etíope [junto com I Enoque]. A obra, que data do século I, descreve como Esdras recebeu de Deus a missão de recompor a Lei após o Exílio da Babilônia. As Escrituras Sagradas não teriam sido salvas pela tradição oral, mas reveladas de novo ao Profeta em uma visão divina. Esdras ditou a escribas 94 livros, recebendo do Alto a ordem de que os 24 primeiros se tornassem públicos no culto, e que os 70 últimos circulassem de maneira discreta, conhecidos apenas pelos mais preparados. 


A narrativa é notável por sustentar que todos os 94 livros tem a mesma fonte sagrada e que são todos eles inspirados, sugerindo que os canônicos [os públicos] são, de certo modo, inferiores aos 70 que permaneceriam em segredo. Concordemos ou não com ela, esta noção ecoa em algum grau em diferentes autores cristãos, mais notavelmente em São Clemente de Alexandria, Orígenes, Santo Epifânio de Salamina, e Santo Ambrósio de Milão [que costumava citar bastante a obra].


Por fim, alguns dos nomes citados no vídeo do canal Dois dedos de Teologia não são considerados como Padres por cristãos ortodoxos. Martins cita, por exemplo, Apolinário de Laodiceia, heresiarca associado ao apolinarismo. Mas vou tratá-los todos como testemunhas do movimento de canonização. 


Os autores divergem sobre a lista oficial de obras da Igreja. Isto não deveria ser surpresa. Como tenho defendido em diversas postagens, não havia um cânone escriturístico. No século I, as Escrituras Judaicas eram fluidas tanto em forma textual [diferentes versões de um mesmo livro] quanto em número de obras consideradas inspiradas ou sagradas. Os documentos que viriam a ser o Novo Testamento estavam sendo produzidos, difundidos e conhecidos. Os Padres debatiam estas obras, e nem todas eram consensuais. O Novo Testamento, como demonstro em outra série de postagens, só foi definido inteiramente no início do século V. O Antigo passava pela mesma forma de análise. As divergências abaixo são mais um problema para os protestantes e, mais especificamente, para os argumentos do Dois Dedos de Teologia: afinal, ela demonstra que a Igreja nem seguia o cânone rabínico nem havia herdado alguma lista fechada do século I.


Vou analisar estes pontos a partir dos próprios autores elencados pelo Pastor Yago Martins. 


Uma das visões de Esdras em arte do século XVI. A Apocalíptica judaica foi muito influente entre os cristãos, e 4 Ezra foi acolhido no cânone da Igreja Etíope



1. São Melito de Sárdis

Segundo Yago Martins, o Bispo de Sárdis inclui em sua lista canônica "todos os livros do Antigo Testamento, deixando de fora os deuterocanônicos". O relato de Eusébio de Cesareia é bem mais interessante, no entanto. São Melito escreveu para Onésimo por volta do ano 170 com o intuito de sanar a dúvida de seu interlocutor sobre quais seriam as obras das Escrituras bem como sua ordenação correta. Querendo assegurar a exatidão da resposta, viajou para a Palestina a fim de conferir qual seria, de fato, o Antigo Testamento.


É sintomático que o Bispo não pudesse conferir qual era o cânone com a própria comunidade judaica de Sárdis, uma das maiores da Ásia Menor. É sinal inequívoco de que, diferente do que defende o Pastor Yago, não havia nenhuma lista oficial de livros recebida pela ''comunidade judaica'' ou pela Igreja. 


Uma vez na Palestina, São Melito encontrou uma lista diferente daquela da Tanack. Ele cita 27 livros, dos quais estão excluídos Lamentações, Ester e Neemias, e em que consta o Livro da Sabedoria, que os protestantes consideram apócrifo. Alguns tentam conciliar a lista de Melito com o texto massorético alegando que Lamentações está incluída em Jeremias e que Neemias consta de Esdras, mas isto é extrapolar o texto. 


O fato é que São Melito é um testemunho contrário tanto à existência de um cânone judaico fechado no século II quanto a um suposto repúdio dos ''deuterocanônicos''. Para completar, ele se refere às Escrituras como Leis e Profetas, e não como ''Leis, Profetas e Escritos" -- a tripartição que, segundo o Pastor, estaria consolidada já no Judaísmo do século I. Além disso, dá o nome grego dos livros, não o hebraico.




2. São Teófilo de Antioquia

Sendo rigoroso, São Teófilo não deveria estar no vídeo pelo simples fato de que ele não fornece nenhuma lista de livros canônicos. Martins faz uma inferência em cima dos capítulos 23 a 28 do livro III de Apologia a Autólico, uma defesa do cristianismo diante de um amigo pagão, datada dos anos 170. 


Na obra, São Teófilo repete o argumento de Josefo de que os historiadores hebreus são mais antigos e de maior autoridade que os gregos por serem inspirados por Deus. Não há nenhuma pretensão de dizer quais livros formam o Antigo Testamento. O Pastor repete o mesmo estratagema -- já refutado no texto anterior em relação a discursos de Cristo e de Santo Estêvão -- de tentar retirar um cânone de um texto que não tem a intenção de apresentar nenhum.


A verdade é que não há qualquer sinal de que o autor levasse em conta a teoria rabínica da ''cessação profética'' só por afirmar que Zacarias é o último profeta. Aliás, há livros sapienciais ''deuterocanônicos'' que eram comumente atribuídos ao Rei Salomão, o que torna toda esta tentativa de deslegitimá-los por considerações cronológicas um tanto infrutífera. [Alguns se referiam a eles como ''os cinco livros de Salomão", a saber: Eclesiastes, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico]. 


Nem todas as obras hoje canônicas são citadas por São Teófilo; por outro lado, é bastante provavel que ele usasse o Livro da Sabedoria em sua exposição teológica. 


Por fim, na mesma Apologia a Autólito, mais especificamente no livro II, São Teófilo coloca as Sibilas no mesmo patamar que os profetas hebreus. Os oráculos das Sibilas estariam em uma posição superior aos escritos dos filósofos e poetas gregos, dando a entender que elas eram inspiradas por Deus:

"Mas homens de Deus preenchidos pelo Espírito Santo e se tornando Profetas, inspirados e tornados sábios por Deus, ensinaram sobre Deus, e foram transformados em santos e justos. E assim foram considerados dignos desta recompensa, de que seriam instrumentos de Deus, e conteriam a sabedoria que vem Dele, por meio da qual profeririam tudo quanto diz respeito à Criação do Mundo e todas as demais coisas. Pois eles previram também pestilências, e fomes, e guerras. E não existiram um ou dois, mas muitos, em vários períodos e estações entre os hebreus; e também entre os gregos havia a Sibila; e todos eles falaram de coisas consistentes e em harmonia uns com os outros, tanto ao que aconteceu antes deles como do que aconteceu no tempo em que viviam, e também das coisas que se cumpririam em nossos dias: e assim estamos persuadidos também sobre as coisas futuras que se seguirão do mesmo modo como as anteriores se realizaram."


O capítulo 36 é dedicado às profecias da Sibila, defendendo que elas concordavam com a dos santos profetas hebreus. De fato, os oráculos sibilinos tinham grande aceitação entre autores judeus e cristãos deste tempo. Concordando ou não com eles, a verdade é que a visão de inspiração divina e profecia parecia um pouco mais abrangente do que aquela defendida no vídeo. São Teofilo de Antioquia tampouco dá qualquer suporte às alegações de Martins.



3. Orígenes de Alexandria

O vídeo traz uma série de informações francamente equivocadas sobre o cânone atribuído por Eusébio de Cesareia a Orígenes, importante figura da primeira metade do século III. Yago diz que Orígenes "cita todos os livros do Antigo Testamento e não cita nenhuma vez os apócrifos na sua lista de obras inspiradas. Ele diz que segue o cânone "tal como nos transmitiram os hebreus". E acrescenta que "ele não lista os livros dos Macabeus como livro inspirado, e diz que [...] ele era útil, ainda que fora do Antigo Testamento". 


Não há nenhum registro de Orígenes dizendo qualquer dessas coisas. Nesse caso, estamos lidando com a superinterpretação do Pastor Yago Martins e com certo desconhecimento da própria obra deste importante Padre. Na passagem mencionada, a lista de livros inclui a Epístola de JeremiasMacabeus, obras 'deuterocanônicas'. Em nenhum momento se nega a inspiração divina em Macabeus ou se diz que se trata tão somente de ''um livro útil'' e ''fora do Antigo Testamento''. Tudo o que sabemos é que Orígenes inclui estes livros no cânone [judaico?] e lhes dá um nome em hebraico.


A passagem em Eusébio é polêmica. Historiadores alegam que Orígenes estava se referindo ao cânone usado pelos judeus em seu tempo, não à sua própria lista do Antigo Testamento. A dúvida tem fundamento, já que conhecemos obras do próprio Orígenes afirmando coisas bem diferentes. Sequer é necessário citar todas as vezes que ele menciona ''deuterocanônicos'' como Escrituras. Basta apontar a correspondência trocada com Júlio Africano, a que o próprio Yago vai se referir mais à frente. 


Júlio Africano tinha dúvidas sobre Bel e o Dragão por não constar das Escrituras usadas pelos judeus. E recebeu um pito de Orígenes, para quem os cristãos não dependiam dos judeus para o estabelecimento do cânone. Ou seja, exatamente o contrário da posição do Dois Dedos de Teologia: a Igreja tinha autonomia para estabelecer o cânone, a Septuaginta era inspirada, os ''deuterocanônicos'' eram sagrados, e as diferenças entre as ''nossas Escrituras'' [as cristãs], como escrevia Orígenes, e as judaicas provavam que o Antigo Testamento usado pelos cristãos era superior. 


Por fim, o termo ''apócrifo'' em Orígenes tampouco significa uma obra inferior, e sim aquela que é oculta, discreta, que não foi escrita para os olhos públicos. Ele defendeu, mais de uma vez, o uso de pseudo-epígrafos do Antigo Testamento, por exemplo. Não é possível imaginar que esse autor possa favorecer qualquer das alegações feita pelo Pastor Yago.



Santo Irineu de Lyon, que denunciou os apócrifos dos gnósticos, afirmando que a Igreja se baseava na regra de fé da tradição apostólica, que era mantida e salvaguardada pela sucessão de Bispos e Presbíteros

4. Júlio Africano

É citado no vídeo no contexto da troca de cartas com Orígenes. Mas não conhecemos qualquer lista oficial de livros atribuída a ele. Evidentemente, contestar a autenticidade de Bel e o Dragão não significa concordar com a Tanack ou repudiar todo e qualquer deuterocanônico. Além disso, não sabemos se ele aceitou ou não a réplica de Orígenes. De modo que seria uma extrapolação elencá-lo a favor das teses protestantes.



5. Santo Atanásio de Alexandria

Chegamos então ao século IV, período posterior ao fim das perseguições. A Igreja já não está mais criminalizada e se aproxima do poder romano. Os Concílios se tornam mais frequentes, e decidem sobre pontos importantes da fé, da doutrina e da disciplina cristã. Santo Atanásio de Alexandria tem um papel fundamental em todo esse processo. Nos anos 330, se tornou o primeiro Padre a aplicar o termo ''cânone'' para uma lista oficial de livros do Antigo e do Novo Testamento.


O Pastor Yago está correto quando afirma que Santo Atanásio ''não inclui todos os deuterocanônicos''. Mas isso significa dizer que, sim, ele inclui ''deuterocanônicos'' em seu cânone de 22 livros, número de letras do alfabeto hebraico, que como apontei no início do texto, acabaria por ser um fio condutor das listas oficiais que foram propostas neste século. 


Santo Atanásio inclui a Epístola de Jeremias e Baruch em um mesmo livro junto de Jeremias e de Lamentações. E retira do cânone Ester. Não é possível afirmar, portanto, nem que ele seguisse a Tanack nem que deixasse de fora todos os livros que os protestantes chamam de ''apócrifos'''



6. Santo Hilário de Poitiers

Segundo o vídeo, o Bispo de Poitiers  concorda com Santo Atanásio. Mas a verdade é um pouco mais complexa. Nos anos 350, Santo Hilário sugere dois cânones, um seguindo o número de 22 letras hebraicas, o outro segundo um número de 24 letras gregas. No primeiro, quase que concorda inteiramente com Santo Atanásio, unindo a Epístola de Jeremias e Baruch [dois ''deuterocanônicos''] a Lamentações e Jeremias, a fim de formar um único livro. Mas mantém Ester, preferindo unir os livros de Juízes e de Ruth. Já no segundo cânone, Santo Hilário acrescenta os livros de Tobit e de Judite


Ele não segue a Tanack em nenhuma das duas listas, e tampouco é verdade que deixasse de fora os ''deuterocanônicos''. Mais ainda, são conhecidas as citações que ele faz do Livro da Sabedoria, de Susana, e de 2 Macabeus como livros proféticos em "Sobre a Trindade". De modo que podemos inferir que, para Santo Hilário, a canonicidade não estabelecia um limite ao número de textos inspirados pelo Espírito Santo.


Santo Hilário de Poitier, um dos mais importantes Padres das regiões ocidentais da Cristandade: ele propôs dois cânones, um adaptado às 22 letras do alfabeto hebraico, e o segundo adaptado às 24 letras do alfabeto grego



7. Apolinário de Laodiceia

É citado junto a Santo Hilário de Poitiers, mas não conhecemos nenhuma lista oficial de livros canônicos deste famoso heresiarca, de modo que não não é relevante para a discussão atual. 


8. São Cirilo de Jerusalém

O Pastor Yago sustenta que nas Catequeses Mistagógicas, obra mais famosa de São Cirilo, e datada por volta do ano 350, é apresentado um cânone sem nenhum "deuterocanônico". Mas o fato é que, se conformando às 22 letras do alfabeto hebraico, o Bispo de Jerusalém une a Epístola de Jeremias e Baruch [dois deuterocanônicos] a Lamentações e Jeremias em um só livro. A divisão que faz das Sagradas Escrituras segue a Septuaginta, e não o aspecto tripartite da Tanack. Além disso, nas mesmas Catequeses Mistagógicas há citações de Eclesiástico, e de capítulos da versão mais longa de Daniel [a da Septuaginta]. Ou seja, ele não se conformava às Escrituras Judaicas, e não desprezava os ''deuterocanônicos'' como inferiores.



9. São Basílio o Grande

Não se conhece nenhuma lista oficial de livros sugerida por este imenso luminar da Igreja. O Pastor Yago infere que ele desprezaria os ''deuterocanônicos'' porque escreveu que eram 22 os livros do Antigo Testamento. Como temos visto, isto apenas significa que ele conformava o cânone ao número de letras do hebraico -- em um momento em que os Rabinos tinham preferência por conformá-lo ao número 24, seguindo as letras do alfabeto grego.  Não bastasse isso, São Basílio citava Sabedoria de Ben Sirach [Eclesiástico] como Escritura em seu Hexamerão, obra dos anos 370. 



10. Santo Epifânio de Salamina

Escrevendo nos anos 370, Santo Epifânio explica em "Pesos e Medidas" como os 27 livros do Antigo Testamento são organizados em 22 para se conformar às letras do alfabeto hebraico. Em sua lista, temos a união de Jeremias e Lamentações com a Epístola de Jeremias e Baruch para formar um só livro. 


Os livros que ficam fora deste arranjo são chamados de apócrifos, mas em um sentido neutro da palavra. Ele atribui o Livro da Sabedoria a Salomão, por exemplo. Nesta mesma obra, Santo Epifânio diz que a Septuaginta foi inspirada por Deus e que era superior a todas as demais traduções, se apoiando na narrativa dos 72 tradutores, de acordo com a Carta a Aristeia. Ele chega a dar o nome de cada um destes anciãos responsáveis pela LXX. Relata também que, além dos 22 livros públicos [canônicos], foram traduzido 72 apócrifos para o grego, um eco da narrativa de 4 Ezra.


Enfim, Santo Epifânio não se conforma à Tanack, e inclui alguns ''deuterocanônicos'' em sua lista.


A famosa obra sobre os Seis Dias da Criação, um legado inestimável de São Basílio o Grande

11. São Gregório Teólogo

O Pastor Yago Martins está correto ao dizer que o Arcebispo de Alexandria conformou sua lista de livros canônicos às 22 letras do alfabeto hebraico. Faltou avisar que ele deixava de fora Lamentações e Ester, e que portanto não seguia o cânone judaico. É verdade que não incluía também nenhum ''deuterocanônico'', ainda que os citasse normalmente em outras obras, mais particularmente Bel e o Dragão, Baruch, Sabedoria e Eclesiástico. De todo modo, é o primeiro dos autores elencado no vídeo que de fato não inclui nenhum ''deuterocanônico'' em um rol de obras canônicas.



12. Rufino de Aquileia

O monge Rufino sofreu muita desconfiança em relação à sua ortodoxia, dada a proximidade com ideias origenistas -- que gerariam crises e a condenação do próprio Orígenes no século VI, séculos depois de sua morte. De fato, por volta do ano 400, ele propõe um cânone de 22 livros, adequados às letras do hebraico, e que é o mesmo que a da Tanack e do Antigo Testamento protestante. 


13. São Jerônimo de Estridão

Grande parte dos protestantes defendem seu Antigo Testamento a partir de São Jerônimo que, quando traduziu as Escrituras para o latim vulgar [a Vulgata], decidiu usar prioritariamente o texto hebraico. Além disso, Jerônimo escreveu nos anos 390 a favor de uma lista oficial de 22 livros -- número de letras do hebraico -- em que deixava de fora os ''deuterocanônicos". Para completar, dizia que os deuterocanônicos eram inferiores. 


Mas devo acrescentar algum contexto: i. São Jerônimo usava a versão de Daniel presente na Septuaginta, que é maior do que a do texto hebraico, defendendo-a em carta diante de Rufino de Aquileia; ii. Apesar de considerar os deuterocanônicos inferiores aos 22 canônicos, ele os cita como Escritura inspirada por Deus, como é o caso de Eclesiástico e Bel e o Dragão; iii. Ele tampouco negava a inspiração da Septuaginta


Feita essas ressalvas, São Jerônimo é um autor que se adequa às alegações do vídeo.


14. Santo Agostinho de Hipona

O Pastor Yago Martins está consciente de que o Bispo de Hipona, o mais influente teólogo ocidental e que deixou uma marca imensa nos Reformadores da Idade Moderna, defende um cânone bastante diferente do Protestante. Mas tenta amenizar esta constatação alegando que algumas passagens de obras agostinianas testemunham uma resistência na Igreja a certos ''deuterocanônicos''. 


Mas é justamente o contrário. Ao admoestar São Jerônimo pela sua tradução das Escrituras para o latim, Santo Agostinho defende o caráter inspirado da Septuaginta. Afirma também que é necessário manter no cânone todos os livros da Septuaginta por causa da autoridade que eles conquistaram no Oriente cristão -- consideração para lá de importante, porque rompe o conspiracionismo de que estas obras teriam sido acréscimos da ''Igreja de Roma''. 


Santo Agostinho de Hipona, também chamado de ''O Mestre do Ocidente'', é um dos autores patrísticos mais influentes tanto no catolicismo-romano quanto entre os Reformadores protestantes


O cânone agostiniano, proposto por volta do ano 400, segue a divisão de livros da Septuaginta [Lei, História, Poesia e Profetas] e não da Tanack [Lei, Profetas e Escritos], e desdobra o Antigo Testamento em 44 livros [as 22 letras do alfabeto hebraico multiplicadas por dois], combinando Jeremias, Lamentações, Epístola de Jeremias e Baruch em um livro só, e incluindo o Salmo 151, a versão longa de Daniel, e mais Tobit, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, e os dois primeiros de Macabeus.


15. Santo Anfilóquio de Icônio

Não foi citado no vídeo, embora escrevesse no mesmo período. Por volta dos anos 390, propôs um cânone conformado às 22 letras do hebraico, e que excluía Lamentações. Santo Anfilóquio também admitia que Ester era um livro cuja canonicidade era contestada por muitos. O que indica, de modo muito óbvio, que os cristãos não seguiam o cânone judaico. De todo modo, o Bispo de Icônio tampouco incluía os ''deuterocanônicos''.



16. Santo Inocêncio de Roma

Em carta ao Bispo Exsuperius, de Toulouse, escrita por volta do ano 400, o Bispo de Roma apresentou uma lista com os "cinco livros de Salomão" [Eclesiastes, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico], os dois primeiros de Macabeus, e mais Tobit e Judite.



E assim fecho a análise das fontes do vídeo do Pastor Yago Martins. Os protestantes poderiam alegar que só uma minoria dos autores listavam TODOS os ''deuterocanônicos''. Mas seria um argumento frágil, já que o cânone não estava fechado, e o que se quer averiguar são os limites que se colocavam a ele. Até hoje, há ''denominações'' cristãs que incluem 3 e 4 Macabeus, 155 Salmos, e até I Enoque e 4 Ezra. Ademais, o mesmo argumento poderia ser usado para o Antigo Testamento protestante: apenas dois dos autores acima se adequam a ele, e mesmo assim com ressalvas. 


O quadro abaixo resume a análise.



8 dos 13 autores que propuseram algum cânone incluíram deuterocanônicos nele. Apenas dois destes 13 sugeriram um cânone similar ao Antigo Testamento Protestante




Dos 16 autores listados, 3 não nos fornecem quaisquer informações conclusivas. Dos 13 restantes, apenas 2 concordam com a Tanack -- abstraindo as ressalvas em torno de São Jerônimo. 11 apresentam uma lista oficial distinta das Escrituras rabínicas, e portanto diferentes do Antigo Testamento protestante. Destes 13 autores, 8 com certeza incluem algum 'deuterocanônico', mesmo quando se conformavam a 22 livros, número de letras do alfabeto hebraico.


Portanto, não há qualquer razão para imaginar, como afirma o Pastor Yago Martins, que os escritores patrísticas rejeitavam, ''em sua maioria'', os livros ''deuterocanônicos''. É justamente o contrário. Além disso, eles não parecem ter recebido qualquer cânone fechado dos judeus ao qual pensassem ser necessário se adequar. Era comum até que excluíssem Ester e/ou Lamentações, por exemplo. Alguns destes escritores defenderam, explicitamente, a autonomia da Igreja para definir o cânone do Antigo Testamento. 


Enfim, mesmo os autores que deixavam os 'deuterocanônicos' de fora usavam a versão que constava da Septuaginta. Não custa lembrar que  Jeremias tem 2700 palavras a menos na Septuaginta quando comparada ao Texto Massorético, e que Daniel é mais longo. O texto de Isaías também se apresenta de forma bem diferente, para dizer o mínimo. Além disso, a não inclusão de um livro no cânone nem sempre significava a negação de seu caráter inspirado. 


Isto posto, falo mais deste bloco de argumentos do Pastor Yago na próxima postagem da série.



Ícone retratando passagens de Bel e o Dragão


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