segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Yago Martins, o Sola Scriptura e os argumentos de Kostenberger e Kruger

 



Poucos anos atrás aconteceu um pequeno debate entre Olavo de Carvalho e o Pastor Yago Martins. A pendenga começou porque o filósofo da Virgínia escreveu texto intitulado ''Por que não sou evangélico'' [clique para ler] e o postou em seu Facebook junto com um desafio: o de que nem mil teólogos protestantes conseguiriam refutá-lo.


Ora, a repercussão que Olavo tem no público evangélico é notória, e ainda maior naqueles primeiros anos do mandato de Jair Bolsonaro. Alguns pediram para que Yago respondesse ao texto, o que ele fez em seu canal do Youtube.


Como é comum quando o nome de Olavo está envolvido, a conversa rapidamente evoluiu para o embate erístico, com discípulos do pensador se envolvendo -- no caso, Bernardo Kuster -- e tentando desqualificar o interlocutor. O modo mais elegante com que Yago levou a conversa, bem como erros óbvios na exposição de Olavo, deram ao pastor a mão forte no enfrentamento, até porque um contingente considerável dos leitores do filósofo já estava predisposto a aceitar a defesa do ponto de vista evangélico.


Mas, como em outros casos, Olavo teve a intuição correta do problema, ainda que o tenha abordado de forma atabalhoada. Os equívocos que cometeu não refutam o cerne do argumento apresentado. Talvez ele não tenha sido capaz de apresentar e elaborar bem o ponto, que permanece fazendo sentido aida assim: o Sola Scriptura não existe em ponto algum das Sagradas Escrituras, já o rito da Eucaristia sim.


De todo modo, dei uma olhada rápida em alguns vídeos de Yago Martins sobre a formação do cânone, um tópico importante para quem defende o Sola Scriptura. Apesar de bem articulado, de estudioso e inteligente, os argumentos que o influencer protestante usa são frágeis. Ele se sai bem como apologeta, e é evidente que seu canal se dedica, antes de qualquer coisa, a defender suas crenças. Mas não parece ter justificativas sólidas o suficiente para sustentar este princípio basilar da Reforma.


Vou tratar de alguns destes argumentos de Yago Martins em postagens que farei nas próximas semanas. Vou partir de um vídeo que ele lançou em seu canal anos atrás com o intuito de defender o Sola Scriptura. No vídeo, o Pastor sustenta suas posições por meio do livro "A Heresia da Ortodoxia", de Andreas J. Kostenberger e Michael J. Kruger.


Não tenho intenção de iniciar um debate com Yago Martins, e tampouco sou defensor de Olavo de Carvalho. Meu intuito é tão somente usar o vídeo e os argumentos que ele apresenta como exemplos do beco sem saída do Sola Scriptura e, portanto, dos problemas do protestantismo em relação ao que sabemos da formação do cânone bíblico.


Como introdução a este tema, vou repetir alguns dos pontos que tenho colocado nas últimas semanas a respeito do "Antigo Testamento'', lembrando que as observações que vou fazer sobre o vídeo de Yago Martins dizem respeito ao que chamamos de Novo Testamento.


i. Não havia cânone judaico fechado no século I da Era Cristã. Vocês vão encontrar alguns pesquisadores defendendo isso, mas estão em minoria. Teólogos protestantes e judeus defendem que o cânone existia, eles dependem disso por questões de fé, mas de um ponto de vista histórico não há como demonstrar este ponto.


ii. Se voltamos aos três séculos anteriores a Cristo, descobrimos que as Escrituras Judaicas circulavam não só sem cânone fechado como também em diversas variantes. E quanto a isso não pode existir dúvida alguma, porque estas variantes [em hebraico, mas também em samaritano e grego] foram encontradas nos rolos de Qumram. Vou repetir: existiam variantes em hebraico e temos PROVA disto na forma de manuscritos e fragmentos de manuscritos. Existiam variantes até mesmo no texto da Torah.


iii. Não temos nenhum manuscrito com trechos das Escrituras Judaicas anteriores ao século III a.C. Portanto, não temos como comparar essas variantes [em hebraico, e as variantes com a Septuaginta e com o pentateuco samaritano] contrastando-o com uma cópia mais antiga, que remonta, digamos, ao fim do exílio na Babilônia ou mesmo antes.


iv. A Septuaginta foi um tradução das Escrituras Judaicas para o grego, que se inicia em III a.C. Nos tempos de Cristo, era a versão das Escrituras mais usada pelos judeus, já que pelo menos 80% deles viviam fora da Palestina e se comunicavam, principalmente, em grego koiné. Para os judeus do Egito, por exemplo, a Septuaginta era uma versão inspirada por Deus, e existia inclusive festas religiosas em Alexandria comemorando a ''tradução dos 72 anciãos''. Além disso, a versão em grego também circulava muito na Palestina, principalmente nas grandes cidades, em que o grego era também língua comum. Em Qumram, comunidade judaica bastante conservadora, foram encontrados manuscritos contendo livros inteiros da Septuaginta.


v. A Septuaginta era a versão das Escrituras usada pela "Igreja Primitiva" [como os protestantes gostam de chamá-la]. Isto é um fato facilmente provado, inclusive. Cerca de oitenta por cento das citações das Escrituras realizadas nos textos do Novo Testamento batem com a Septuaginta. [as que não batem com a Septuaginta nem por isso vem do texto massorético, diga-se de passagem.] O que demonstra que os autores desses livros canônicos a usavam comumente. Quando São Paulo falava das Escrituras, dos 'oráculos' entregue aos judeus etc., ele citava, muitas vezes, a Septuaginta. Existem passagens nos Evangelhos que só fazem sentido tendo a Septuaginta de fundo. Passagens da Septuaginta são ''colocadas na boca"' de Cristo no Evangelho de São Mateus. O Livro de Isaías usado pelos cristãos era nitidamente na versão dos LXX. [E sabemos disso porque o Isaías da Septuaginta é bem diferente das variantes hebraicas.]


vi. O texto usado atualmente pelos judeus foi consolidado na Idade Média cristã. Antes do século V, existia um texto pré-massorético, escolhido pelos Rabinos e que era uma das variantes que remontavam à Palestina. Mas as vocalizações deste texto foram trabalhados entre o século V e X, até o consenso em torno da versão da Escola de Tiberíades. O primeiro manuscrito completo do texto massorético que temos em mãos data do ano 1008. É necessário ter atenção a isto, pois o texto massorético NÃO É o texto proto-massorético. Não só porque diferenças na vocalização alteram o sentido do texto, mas também porque existem variações no texto consonantal entre o proto-massorético e o massorético.


vii. Sim, Lutero e os protestantes estavam errados ao imaginar que o texto massorético era a versão original ou mais fiel da Tanach transmitida desde sempre, e que todo o restante eram traduções não inspiradas. Quem acredita nesta narrativa hoje em dia o faz por própria conta e risco, mas não há fundamento histórico para isto hoje em dia.


viii. Pra terminar, o alfabeto hebraico usado hoje em dia é uma construção pós-exílio da Babilônia. O Justo Profeta Moisés não conseguiria ler nenhum texto em hebraico pós-exílico, pois o alfabeto anterior ao século VI era diferente e mais próximo do samaritano. A língua hebraica original era mais próxima daquela dos cananeus e foi perdida após a destruição de Jerusalém em 586 a.C. Então, toda vez que você ver um texto em hebraico das Escrituras ou mesmo da Torah, mesmo que seja um fragmento de manuscrito da Antiguidade, saiba que ele é NECESSARIAMENTE uma reescrita do alfabeto paleo-hebraico. Quem reteve este alfabeto de forma mais próxima foi o pentateuco samaritano.


Por enquanto, é isso.

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