segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Integralismo: O nacionalismo dos que prostituem a Pátria

Notem a publicação do líder da FIB: ''EM FAVOR de Jair Bolsonaro!"

Existe um movimento putrefato no Brasil, que gosta de posar de nacionalista mas sempre esteve do lado anti-popular e entreguista em toda nossa história. É o integralismo. 

Recentemente, alguns dos adeptos dessa ideologia morta mas cujo velório continua infestando algumas cidades de um cheiro nauseabundo resolveram criticar Vargas. Mas a essa altura, até as pedrinhas portuguesas do Calçadão de Copacabana sabem a motivação dos ataques não passa de um complexo de de cu doído pelo movimento de Plínio Sagrado ter sido defenestrado após a tentativa de golpe contra o Presidente, em 1938.

Antes disso, Plínio não via problema em apoiar Getúlio. Dias antes do golpe do Estado Novo, o líder integralista fez um acordo com o Presidente, aceitou a oferta do Ministério da Educação no futuro regime, e colocou dezenas de milhares de seguidores pra desfilar em frente ao Palácio do Guanabara em apoio a Vargas. 

Os próprios Diários de Getúlio confirmam o encontro dom Plínio e o acordo de entregar o Ministério citado aos integralistas. A aliança tática foi matéria também d'O Correio da Manhã, em 5 de novembro, que deu conta da Operação Negrão de Lima. Ora, sem esse apoio, que é hoje um dado incontornável só negado mesmo por desculpas esfarrapadas de integralistas, a implantação do Estado Novo teria sido muito mais difícil.

Como se tocou que o integralismo não seria a base do novo governo, Salgado surtou. Pior ainda porque hoje há provas irrecorríveis de que o movimento, que se pavoneia de um nacionalismo inalcançável por quem não segue seus programas, recebia grana do governo fascista italiano. 

Essa informação foi confirmada por meio da análise da correspondência entre a embaixada no Rio e o governo italiano durante aquele período. Ela pode ser comprovada por despacho do embaixador Vicenzo Lojacano, em 8 de janeiro de 1938, presente hoje no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores italiano: AI, dossiê 16, documento número 6. 



Ou seja, é documento oficial em que se pode ler o embaixador italiano no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, perguntando se, diante das circunstâncias, não seria melhor cortar a subvenção aos integralistas, em resposta a questionamento direto do Ministro da Itália.

A ''mesada'' é também comprovada por documento oficial do Ministério das Relações Exteriores da Itália, reproduzido em obra de Ricardo Seintefus, doutor pela Universidade de Genebra e ex-professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [Abaixo, Ciano é o nome do Ministro.]


Pensem nisso: o pessoal da atual Frente Integralista Brasileira [FIB], que bate pezinho porque outros movimentos políticos dialogam, reinterpretam e aproveitam autores estrangeiros nas leituras que realizam sobre o Brasil, varrem pra debaixo do tapete o fato do guru Plínio Salgado ter recebido grana de um governo europeu até, pelo menos, janeiro de 1938.

Depois da implantação do Estado Novo, Mussolini resolveu cortar a bufunfa da Ação Integralista, por entender que Vargas estava mais próximo de sua perspectiva política. Daí a tentativa mambembe de assassinar a família do Presidente levada a efeito em maio por ''galinhas verdes'' inconformados.

A principal dificuldade do tal ''levante'' integralista, realizado em um ataque noturno contra o Palácio Guanabara, não foi a falta de armas. Aquele pessoal não foi afetado por nenhum suposto ''desarmamento'', crítica feita a Getúlio por alguns direitistas hipnotizados pelo discurso de Bolsonaro. 

O principal obstáculo é que, dos 150 voluntários para o ataque, só uns trinta apareceram nos locais combinados. Não à toa, os integralistas tinham fama de serem zé bundões em meios comunistas. Gente que, na hora 'h', fugia da raia.

Isso talvez explique como Getúlio, um homem já caminhando pra meia idade, pôde resistir durante horas e de arma em punho ao atentado contra sua vida e a de sua família -- a ajuda da polícia e do Exército tardou --, e com auxílio apenas de meia dúzia de três, já contando com as mulheres da casa.

No fim das contas, Bejo e Queiroz fuzilaram foi pouco naquela linha manhã em que uma dezena de inimigos fugidos e escondidos em cima de árvores e arbustos do Palácio foram perfilados no fundo do prédio.

Eu já disse algumas vezes que Vargas cometeu erros, alguns deles graves. Mas perto dessa gente mesquinha e ressentida, seu nome brilha ainda mais forte, mais poderoso, e de modo ainda mais evidente.


Mas essa não foi a única bola fora que o Integralismo deu em sua história. De maneira recorrente e sistemática, sem maiores pudores, eles estiveram do lado do imperialismo e do liberalismo em quase todos os instantes cruciais da história recente da República. Apoiaram, por exemplo, o Golpe de 1964, liderando por uma corrente americanófila e entreguista das Forças Armadas, e que se voltou inclusive contra militares nacionalistas nos anos seguintes, perseguindo-os, torturando-os e ''matando'' socialmente seus companheiros de armas.


A ação atual de integralistas não nega todo esse currículo desprezível. Victor Emanuel Vilela Barbuy, líder da FIB, subiu em palanque de Bozó na Avenida Paulista para discursar por uma chapa ultra-liberal, que nada faz senão destruir o Estado brasileiro e promover um amor doentio aos Estados Unidos e à entidade sionista de Israel. Deram também apoio ao PRTB por causa do general Mourão, o mesmo que é grau 33 da Maçonaria, e que disse, em palestra em Loja em Brasília, que o país deveria abandonar seu legado português, indígena e africano e emular a cultura norte-americana.

Mourão disse em palestra em Loja Maçônica que o Brasil deveria imitar a cultura dos EUA e que ''infelizmente o trabalhador só funciona sob chicote".

O que Gustavo Barroso, cujas obras alguns deles gostam de decorar, diriam desse apoio ao sionismo e à Grande Loja Inglesa? Vão dizer que estão combatendo o ''comunismo'' do Lula e Haddad? Aí o problema é de burrice crônica, daqueles que fazem a gravata de babador.

Sentado mais uma vez no colo do capeta liberal, o que esses supostos ''nacionalistas'' tem a dizer? Que era tudo o ''mal menor''. Deve ser mesmo, porque pior do que está só se o integralismo chegasse ao poder. Mas pelo menos isso sabemos que não vai acontecer, já que a vocação perene dos ''galinhas verdes'' é ser instrumento útil e dócil do sistema que juram combater.







segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Neopentecostalismo como religiosidade brasileira


“Começaram aqueles programas de televisão deles, falando que a gente fazia acordo com o diabo, que fazia trabalho pra matar gente e eu achava até engraçado. Quando começaram as invasões, eu olhava aquilo nos jornais e me assustava, parecia que a história estava andando ao contrário pra gente, parecia que aquela época de perseguição, que os antigos falavam, estava voltando. Mas quando eu fiquei sabendo que eles usavam banho de erva, descarrego e tudo o mais, aí é que eu me assustei mesmo! O que era aquilo! O candomblé ficou um pouco sem chão mesmo depois que eles [a IURD] chegaram aqui, sabe.”


Candomblecista de Salvador, Bahia

A Igreja Universal do Reino de Deus se tornou referência dentro do universo neopentecostal brasileiro, e influência inegável do movimento conhecido como ''evangélico''. O peso da organização de Edir Macedo não pode ser medido pelo número de pessoas que se dizem fiéis da instituição, que alcançaram um auge por volta do ano 2000, com pouco mais de dois milhões de pessoas no censo declarando pertencimento à IURD, e caiu desde então. [No censo de 2010, eram 1,9 milhão de fiéis.]. 

Esses números aparentemente reduzidos na Igreja Universal em comparação com o poder econômico, político e a quantidade de templos que possui pelo país e na África apontam pra uma característica muito importante do neopentecostalismo e do movimento evangélico em geral: existe uma grande proporção de pessoas que usam os ''serviços religiosos'' de mais de uma igreja ou seita, girando por elas em busca de maior eficiência na solução de seus problemas ou pastores mais carismáticos. Essa ''transição perene'' entre instituições ajuda também a entender como Edir Macedo foi capaz de criar uma linguagem minimamente comum entre evangélicos, que é encontrada em graus variados e com diferentes matizes na maior parte dos pentecostais e até mesmo entre evangélicos de agremiações supostamente mais tradicionais. 

Quando se trata de ler a explosão neopentecostal no país, somos tentados a criar analogias frágeis com processos que se deram noutras sociedades. Daí a necessidade de se reforçar as singularidades dessa onda ''neopenteca'' aqui no Brasil. Não é possível entender a velocidade da ''conversão'' [palavrinha problemática] dos brasileiros às igrejas evangélicas sem perceber que há imensas linhas de continuidade entre esse tipo de religiosidade e as 'tradições religiosas' populares inscritas no catolicismo popular e nas religiões afro-ameríndias-brasileiras [candomblés, umbandas, juremas, encantados, ''espiritismos'' de modo geral]. 

Pra abordar esses elementos, vou usar a IURD como exemplo do movimento evangélico, ou mais especificamente neopentecostal, embora os ensinamentos e práticas da organização sejam mais ''radicais'' do que a maioria esmagadora de suas congêneres. Assim, é um modelo limite, e que se torna útil dado o peso que essa igreja possui no estabelecimento de um discurso e entendimento comum no universo evangélico brasileiro, facilitado pela circulação de fiéis a que me referi acima. 

Deixem-me pontuar o que o neopentecostalismo NÃO é:


1. Não se trata de um movimento iconoclasta em sentido estrito


Embora ataque as representações e objetos sacros de outras religiões, fazendo deles representações demoníacas e invocando todo o conjunto de interpretações bíblicas sobre a proibição de culto a imagens, os neopentecostais fazem uso abundante de mediadores com o sagrado na forma de itens ''abençoados'': óleos, água, papéis, sal grosso, flores, quantidade de terra etc., todos passíveis de serem veículos de algum tipo de poder espiritual. Essa prática, criticada em meios evangélicos mais ''tradicionais'' [assim entre aspas, explico depois], é ironizada em uma infinidade de memes pelas redes sociais, de modo que é bastante conhecida e também difundida. Trata-se não de destruir toda e qualquer representação do sagrado, e sim de superar os mediadores da religião ''inimiga'', identificada com o diabo.




2) Não se trata de uma expressão do protestantismo histórico

É quase que consenso interpretar o impacto sociológico do protestantismo histórico, particularmente o Reformado, como ponta de lança no processo de ascensão do racionalismo, do secularismo [dessacralização do mundo] e da formação do ethos do indivíduo moderno. O neopentecostalismo no Brasil não é racionalista, mas se fundamenta em experiências ''místicas'', ''extáticas''; não desmitologiza o mundo, mas sacraliza o mundano [o que, percebam, não significa elevar o mundano ao campo do sagrado, transformando-o em vivência ritualística e ascética; e sim levar a perspectiva mágica para todas as esferas da atividade mundana]; não forma uma ética de responsabilidade individual, mas de guerra espiritual em que um indivíduo naturalmente bom é assaltado externamente por forças maléficas [uma inversão considerável do que afirma o calvinismo]. 

Se o protestantismo histórico foi força que modelou e preparou a consolidação da sociedade liberal-capitalista, o neopentecostalismo brasileiro corre em direção nitidamente contrária. Esse ponto, penso, joga por terra várias interpretações até bem recentes sobre o ''significado sociológico'' da expansão ''neopenteca'';



3) O neopentecostalismo não é mera expansão do movimento evangélico norte-americano ou estrangeiro


Se não pode ser lido como uma reiteração do protestantismo histórico e de seu impacto ''ocidentalizante'', tampouco o neopentecostalismo pode ser encarado como mera expansão do movimento evangélico norte-americano. Há continuidades com as ondas pentecostais que chegaram do estrangeiro, mas também radicalização e rupturas. 

O neopentecostalismo não é fundamentalista, por exemplo. Ora, o termo ''fundamentalismo'' pode ser lido de maneira genérica, como movimento intencional de influenciar em todos os campos da sociedade e subordiná-los à religião; ou de maneira mais estrita e histórica, como o movimento do início do século XX que pretendia se opor à teologia liberal crescente em meios protestantes com a revalorização da ideia de ''inerrância bíblica''. Nesse sentido, o ''fundamentalismo'' estaria também vinculado ao ''literalismo bíblico'': diferente da teologia liberal, que desmitologizava a religião, retirando dela todo o seu conteúdo histórico e metafísico, a reduzindo cada vez mais a alegorias morais e psicologizantes; o fundamentalismo e literalismo reafirmava esses aspectos ''tradicionais'' em um diálogo com a modernidade -- se queria antimoderno, embora partisse de uma leitura moderna do texto bíblico. 

Ora, o neopentecostalismo possui pelo menos duas distinções muito importantes em relação ao fundamentalismo: em primeiro lugar, não parte de um desejo da defesa da tradição contra uma novidade [como no caso da teologia liberal]; pelo contrário, ele se contrapõe justamente a uma tradição religiosa popular que encara mais do que desvirtuada, como francamente ''demoníaca'' [catolicismo popular e religiões afro-ameríndias-brasileiras]. Há muitos estudos que abordam esse aspecto do movimento evangélico, o de combate ao ''Exu-tradição''. Ou seja, não se trata de um movimento que critica a modernidade a partir de uma releitura da tradição. E sim de um movimento ''destradicionalizante'', pois a tradição herdada vem do diabo. 

Esse movimento ''destradicionalizante'' tem de ser matizado, porque a continuidade da tradição se dá noutro âmbito, como indiquei antes e voltarei a indicar nos próximos pontos. O importante por enquanto é notar a profunda ruptura com o fundamentalismo. 

Do mesmo modo, a fidelidade ''à palavra de Deus'' se dá de outra maneira. Não há uma forte tradição exegética no neopentecostalismo, a relação com o texto escrito passa longe disso. Na verdade, ocorre uma seleção de certas passagens bíblicas que são usadas muito mais como ''recursos'' de uma oralidade mágica. A ''palavra'' de Deus, que é ''poderosa'', é aquela falada, pronunciada por pastores e fiéis, e capaz de operar e atualizar poderes e ''contratos mágicos''. A Bíblia se torna, na verdade, ela própria outro objeto mágico. O vínculo neopentecostal com uma perspectiva mágica da palavra oral tem traços de continuidade com aspectos das religiosidades afro-brasileiras, inclusive, e não com a valorização da exegese da palavra escrita típica do ''literalismo''.


4. O neopentecostalismo rompe com o moralismo do pentecostalismo ''clássico''

4) O crescimento do neopentecostalismo não indica um fortalecimento do moralismo. A rigidez moral é muito mais típica do protestantismo histórico e das primeiras ondas pentecostais. A onda que explode no Brasil a partir do fim dos anos 1970 é marcada antes de tudo pelo arrefecimento do ascetismo e da disciplina moral que eram típicas desses movimentos que lhe antecederam. 

Na verdade, o pentecostalismo clássico, cujas duas primeiras ondas atingiram o país nos anos 1910/20 e depois 1950, possuíam um discurso de negação da cultura ao seu redor, criando uma cisão entre a vivência na igreja e a vivência no mundo. O neopentecostalismo, ou terceira onda pentecostal, que se inicia na segunda metade dos anos 1970, inverte essa questão, abraçando a cultura e a vida no mundo, mas dando-lhe um sentido belicista de combate aos ''encostos''. Dessa forma, o neopentecostal tende a abandonar os traços distintivos com os quais os chamados "crentes" eram diferenciados do restante da população. 

Claro que a moralidade evangélica se adequa ao dualismo cristão: as próprias religiosidades afro fizeram isso no Brasil em graus diversos. Com o neopentecostalismo é a mesma coisa: é uma religiosidade com foco mágico e extático, focada em transes, sonhos proféticos, e numa escatologia de guerra espiritual a ser vivenciada em todos os aspectos da vida [mas de modo não ascético]. Os pontos ''morais'' com que os evangélicos costumam ser associados estão presentes com força nos praticantes de outras religiosidades cristãs ou influenciadas pela sociedade cristã, do catolicismo-romano à umbanda.


5. Neo-pentecostalismo como sistema mágico-religioso


O neopentecostalismo se expressa como um sistema mágico-religioso com mais ênfase nos aspectos mágicos do que nos religiosos. Não pretendo criar aqui uma dicotomia, que considero inexistente, entre magia e religião, mas sim pontuar uma distinção, ainda que analítica, entre o ato operativo, típico da magia, e o devocional, mais associado ao religioso. 

Há muitos estudos que lêem a prática de ''ofertas'' [na maior parte das vezes monetária] presente entre evangélicos a partir dos conceitos de ''dom e contra-dom'' proposto por Mauss. Trata-se de um sistema mágico de trocas que cria obrigações e vínculos entre os participantes. Esse aspecto existe já no catolicismo popular, se não na ideia de dízimo [que se secularizou nesse segmento religioso, perdendo suja dimensão mística de ''sacrifício''], certamente na prática difundida do ''voto'' e do ''pagamento de promessas''. Também se expressa de maneira muito típica nos ebós e despachos das tradições afro-brasileiras, que atualizam e operam vínculos simbólicos entre os elementos ofertados e as forças espirituais a que são dirigidas. 

Ora, uma das diferenças entre essas práticas e a ''oferta'' ''neopenteca'' é que nas religiosidades afro-brasileiras, e ainda mais fortemente no catolicismo romano, se ressalta a liberdade de Deus na concessão ou não da ''graça'' ou dádiva. No caso evangélico, a certeza da concessão da ''benção'' se expressa na antecipação da ''oferta'', atualizada pelo poder mágico da ''palavra'', que enfatiza o ''direito'' do fiel à prosperidade requisitada mais do que o favor da Divindade.

[há outra diferença crucial entre as tradições religiosas populares e o neopentecostalismo, que é a fetichização do dinheiro nesse último -- a oferta e a prosperidade são monetizadas de uma maneira que não tem paralelo no catolicismo-romano e nas religiões afro-brasileiras, e isso é um traço característico muito importante das diferenças entre os evangélicos atuais, nascidos numa sociedade de consumo de massas, e as demais religiosidades do país].




6) O neopentecostalismo não apenas demoniza a tradição popular mas também a reafirma


Voltando ao caráter ''destradicionalizante'' do neopentecostalismo, há de se notar que embora demonize e confronte a tradição religiosa popular, o neopentecostalismo a reafirma no campo metafísico e ritualístico. O discurso pratica uma inversão dessa tradição ao mesmo tempo que a prática a canibaliza e absorve. Os cultos neopentecostais, isso é já notório, se assemelham em muito a giras de exus, em que entidades associadas à umbanda e candomblé são invocadas, possuem os fiéis, são ''arguidas'' por pastores [que buscam identificar as entidades e forças que conformam a cabeça dos fiéis ''possuídos''], obrigadas a se confessarem como demônios e depois exorcizadas e substituídas pela ''possessão'' do Espírito Santo e de seus dons [esta sim legítima]. 

A teologia da prosperidade acaba tendo similaridades com o conceito de axé do candomblé/umbanda, tal como ressaltei no outro ponto, e a própria função do pastor como mediador do fluxo obrigatório de trocas que garante o milagre da prosperidade tem similaridades com o papel de intermediário exercido, por um lado, pelo 'pai-de-santo', e, por outro, pelo próprio exu [que é exorcizado e substituído nos rituais]. 

Elementos ritualísticos como flores, sal, vestimentas brancas, datas festivas etc. são continuamente reinterpretados, assimilados e ressignificados. As consultas com o 'pai de santo' também são repetidas, agora com as consultas e o aconselhamento com o pastor e com o ''ex-pai de encosto''. 

A próprias críticas às entidades do culto afro-brasileiro tem algum paralelo na interpretação de candomblecistas de que os 'orixás' e 'espíritos' presentes nos terreitos umbandistas são, na verdade, eguns ['orixás' não descem, 'exu' é um orixá, contato com os espíritos de mortos são vetados em terreiros em que se cultuam os orixás, e permeados de certos tabus, já que o contato com eguns pode trazer uma série de malefícios se realizados sem respeito às prescrições]. 

Em resumo, a identidade ''neopenteca'' reafirma e depende da identidade dos cultos que confronta. Há um jogo de espelhos, de inversões e de reatualizações da própria tradição popular que complica até mesmo o uso estrito da palavra ''conversão''.


________________

Fontes: 1)Vágner Gonçalves da Silva
2) Bruno Reinhardt

terça-feira, 8 de outubro de 2019

O Coringa, parte III -- A Plenitude do Êxtase




5. O assassinato da Mãe, da Amante e do Pai


No entanto, o Coringa não encarnaria sem que os afetos e complexos que seguravam Arthur nas relações humanas desmoronassem de vez. Voltando de um encontro com sua suposta namorada, ele lê, escondido, mais uma carta que sua mãe endereçava a Wayne. Segundo o texto, ele era filho de uma relação amorosa de Penny e o patrão. Quando confrontada, a mãe lhe diz que o empresário não assumiu a paternidade por causa das aparências, e que a obrigou a “assinar uns papéis”.

Arthur parte em uma jornada para conversar com seu suposto pai. Ele vai até a mansão Wayne, onde conhece Bruce, um menino que não sorri, e é expulso por Alfred, que lhe avisa que nunca ocorreu nada entre Penny e Thomas. Em seguida, o protagonista aproveita um protesto anti-sistema para invadir um cinema em que o miliardário assiste um filme de Chaplin e o segue até o banheiro.

Thomas Wayne lhe conta que sua mãe é “louca”, que ele nunca foi para cama com ela, e que ele, Arthur, foi adotado. Penny, continua o empresário, havia sido internada no Arkham durante um tempo, e sofria de delírios paranóides. Quando Arthur perde o controle e começa a rir, recebe um soco do seu interlocutor: “Como você pode achar isso engraçado!?” Mas ele não achava. Ao tentar conhecer seu pai, ele percebeu que desconhecia completamente sua mãe.

Penny sofre um derrame quando entrevistada por dois policiais a respeito dos homicídios no metrô. Para descobrir a verdade, Arthur ruma até o asilo Arkham, quando não apenas confirma as palavras do empresário, mas também descobre que sua mãe havia sido internada por permitir que seu filho adotivo fosse espancado por um namorado violento e abusivo. 

Mas ele não chorava”, dizia a mãe no relatório médico, “sempre foi uma criança tão feliz [Happy]”, justifica, em uma das cenas mais trágicas da película. A polícia havia encontrado a criança em um apartamento imundo, amarrada a um radiador de carro, com hematomas e ferimentos na cabeça.

Foi ali que o Coringa encarnou de vez na pessoa de Arthur? Difícil saber. 

A tensão do filme é crescente, a trilha sonora impacta cada vez mais, e Phoenix adquire uma figura ainda mais perturbadora. Ele vai para o apartamento da namorada, buscando algum consolo, quando percebemos que todo o affair entre os dois não passou de imaginação. A vizinha mal o conhecia.

O Coringa toma conta quando Arthur passa a noite na geladeira, como se buscando um novo útero? Ou quando descobre que a imagem paterna que acalentou por toda a vida, Murray Franklin, o apresentador, passa em seu programa um vídeo da apresentação amadora do show de Stand-up de Arthur, debochando da falta de talento e dos problemas mentais do novato? 

Ou, pior ainda, quando uma funcionária da emissora liga para ele, dizendo que o vídeo passado no programa gerou muita reação do público, e ele estava convidado para uma entrevista no programa de Murray, que terminava toda noite com a frase: “Lembre-se: Isto é a Vida”?

Quando foi que Fleck saiu de cena pra dar espaço inteiramente ao Arquétipo? 

Teria sido no apartamento da vizinha, suposta namorada, quando simula um tiro na própria cabeça? Ou na decisão de sufocar a mãe com um travesseiro no hospital? “Happy?! Eu nunca fui feliz um minuto sequer da minha vida desgraçada. Eu achava que minha vida era uma tragédia, mas agora percebo que ela é uma comédia do caralho!

Ou ainda no instante em que finalmente mata Murray com um disparo na cabeça durante a entrevista ao vivo? 

Naquele show, em que ele fez questão de revelar que sentia graça do que os demais consideravam repugnante, e não via beleza nenhuma no que os outros consideravam ou normal ou divertido: “Eu matei os executivos porque eles eram horríveis!”, escancara no programa ao vivo. “Você está buscando justificativa para ter matado três pessoas!”, protesta Murray. “Eles eram horríveis. Por que vocês se importam com eles? Só porque Thomas Wayne chorou por eles na TV? Se fosse eu, vocês pulariam sobre meu cadáver como se eu não estivesse ali!

Você é horrível, Murray! Você me trouxe no seu programa pra debochar de mim.



6. Toma que é de Graça! O Coringa Reina



De todo modo, o Coringa já estava inteiramente presente quando dois colegas de trabalho visitam Arthur para lhe dar pêsames pela morte da mãe. Um deles é Randall, o outro um anão de nome Gary, que sempre foi motivo de piada para os ''colegas''. Já se preparando para o show de Murray Franklin, com  maquiagem parcialmente completa, e depois de ter se soltado em uma dança frenética que completava sua mudança física de um ser desengonçado e cambaleante para um Palhaço Bailarino, O Coringa mata Randall com uma tesoura. Em um dos momentos mais nervosos do filme, em que o público confunde comédia com horror, ele deixa Gary ir embora, e ainda o ajuda a destrancar a trava da porta, que o anão não alcançava.

O Coringa já estava inteiramente presente quando perseguido por dois policiais pelas ruas e pelo metrô, que estava lotado de pessoas que partiam para uma imensa manifestação contra a elite e o sistema. No metrô, acidentalmente um dos policiais atira em um dos protestantes, sendo linchado pela multidão.

Assim como Fleck, a cidade havia incorporado o Coringa. No momento em que ele pede para contar uma última piada a Murray e o apresentador nega, o Palhaço grita com um humor que só ele consegue discernir completamente: “Você sabe o que acontece quando um doente mental solitário é tratado por vocês como se fosse lixo? Vocês tem o que merecem!” E assassina o apresentador ao vivo, rindo, dançando e dizendo diante d câmera, “Lembrem-se: Isto é a Vida!

A cidade se amotina. Quebradeiras anarco-populares, carros virados, a polícia sendo enfrentada pelas ruas rebeladas. No meio da revolta, alguém com uma máscara de palhaço espera Thomas Wayne sair do cinema com a família, e mata o empresário e sua mulher em um beco escuro diante de seu filho, o pequeno Bruce. Antes de dar cabo do auto-intitulado “salvador de Gotham”, o amotinado grita as mesmas palavras que viu o Coringa dizer na TV: “Tome o que você merece!”, um verdadeiro ''Recebe, que é de graça!"

O Coringa reina pessoal e socialmente na icônica cena final, destinada a entrar para a história do cinema. Levado por um carro de polícia, o Palhaço contempla o caos que reina em Gotham e ri. Os policiais o repreendem, mas ele continua, dizendo que é tudo lindo. Repentinamente, uma ambulância roubada bate na viatura. Dela saem duas pessoas com máscaras de palhaços, desejando libertar o novo deus.

O palhaço é colocado no capô do carro de polícia, e em torno dele uma multidão de anarquistas populares e amotinados, combatendo as autoridades nas ruas, o incentivam a ficar de pé. O Coringa recobra os sentidos e se levanta, dançando para a multidão, e retoca sua maquiagem desfeita com o sangue que lhe sai pela boca.



7. Na dança do Palhaço Assassino, não há nenhuma Redenção



Para terminar esse texto, quero falar do delírio recorrente do protagonista. O caráter solipsista que o filme carrega em larga escala levanta uma série de questões sobre a veracidade de toda a história. Tudo aquilo aconteceu mesmo ou era só imaginação de Arthur Fleck? O que era verdade e o que era miragem psicótica?

Todd Phillips é competente o suficiente para manter essa questão em aberto. Mas dá uma pista que muitos interpretaram como um pequeno defeito da obra. Quando invade o apartamento da vizinha, a cena por si só já deixa claro que o namoro e os encontros entre os dois eram frutos da imaginação super-excitada de Fleck. No entanto, o diretor agrega uma cena de cerca de dez segundos, que reedita rapidamente as interações entre os dois, reforçando que ocorreram somente na cabeça de Arthur. Alguns encararam como uma explicação desnecessária, e que destoa do nível do filme.

Mas talvez seja o sinal dado por Phillips para que saibamos que o que vem mais para frente não era nenhuma fantasia. Ele explica um elemento da psicose neurótica do Coringa como forma de apontar que o restante era a realidade fatal, o domínio completo do Arquétipo, sem delusões, sem alienações, sem inclusive propósito.

O Coringa de Phoenix e Phillips não está buscando uma sociedade melhor, não tem uma mensagem, ainda que de caos [o personagem de Ledger, por sua vez, faz questão de ensinar que ''todas as coisas queimam'']. O filme não apresenta nenhum tipo de redenção, como n’O Cavaleiro das Trevas, em que no fim das contas os cidadãos de Gotham se recusam a se mostrar “doentes como você", na frase que o Batman de Bale diz para o Palhaço. 

Agora, a subversiva e atemorizante cena final vai em outra direção, ainda mais terrífica, para desespero do establishment.  N’O Coringa, o protagonista declara que não acredita em política nem veio pra fundar nenhum movimento: “Eu não acredito nisso! Eu não acredito em nada!”, ele ri. 

O Coringa age e mata por ser um bom dançarino. E quem não é? “Ele!” [tiro]. “Todas as pessoas são horríveis”. Tudo o mais é gatilho e circunstância.





Coringa, parte II -- Somos todos Palhaços





3. "Até hoje, eu sequer sabia que existia. Mas eu existo e..."



É importante ressaltar, porém, que Phillips não ''sociologiza'' o Coringa em nenhum momento. Não são esses problemas sociais que por si só vão levar à transformação assustadora de um ser fragilizado da hierarquia social no Palhaço Assassino. As condições sociais são gatilhos para a emergência do arquétipo, mas apenas de forma indireta. De certa maneira, mas em um nível muito poderoso, o Palhaço já estava lá, tanto na escura e corrompida Gotham como no fundo da mente de Arthur.


Isso fica nítido nos trejeitos efeminados que Phoenix solta quando em momentos de descontração seu personagem se permite uma crítica mordaz ou um humor que só ele enxerga. E de forma ainda mais clara nos passos que ensaia. Sozinho, diante da TV, Arthur começa a dançar com a arma que Randall lhe deu.


Ele expõe sua magreza patológica, mas nos tímidos movimentos já se nota a possibilidade de um ritmo próprio. Arthur fala sozinho, em uma cena em que podemos observar ''de fora'' um de seus delírios: ''Você é um bom dançarino, Arthur'', ''Eu sei'', ''Sabe quem não é um bom dançarino?'', ''Ele!" E então subitamente atira na parede, na direção da imagem que não sabe dançar bem. O disparo o retira do mundo da fantasia, e ele se assusta, inventando uma mentira para a mãe [''estou vendo um filme de guerra''].


Alguns viram na cena a prova de que Arthur, no início, não era violento, mas ela significa justamente o contrário. No fim do filme, essas possibilidades contidas no personagem se realizam inteiramente no Coringa: ''eles não sabiam cantar e dançar'', diz o palhaço no programa de Murray quando confessa que matou os três executivos no Metrô. ''Eles são horríveis, vocês são todos horríveis''. O juízo não é apenas moral, é estético. Eles não são engraçados, não são como Chaplin escorregando pela tela -- um momento de embevecimento de Arthur no cinema em que tenta conversar com Thomas Wayne.

Em larga medida, o Coringa surge quando Arthur se recusa a seguir o critério de humor, de beleza, de moralidade e qualquer outro que a sociedade lhe impõe. “Vocês querem decidir o que é certo ou errado, assim como querem decidir o que é engraçado ou não, Murray. Cansei de fingir que não acho divertido a morte desses três.” Mas antes de matar o pai no arco psicanalítico do personagem, o Coringa vai matar a mãe. Estou me adiantando, porém: O que ressalto é que o símbolo do Palhaço já estava lá, preparando o espaço de sua aparição pessoal e social.

Nada apontaria isso de maneira mais óbvia que o fato de que Fleck comete seus primeiros homicídios, aqueles a que ele se refere nos parágrafos acima, antes mesmo de parar de tomar os remédios para sua doença mental. [Os serviços sociais são cortados pela política de austeridade da Prefeitura.] 

Claro que há importantes gatilhos sociais. Ele acabava de ser demitido porque a arma que Randall lhe deu cai de sua roupa de palhaço durante apresentação em um hospital infantil. Desnorteado, Fleck volta para casa em um metrô vazio, no meio da madrugada, e em seu vagão, três burgueses de terno, evidentemente embriagados, molestam verbalmente uma mulher de véu, possivelmente uma imigrante muçulmana.

As tensões étnicas tão presentes em Taxi Driver também estão referenciadas por Phillips. Alguns dos crimes, inclusive, são inspirados em ocorrências reais em Nova Iorque do início dos anos 1980. No entanto, a história que o diretor pretende contar não é sobre conflitos inter-étnicos. Taxi Driver, repito, foi lançado duas gerações atrás. A questão principal é de classe, ou antes, sobre a alienação cada vez mais completa entre as elites burguesas, que se entendem como sustentáculo moral e civilizatório de Gotham, e a população de todas as etnias. 

Quando a psiquiatra do serviço social, que é negra, anuncia para Fleck que o programa será cortado, e por isso ele vai ficar sem medicação e atendimento, acrescenta: “Eles não estão nem aí pra pessoas como você, Arthur; e não estão nem aí pra pessoas como eu também”. Justificava assim a relação burocrática que possuía com seu paciente, e que foi objeto de crítica de Fleck: “você não escuta o que digo, não é verdade? Sempre faz as mesmas perguntas, se tenho ou não pensamentos negativos...Tudo o que tenho são pensamentos negativos!

Quando Arthur mata os executivos no metrô, ele está, no começo, apenas se defendendo. A mulher molestada dá um olhar para ele, como quem pede ajuda, e ele cai no riso, aquela gargalhada psicótica que não consegue conter, e que manifesta toda sua angústia naquela noite em que perdeu o emprego que tanto amava. A moça aproveita a confusão dos três molestadores para sair do metrô, mas o desolado Arthur vira alvo dos burgueses bêbedos. Eles não reconhecem as risadas como fruto de uma doença mental e agridem o palhaço. Mas Fleck tem uma arma, e dispara contra um, contra o segundo, e depois, já de modo planejado, corre atrás do terceiro e o mata pelas costas.

Depois do crime, Arthur foge desesperadamente e se tranca em um dos banheiros de seu prédio caindo aos pedaços. É então que, isolado, e de modo quase que surpreendente, ele começa a dar novos passos de sua dança. Algo muda para sempre. Ele percebe que está vivo, que é algo ou alguém. Ele descobre autoconsciência e confiança, talvez pela primeira vez em sua vida. 

Aconteceu algo engraçado”, diz à sua psiquiatra, “ouvi uma música no rádio, de um palhaço chamado Carnaval. Esse era o nome que eu tenho como palhaço!” “Até o dia de hoje”, continua, “eu sequer sabia que existia. Mas eu existo! E as pessoas começaram a perceber isso!” A partir daí, o filme deixa de lado os tons esverdeados em torno do protagonista. Ele começa a ganhar cores, inicialmente de uma aura amarelo-ouro.



4. ''...e as pessoas estão começando a perceber!"



O contato com o Arquétipo tira Arthur do mundo de miragens em que ele rastejava. Seu novo senso de existência é tão forte que ele bate na porta de uma vizinha com quem interagiu apenas uma vez no elevador, e a beija, começando um affair que desemboca em um dos momentos mais tensos da obra. O novo senso de realidade é a do mundo do Coringa, não um cotidiano marcado por fugas românticas. Mas esse novo estado de super-excitação fantasiosa é também o último obstáculo para a incorporação completa do Palhaço.

E como a cidade passa também a perceber a existência d’O Coringa, ela também muda e se prepara para essa incorporação. A reação aos assassinatos no metrô evoluem de um modo inesperado para o establishment. A população se ressente da burguesia, do sistema. Em Taxi Driver, Travis enxergava na cidade um esgoto sombrio, em que párias andavam de um lado para o outro, quebrando hidrantes para fazer piscinas no asfalto, e mergulhados num clima de prostituição sistêmica. Ele ansiava pela “chuva que varreria aquele lixo”. Em Gotham, os homicídios dos executivos são as nuvens da tempestade que a população de Gotham contempla nos céus. A limpeza vai começar a partir de cima.

Thomas Wayne, o magnata que empregava as vítimas, se torna expressão dessa elite apartada inteiramente da realidade social dos cidadãos de Gotham. Para ele, o homicida nada mais é do que um covarde que se esconde por trás de uma máscara. Os homens assassinados eram “bons e honestos”, embora ele, Wayne, confesse que não os conhecia pessoalmente. No fim, eles eram de sua família, pois a Corporação Wayne “era uma família”. O ato de violência só podia ter como causa a inveja que os fracassados sentiam de homens como eles, que haviam realizado o sonho americano e “feito alguma coisa de suas vidas”.

Thomas está disposto a concorrer para Prefeito, com o intuito de ajudar a cidade. Gotham havia perdido seu rumo, como indicava a aprovação de grande parte da população aos homicídios. A inveja dos fracassados estava causando aquela disfunção social e todos os seus problemas. E enquanto aquilo acontecesse, os bem sucedidos, os que realizaram o sonho, somente podiam ver os invejosos homicidas ou apoiadores de homicidas e da luta de classes como verdadeiros “palhaços”.

Thomas Wayne é o típico membro da oligarquia financeira e industrial que, a pretexto de ajudar a sociedade, só consegue despejar na população revoltada com o sistema uma montanha de clichês e preconceitos de classe. Ele é como se fosse de outra espécie. A sua insensibilidade é repulsiva: encara seus executivos como “membros da família”, embora não os conhecesse, mas não responde às cartas de Penny Fleck, que havia trabalhado no interior de sua mansão, em seus círculos mais íntimos. Ela não era merecedora do epíteto de “boa”, “honesta”, e definitivamente não era encarada como parte da família.

O cinismo do mega-empresário despertou a população de Gotham, que organizou protestos contra o “filantropo”. Usando máscaras de palhaços, eles saíam às ruas gritando contra o sistema, contra a elite. “Somos todos Palhaços”, “Vá se foder, Wayne!”, “Morte aos Ricos!” Os jornais retratam o misterioso assassino como um vigilante, como um justiceiro, e perguntam se o ódio aos milionários é a nova moda. Arthur está consciente de toda essa dinâmica, e sorri quando sua aparente namorada diz que o assassino é um herói que livrou Gotham de três calhordas. “Agora, só falta mais um milhão”, diz ela.

No entanto, o Coringa não encarnaria sem que os afetos e complexos que seguravam Arthur nas relações humanas desmoronassem de vez. 

Coringa, parte I -- O temor do encontro e da emergência d'O Coringa






1. O temor e tremor de alguns críticos



Os méritos artísticos de Coringa [Joker, 2019], de Todd Phillips, são evidentes. É uma obra prima que não pode ser reduzida à atuação magistral de Joaquin Phoenix, provavelmente o melhor trabalho do ator e que já o coloca como um dos grandes favoritos no circuito de premiações daqui até o próximo Oscar.


E, no entanto, após sair consagrado do Festival de Veneza, o filme dividiu os críticos na América do Norte, que, em geral, buscam reduzi-lo a uma obra mediana levada nas costas por uma interpretação colossal.


Li dezenas de análises sobre Coringa, e aquelas que em algum grau desmereciam o filme podem ser classificadas, por alto, em duas categorias, mas que desaguam ambas no mesmo incômodo, como vou explicar.


Na primeira, estão os que batem na direção por se basear demasiadamente, segundo dizem, em Scorsese, mais especialmente em Taxi Driver e O Rei da Comédia. Nessa linha de raciocínio, Phillips levou pra tela uma versão minorada da cinematografia e dos recursos de seu ídolo, e o melhor é ficar com o original, que trabalharia de forma muito mais inteligente os temas polêmicos que carrega para a tela grande.


Estas considerações são inconsistentes. Fazer de Scorsese uma referência para uma obra escura, violenta, disruptiva e com uma vigorosa crítica social está longe de um equívoco. A homenagem é consciente, sincera e explícita. O próprio Robert De Niro, ator principal de Taxi Drive e o Rei da Comédia, faz o papel de um apresentador e humorista que é um exemplo e um modelo a ser seguido pelo personagem de Phoenix.


E ainda assim, nada há em Coringa que o torne uma mera cópia desses dois filmes. Pelo contrário, a assinatura de Todd Phillips é tonitruante. O estudo de personalidades desajustadas e castradas pelas conveniências sociais, o niilismo latente, e a explosão viril de anarquia já estavam presentes em Se beber, não case [Hangover], pelo menos para  aqueles que conseguiram compreender o filme, uma das melhores comédias dos últimos vinte anos.


Mas é justamente o namoro com a explosão de uma força só temporariamente reprimida, com a insanidade mascarada por uma normalidade ela mesmo doentia, e o apreço ao niilismo anárquico que torna boa parte de Hollywood desgostosa com o diretor. É aqui que esse tipo de crítica que se diz artística revela seu verdadeiro dissabor, que é político.


Essa segunda categoria de crítica se foca no suposto ''perigo'' da película. E ela parte tanto da direita, que sentiu certo apoio a um ódio à riqueza e ao capitalismo, quanto principalmente da esquerda, que percebeu uma defesa do populismo que hoje se tornou campo político importante na Europa, e a glorificação da violência como solução dos conflitos pessoais e sociais.


Nesse sentido, a comparação com a recepção de Laranja Mecânica [A Clockwork Orange] é inevitável. Kubrick também foi acusado de um ''sadismo pornográfico'' e sem sentido, de louvar a psicopatia de Alex, seu protagonista, e acabou censurado nos Estados Unidos e em outros países. Os críticos também avisaram que seu filme poderia inspirar crimes de gangues, assim como hoje dizem que Phillips pode justificar os incel.


Ora, varrê-los para debaixo do tapete, ou para mais fundo ainda na Deep Web, não resolve nem explica a existência dos Incel. Repudiar Coringa por essa ameaça enquanto se aplaude Taxi Driver aponta que o móvel do juízo negativo é a segurança, ou falta dela, proporcionada pelo tempo, ou por uma época em que o consenso liberal nunca foi tão contestado e nunca se sentiu tão ameaçado e frágil. De Niro vestiu o figurino do taxista Travis duas gerações atrás, enquanto Coringa é um fenômeno de massa palpável agora, nesse exato momento. Em ambos os casos, os dois protagonistas tornam-se heróis da sociedade retratada nos filmes.


Coringa consegue mergulhar em estratos mais profundos do que o clássico de Scorsese, o que se torna possível pela complexidade e profundidade do personagem principal, um verdadeiro arquétipo do caos, um profeta do Apocalipse. Esse é o perigo que, instintivamente, parte da crítica sente na obra de Phillips: ela expressa genuinamente todo o temor e tremor que o arquétipo em questão é capaz de causar.



2. O Coringa, a pessoa de Fleck e a cidade de Gotham



Por trás de seu estudo de personagem, do sabor psicológico, do mergulho nos distúrbios mentais, e até do aparente solipsismo, Joker narra um encontro. O desajustado Arthur Fleck, que não se conhecia e que caminha derrotado pelas ruas sem distinguir de todo fantasia e realidade, tem por complemento Gotham, suja, inabitável, marcada pelo completo abandono social, exploração, desigualdade, degeneração e corrupção das relações sociais e pessoais. No início, a cidade detesta o protagonista, e na mesma medida ele não consegue desenvolver nenhum vínculo significativo com a vida ao seu redor.


O primeiro ato nos mergulha em uma atmosfera de depressão. Arthur Fleck trabalha como palhaço para uma empresa pequena de entretenimento, e sonha em construir seu próprio show de comédia stand-up. Ele mora em um prédio caindo aos pedaços, em algum bairro imundo de uma cidade que se decompõe, cuidando da mãe, que é inteiramente dependente e não possui contato com nenhuma outra pessoa.


Penny Fleck, que chama o filho pelo apelido de ''Happy'' [Feliz] passa o tempo assistindo aos noticiários e enviando cartas pedindo ajuda a Thomas Wayne, o miliardário para quem trabalhou na mansão da família trinta anos atrás. O momento mais “terno” entre mãe e filho é quando se unem para ver toda noite o show do apresentador, comediante e entrevistador Murray Franklin [Robet De Niro], que a imaginação super-excitada de Arthur torna um modelo, o pai que ele nunca conheceu mas gostaria de ter tido.


Arthur tem problemas neurológicos, chegou a ser internado por um tempo no sanatório Arkham, e toma mais de sete remédios para doenças mentais. Sua dificuldade de distinguir imaginação e fato se tornam explícitas na pergunta que faz à psiquiatra com quem conversa no serviço social: ''sou eu, ou as coisas estão ficando mais loucas lá fora?'' A médica concorda que o clima está tenso.


Um dos aspectos mais marcantes do vilão das HQ se torna no filme um distúrbio neurológico. Arthur Fleck tem ataques de gargalhadas sempre que se sente agoniado, pressionado, tenso. Ele tenta, mas não consegue controlar o riso, que lhe causa dor, problemas de auto-estima. A risada não é signo de um prazer sádico, mas de trauma, doença e sofrimento. Arthur carrega um cartão explicando aos incomodados com seus surtos de riso que se trata de uma disfunção psicótica.


Esse pária arrasta sua magreza claudicante pelas ruas, como um derrotado. Ele tenta a todo custo se ajustar aos ensinamentos de sua mãe, ''coloque um sorriso no rosto e leve alegria aos demais'', e carrega um ar de ingenuidade. Essa vulnerabilidade o torna objeto de abuso até de seus aparentes amigos no trabalho, como Randall, que lhe dá alguma proteção, e o chama de ''meu garoto'', numa insinuação de que exige ou já exigiu favores sexuais de Arthur.


A frustração e solidão ganham cores escuras no filme. As roupas surradas de Fleck indicam a natureza cinzenta de sua existência, se casando com os conflitos e a corrupção das relações humanas de Gotham. Enquanto trabalha na rua como palhaço, ele é atacado por uma gangue juvenil de latinos. Randall, seu suposto protetor e amigo, lhe dá uma arma, ''sem que ninguém precise ficar sabendo'', ainda que ele conheça os problemas mentais de Arthur, e lhe pedindo um ''pagamento'' depois. Apesar de vítima da violência urbana, seu patrão desconta de seu salário o cartaz perdido durante a surra nas mãos dos trombadinhas.

Associado a esse contexto degradado, os ambientes internos em que Phoenix desenvolve seu personagem são pequenos, opressivos, com uma tonalidade esverdeada, bolorenta, que nos permite sentir o cheiro de mofo e a atmosfera sufocante. São nesses locais que Fleck tenta montar seu show, escrevendo anotações em um caderno que usa como diário e que testemunha seus problemas psicológicos. "O pior de se ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não a tivesse'', escreve em uma tentativa de piada. Arthur não sabe exatamente o que faz as pessoas rirem, ainda que visite stand-ups para anotar e aprender, para buscar entender qual é, afinal, a graça.


É importante ressaltar, porém, que Phillips não ''sociologiza'' o Coringa em nenhum momento. Não são esses problemas sociais que por si só vão levar à transformação assustadora de um ser fragilizado da hierarquia social em um Palhaço Assassino. As condições sociais são gatilhos da emergência do arquétipo, mas indiretamente. De certa maneira, mas em um grau muito poderoso, o Palhaço já estava lá, tanto na escura e corrompida Gotham como no fundo da mente de Arthur.