''Assim falou Santa Alia-da-Faca: A Reverenda Madre deve combinar a malícia sedutora de uma cortesã à intocável majestade de uma deusa virgem, mantendo esses atributos sob tensão pelo tempo que durarem os poderes de sua juventude. Pois quando a beleza e a juventude se forem, ela descobrirá que o ponto médio, antes local de equilíbrio entre tensões, transformou-se numa fonte de astúcia e desenvoltura.''
Princesa Irulan
Em outubro de 2021, eu rasgava elogios a "Duna, Parte 1", do Villeneuve. Vocês podem ler minha postagem original reproduzida no fim desse texto. Dizia eu que o diretor, que é fã da obra de Frank Herbert, tinha captado bem seu espírito, e se mantido fiel à narrativa, sem oferecer uma interpretação ao gosto da indústria ou do público de filmes de super-heróis, ou ainda da esquerda lacradora que censura as películas e as transforma em panfletos identitários.
Os mesmos elogios podem ser feitos, em linhas gerais, a essa continuação, que fecha o enredo do primeiro livro. Mas em um grau mais rarefeito. Como assim?
Bom, atenção para os spoilers. Quem gosta de surpresas na telinha -- atitude que acho estranha, ainda mais em relação a filme baseado em um livro de décadas atrás --, cuidado!
Pra começar, o aspecto contemplativo e lisérgico do primeiro filme se perde bastante. Ainda temos os enquadramentos grandiosos, a trilha sonora espetacular, a fotografia de tirar o fôlego, os ''sonhos'' movidos a especiarias. Mas eles são secundarios diante da necessidade de acelerar o ritmo e completar a história em pouco mais de duas horas e meia.
Vi algumas críticas bem tolerantes com essa decisão do diretor: A primeira parte estabeleceu bases de compreensão do universo, a segunda desenrola as tramas. Até concordo, mas perdemos algo da experiência imersiva nesse processo.
Uma das reclamações dos fãs de Duna, entre os quais me incluo -- considero o livro a mais poderosa história de ficção científica já criada -- é a pouca fidelidade mantida na transposição para o cinema e/ou TV. As justificativas são bem conhecidas: o livro tem uma grande profundidade de temas, envolvendo política, religião, estudos culturais, psicologia, misticismo -- além da apresentação de todo um universo imaginário de imensa complexidade. Não é fácil transferir esta gama imensa de informações para a linguagem hollywoodiana. Adaptações se fazem necessárias, e no caso de Duna elas tem de ser, muitas vezes, radicais.
Ainda que eu leve tudo isso em conta, incluindo aí os problemas da indústria -- que tem de lucrar -- e o direito de Villeneuve apresentar uma obra com assinatura própria, algumas escolhas me incomodaram muito.
Alia, por exemplo, fez muita falta. Villeneuve encurtou a cronologia, de modo que acontecimentos que se passam ao longo de trêsanos, agora são desenvolvidos ao longo de um só. E assim teve de reler o papel da irmã de Paul Atreides. Ela está lá, mas se comunicando telepaticamente por meio da mãe, que permanece grávida por toda a película.
Ou seja, Alia não chega a nascer. Não é mais aquela criancinha de dois anos de idade com a sabedoria de uma Reverenda Madre. A escolha do diretor não atrapalha a história, mas é tão frustrante quanto a ausência de Thufis Hawat, que não sobrevive à destruição da Casa dos Atreides. Uma ausência, diga-se de passagem, que descomplica muito o novelo político.
Desse modo, o papel de Jessica e de Chani ganham relevância muito maior que no livro. Eu não teria qualquer problema com isso, não fosse a ênfase demasiada no ceticismo e na independência da amante de Paul Atreides. O agnosticismo, e até mesmo a irreligiosidade de certos personagens fica escancarada demais, a ponto de dividir os Fremen em dois grandes grupos, os do sul e os do norte, sendo os primeiros retratados como ''fundamentalistas''.
É uma completa bola fora, e que eclipsa a dimensão ''antropológica'' de Duna. Não tenho paciência pra uma tribo de um planeta deserto abraçando os valores e horizontes mentais de Nova Iorque e da Califórnia. A tensão entre uma revolução que deveria vir de baixo e outra que é liderada por uma Aristocracia capaz de preparar e mobilizar as massas por meio de ''mitos fabricados'' deveria ser tratada com mais, digamos, propriedade. A ambiguidade em torno das profecias messiânicas perde o equilíbrio.
No texto de Herbert, ficamos livres para encarar todo aquele misticismo como um embate por poder entre sacerdotisas e Casas Aristocráticas, ou como um destino escrito que se desencadeia a partir das escolhas dos personagens, quer eles acreditem nele ou não. A liberdade permanece na versão de Villeneuve, mas com a adição de um embate entre céticos e religiosos que se desvia um tanto do espírito do texto.
No fim das contas, Paul Atreides perde um tempo danado no papel de ''messias irresoluto'' que não quer ''perder o amor'' da irreligiosa e cética Chani. O tom do Stilgar de Javier Bardem ajuda a aproximar os dilemas [em torno da natureza messiânica de Paul] da trilogia de Matrix.
Por outro lado, aplaudo certas escolhas. Principalmente em relação a Feyd-Rautha, interpretado de forma magistral por Austin Butler, e a Princesa Irulan, de Florence Pugh. Os dois, incluindo a interação entre ambos, estão entre os pontos altos de Duna 2.
Bom, não entendam meu texto como uma crítica demolidora. Ela é mais frustração de fã do livro. No fundo, trata-se de um filmaço, digno [alguns vão dizer que até melhor] do que o primeiro. Os aspectos técnicos que elogiei em 2021, e que renderam alguns Oscars, continuam maravilhosos. A versão é, de fato, a melhor já feita em cima do texto de Herbert. Encarem o cinema sem economizar: vale o IMAX.
Pra terminar com um elogio significativo: a explicação de Paul sobre o despertar de sua visão profética é a melhor já feita no cinema: ele percebe todas as possibilidades de futuro e sabe o que tem que fazer para instanciar aquela que deseja. Villeneuve aponta, no entanto, que Paul não é onipotente. A instanciação de uma possibilidade depende também da decisão de outras pessoas, e ele não tem como determinar isso. Esta é uma chave para entender as tensões entre ele e Chani.
De resto, a Jessica de Rebecca Ferguson é tão magnífica que quase eclipsa as demais personagens femininas, mesmo com a presença artisticamente arrebatadora de Florence Pugh.
Abaixo, texto de 2021, sobre a primeira parte, publicado originalmente no Facebook: clique aqui.
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A versão de Duna de Lynch, lançada em 1984, tem muitos méritos cinematográficos, embora o diretor a deteste por ter sido mutilada por decisão do estúdio. Mas tem também um defeito fundamental: é uma visão demasiadamente particular e que se afasta do espírito da obra do Frank Herbert.
Não é assim com Denis Villeneuve.
Evidente que a assinatura do diretor está lá. Mas ela aparece, principalmente, na grandiosidade épica, nos enquadramentos monumentais, nos planos irretocáveis que fazem do filme desse ano uma experiência pra ser vivida na telona. [E fica aqui também os aplausos de pé para a trilha sonora do Hans Zimmer, tribal, militar, rítmica, e ao mesmo tempo algo trágica.]
A narrativa visa ser fiel ao livro, sem interpretações, atualizações, metáforas com a sociedade atual ou lacrações. O fã de ficção científica e do livro vai se sentir valorizado aqui.
O respeito é tão grande, que a narrativa nem é o mais importante, mas a criação do ambiente, o desdobramento daquele universo para o espectador, a clareza dos conceitos trabalhados, o mergulho nas tramas políticas e no misticismo de Duna.
Claro que é impossível adotar essa abordagem e ao mesmo tempo transpor o primeiro livro para o cinema em um só filme. Então, esteja avisado, Villeneuve parou a história no meio, quase num interlúdio, o que já está despertando algumas críticas ao filme. Dizem que acaba quase num anticlímax, sem grande impacto emocional.
É verdade, mas só preocupante do ponto de vista da indústria, que quer fazer rios de dinheiro. A decisão por dividir o filme e interrompê-lo sem grande fuzuê é corajosa e dialoga com os fãs. O público é convidado a se engajar naquele universo, para só então saber onde ele vai levar, em vez de falsificar o mais importante da estrutura do filme com truques de roteiristas da Nova Hollywood. Duna não pode fazer como Senhor dos Anéis porque Tolkien teve de dividir sua história em três livros para publicá-la.
[A coragem é genuína porque a continuação não está garantida pelo estúdio, vai depender da bilheteria.]
Em um tempo de cinemas de heróis da Marvel, o filme transborda austeridade, é tão contemplativo quanto possível em filmes pras massas, não tem pressa -- o que é diferente de ter ''ritmo lento'', como alguns vem dizendo, só é lento pra quem não consegue fixar o olhar em um mesmo quadro por mais de três segundos.
O elenco tem acertos e outros nem tanto. Retrata os personagens com mais sobriedade e menos ''colorido'' que Lynch. Capta suas motivações e dimensões psicológicas de modo mais preciso.
Se o filme é bom? Ele é indispensável para os fãs de Duna, e um acerto incomensurável de Villeneuve.
Não deixe para assistir no PC, streaming ou TV. Vá ao cinema, e pegue uma sala com excelente imagem e som, VIP se necessário.
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