domingo, 30 de abril de 2023

Nova Resistência, o Juramento a Divindades Romanas, e o Racha na Organização, ou: de mentiras na Dissidência

 




Parte das lideranças da Nova Resistência não acredita em uma verdade objetiva e independente, mas tão somente em narrativas ou na modelação da realidade pela própria ação do sujeito. Para algumas delas, isto lhes dá a possibilidade de defender qualquer versão dos acontecimentos, por mais fantasiosa que seja, e alegar que elas tem o mesmo status e qualidade que qualquer outra apresentação dos 'fatos'. É uma forma de radicalização do pós-modernismo, em que o critério máximo de verdade se torna tão somente o interesse das lideranças do movimento. Ou de uma das lideranças do movimento, no caso Raphael Machado. 

Recentemente, desmenti no Twitter a história de que a NR teria enviado voluntários ao Donbass quando da guerra civil na Ucrânia. A organização ainda não existia em 2014, e os jovens aventureiros que viajaram para o conflito foram mobilizadas por um grupo de apoiadores da "Nova Rússia" organizado em redes sociais e que tinha como figura central um jornalista marxista cujo nome vou preservar. Este jornalista, inclusive, acabou viajando para cobrir o conflito. 

Raphael Machado participava deste grupo, mas nunca foi ao Donbass. Sua ação de intermediação se dava a partir de sua casa, em São João de Meriti. Ele também nunca teve nenhuma experiência militar. A arma mais letal que já teve oportunidade de usar foi um canivete. Quando a NR começou a se reunir ao longo de 2015, Machado usou o marketing do grupo de defesa da Ucrânia ao seu favor. Mas Lusvarghi e outros eram rapazes que gravitavam em torno do fenômeno mais amplo da dissidência, não membros da organização. E as próprias reticências do jornalista marxista em se apresentar como referência permitiu que Machado se investisse de uma importância maior do que teve naquele processo.

A Nova Resistência divulga a versão de que teria sido fundada por quatro jovens -- perspectiva que foi relativizada por um deles em conversa pessoal comigo. Mas trê deles não passavam de adolescentes, dois estavam no início da graduação, nenhum deles tinha qualquer envolvimento ou treinamento bélico. Suas qualidades eram principalmente intelectuais, não importando a imagem que pretenderam forjar depois para a organização. Voltarei a este tema em outra ocasião. Esta postagem, na verdade, pretende se focar em outro assunto.

Depois que antigas lideranças racharam com a NR em fevereiro de 2022, alguns membros mais recentes as acusaram de terem "violado o juramento da organização". Nunca dei bola pra este tipo de coisa, mas não custa desfazer essa mentira também, até para esclarecer alguns pontos que tratarei no futuro na História da Dissidência que estou escrevendo. 

A NR não exigia nenhum juramento para a entrada em suas fileiras até abril de 2019, quando o primeiro Congresso Nacional foi realizado em São Paulo. O grupo estratégico decidiu criar um para o evento. Os participantes do Congresso e os novos membros a partir de então tinham de se comprometer, diante dos camaradas e dos próprios ancestrais [antepassados, pais etc.], a nunca permitir que o braço descansasse enquanto não libertassem a Pátria dos grilhões que a aprisionavam. 

Era literalmente isso, e apenas isso. Ninguém fazia nenhum juramento de lealdade direta à NR, mas apenas uma modificação estilizada do "ou deixar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil", do Hino da Independência. 

Com o tempo, algumas lideranças do 'círculo interno' ficaram preocupadas com os rachas e defecções [saída do Idelmino vindo a formar a Aurora de Ferro, expulsão de um membro por conspiração contra os dirigentes, saída dos separatistas que fundaram a Resistência Sulista etc.]. Um fundador, que fazia parte deste grupo interno dirigente, propôs uma modificação do juramento, a ser realizada pelos membros recentes no II Congresso Nacional. A nova versão incluía um compromisso de lealdade à própria NR e de obediência irrestrita aos líderes. 

As mudanças geraram debates no círculo interno, já que alguns não a consideraram adequadas. A solução de consenso foi retirar a exigência de obediência sem contestação aos líderes e manter o compromisso de lealdade à organização. E este foi o juramento realizado pelos novos membros [e somente por eles] em outubro de 2021, no segundo Congresso Nacional.

Mas aconteceu na ocasião também um terceiro juramento, episódio que não era de conhecimento prévio nem mesmo do círculo interno da NR e que se tratou de decisão unilateral [e até então discreta] de Raphael Machado. Ele decidiu casar durante o Congresso, em cerimônia de "reconstrucionismo celtibérico". Para surpresa geral, e em meio ao rito, foi pedido aos membros não cristãos da organização que repetissem um juramento de lealdade à organização e ao seu líder [Machado] diante da invocação de divindades romanas, tal como Júpiter. 

Nem todos os membros pagãos fizeram o tal juramento, mas muitos repetiram as palavras de modo desavisado, já que não nada sabiam a respeito deste compromisso nem de seu conteúdo. Minhas conclusões sobre os motivos por trás da decisão de Raphael Machado serão apresentadas em algum capítulo futuro da História da Dissidência. 

Dentro do escopo deste texto, basta para mim ressaltar que eu nunca fiz nenhum juramento que não o de 2019, me comprometendo a lutar permanentemente para libertar meu país de toda a opressão. O restante é propaganda. 

Não que o juramento da NR deva ser considerado de modo sacrossanto. Esta é a perspectiva de Raphael Machado, que tem por objetivo criar e comandar não um movimento político, mas uma seita evoliana. O "juramento-surpresa" com invocação de divindades romanas é uma das expressões desse desejo.

ps.: em termos tradicionais, o tal juramento não tem efeito nenhum. As pessoas não sabiam o que iam jurar, apenas repetiram as palavras que lhes foram pedidas. A consciência delas não está atada por este ato.



domingo, 16 de abril de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 6: High Noon, ou: Cidade sem Princípios



NÚMERO 7: High Noon [''Matar ou Morrer''], de 1952 --> 



Obra consagrada, bem sucedida, premiada, e ao mesmo tempo controversa. Segundo John Wayne, High Noon era o filme mais anti-americano já feito. O astro se sentiu na obrigação de rebater o argumento de Fred Zinnemann, e em parceria com John Ford lançou uma resposta que se tornou também um clássico do Faroeste, e sobre a qual falarei em breve.

Uma das polêmicas suscitadas por High Noon é quanto ao impacto do ''Western Psicológico''. Os fãs mais antigos do gênero criticavam o apreço que se criava pelo desenvolvimento de dramas emocionais e dilemas morais mais complexos em um tipo de cinema considerado 'ianque' por excelência, repleto de virilidade, tópicos religiosos, messiânicos, e maniqueístas. Para eles, a busca dos diretores e roteiristas por uma pretensa profundidade temática era só expressão da repulsa que eles sentiam pelo velho e bom ''bangue-bangue'', uma tentativa de fazer ''cinema sério''. Estariam deturpando o faroeste por não conseguir encará-lo como uma obra importante e significativa em seus próprios termos. 

Mas Hign Noon não fica sob fogo cruzado só por ser um dos mais importantes faroestes psicológicos já produzidos. Houve quem criticasse a escolha de Gary Cooper para protagonista, alegando que o consagrado ator -- que já havia levado um Oscar -- estaria velho. Cooper sofreu também pela incompreensão com o Método de Interpretação para Ator, de cujo uso ele foi um dos pioneiros em Hollywood. A fotografia também foi objeto de vivo debate, dada a ausência de filtro e dos contrastes fortes entre o par claro/escuro. E Grace Kelly, que estreava em um papel importante, sempre disse detestar seu desempenho no filme.

Toda essa celeuma pode parecer mera curiosidade histórica, já que Gary Cooper ganhou seu segundo Oscar por High Noon. O filme levou o Globo de Ouro de melhor fotografia, tornando-se referência no quesito. E foi o primeiro não musical a vencer um Oscar de melhor canção. Na verdade, só não abocanhou a estatueta de melhor filme por causa de uma covardia da Academia, que, para não desagradar o Senador Joseph McCarthy, decidiu premiar ''O Maior Espetáculo da Terra'', de Cecil B. DeMille, anti-comunista ferrenho.




Chegamos assim ao cerne do quiprocó: A completude artística do filme não é exatamente o ponto, e sim suas implicações éticas e políticas. O roteiro de Carl Foreman denuncia a passividade dos estúdios e da comunidade cinematográfica à ameaça macartista que se abateu sobre a esquerda americana. Algumas figuras importantes, incluindo o roteirista, foram vítimas dos questionários do ''Comitê de Atividades Anti-Americanas'', que exigia delação de comunistas como prova de sinceridade.

O filme começa com o casamento de Will Kane, que se prepara para deixar o cargo de xerife, com Amy Fowler [Grace Kelly], uma quaker pacifista. Kelly representa a figura da mulher capaz de tirar o herói do Oeste daquele estado ambíguo entre a civilização e a selvageria, apresentando-o a uma forma de vida superior, acima da violência e do culto às armas. 

Logo depois do casamento, porém, chega a notícia de que um assassino preso por Kane cumpriu a sentença, e que vai chegar no trem do meio-dia para, junto com três cúmplices que o esperam na estação, rumar para a cidade a fim de se vingar do homem da lei. Todo o filme é gravado no intervalo de tempo real entre o casamento do Xerife, realizado às 10:40 h, e a chegada do trem do meio dia, gerando um suspense e uma tensão cada vez mais angustiante.

A primeira reação de Kane é ouvir os pedidos de sua mulher, amigos e cidadãos em geral, e fugir. Mas no meio do caminho, já fora do perímetro urbano, se arrepende e retorna para colocar mais uma vez o distintivo. Ele decide enfrentar os bandidos, já que oficialmente é Xerife da cidade até o dia seguinte.




A escolha não é engolida por quase ninguém. A primeira crítica parte da própria mulher, que o abandona. Amy se diz guiada por seu princípio pacifista. Na sua escala de valores, o marido estava preferindo a violência à vida de paz. A personagem de Grace Kelly não se mostra capaz de entender as motivações do marido, e chega a imaginar que se trata de paixão por uma prostituta local, a mexicana Helen Ramírez, vivida por Katy Jurado. Temos aqui, aliás, mais um tipo clássico do gênero, a prostituta de bom coração, única a entender as razões de Kane e também a antever que a cidade toda o deixaria sozinho em seu momento de maior necessidade.

Sozinho enquanto o relógio corre, Kane busca ajuda entre os cidadãos respeitáveis e outros nem tanto, velhos companheiros, amigos e até na Igreja local, último bastião da ética comunitária, apenas para dolorosamente testemunhar todos lhe dando as costas. Zinnemann desce a lenha no pragmatismo, a verdadeira religião americana. Kane era Xerife de uma cidade sem princípios e que não merecia ser salva. O personagem de Gary Cooper não poderia se encontrar mais solitário, como demonstrado pela famosa cena em que caminha suando frio por uma cidade sem viva alma, aparentemente deserta. O tic-tac dos relógios se torna ainda mais excruciante, estourando por cima do protagonista enquanto ele escreve seu testamento na delegacia.




Mas as motivações de Kane tampouco são claras. Em nenhum momento fica explícito que o Xerife é movido apenas pelo desejo de cumprir o dever cívico. Ele titubeia a todo momento, não entende bem porque tomou aquela decisão. É um homem em conflito entre o dever, o princípio, o pragmatismo, a palavra dada à esposa, o medo, o sentimento de repúdio pela hipocrisia e ingratidão da cidade, e o orgulho que não o permite chutar o pau da barraca.

O debate gerado por High Noon  torna impossível contar a história do cinema sem mencioná-lo. O Faroeste é expressão cinematográfica de um dos principais mitos constitutivos do imaginário norte-americano. A obra de Zinnemann coloca o dedo em feridas profundas da alma da sociedade dos EUA.

terça-feira, 7 de março de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 5: THE GUNFIGHTER, ou: A marca de Caim

 




NÚMERO 6: The Gunfighter [''O Matador''], de 1950 -->


Os anos 1950 foram os de maior desenvolvimento do "faoreste psicológico'', subgênero que se tornou divisivo entre apreciadores dos bangue-bangues clássicos. Alguns argumentavam que essa linha partia de um preconceito contra o próprio "Western", tratando-o como cinema simplório marcado apenas por duelos, perseguições a cavalo e demonstrações tolas de virilidade.


Mas esse filme dirigida por Henry King e estrelado por Gregory Peck e Millard Mitchell revela o quanto a abordagem podem acrescentar ao gênero sem no entanto descaracterizá-lo.


The Gunfighter exemplifica a influência do cinema noir nestes bons tempos em que brilhavam no Faroeste diretores do porte de Anthony Mann.


O protagonista Jimmie Ringo, interpretado por Gregory Peck, é referência ao lendário pistoleiro John Ringo, que assombrou o Velho Oeste com sua rapidez no gatilho e frieza para matar. O Ringo do mundo real esteve presente no arquetípico tiroteio do Curral OK, contra os irmãos Earp e Doc Holliday. Apareceu morto com um tiro na cabeça nos anos 1880, e ainda hoje se especula se foi vítima da vingança que Wyatt realizou contra os caubóis que perpetraram atentados contra seus irmãos; ou se sucumbiu à própria tendência depressiva e meteu uma bala nos miolos.


Como em todo bom noir, o Jimmie vivido por Peck é assombrado pelo passado, e quer fugir de seus estigmas para finalmente cuidar da família. Ringo tem um filho de oito anos que não vê desde que era um bebê, e pretende reconquistar a confiança da mulher, que o abandonou, mudou de nome e se tornou professora da pequena cidade de Cayene.


Mas o enredo quase não dá margem para que ele nutra esperança em qualquer legado que não o da fama de pistoleiro mais malvado e veloz do Oeste Selvagem. Em toda cidade em que chega, Ringo atrai a atenção não só dos cidadãos locais -- em um misto de admiração e temor por aquela celebridade -- mas também de jovens aventureiros doidos por desafiarem o mito e o vencerem em um duelo que lhes proporcionaria status e glória.





Fugindo do Karma, Ringo só aumenta a sombra que o persegue, deixando uma fila de cadáveres por onde passa e se tornando objeto da vingança dos familiares dos jovens que o desafiam à procura de renome.


Em vez de um matador sedento por sangue, o pistoleiro de Peck é um homem que, ainda que mantenha a imensa periculosidade, perdeu o brilho nos olhos, decepcionado com o peso da própria biografia, observando com certa inveja a vida pacata de rancheiros locais, implorando por um renascimento, e mergulhado em ansiedade, tensão e solidão.

Obra magistral focada no contágio de uma maldição que engole quem a carrega e que desconstrói o mito do ''revólver mais rápido'' -- basilar no imaginário do Velho Oeste. The Gunfighter narra a transmissão pestilenta do pecado e da marca de Caim.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 4: FORT APACHE




 NÚMERO 5: Fort Apache ["Sangue de Heróis''], de 1948 -->


Minha homenagem à famosa ''trilogia da cavalaria'', que inclui ''She wore a Yellow Ribbon'' [Legião Invencível], de 1949; e ''Rio Grande'' [Rio Bravo], de 1950, mas se sustenta sozinho: dirigido por Henry Ford e reunindo John Wayne, Henry Fonda e Shirley Temple, não podia ser nada menos que uma obra prima.


Dois elementos chamam atenção em Fort Apache: Primeiro, a obra rompe com o estereótipo comum no gênero até então, e que identificava os indígenas com o caos e a selvageria, ameaça sempre presente no caminho dos colonos e aventureiros que desbravavam e civilizavam o Oeste. Os Apaches de John Ford não são o real perigo nem os verdadeiros antagonistas. Esse título cabe, antes de tudo, ao comerciante da reserva indígena, que sintomaticamente é o representante do governo dos Estados Unidos e cuja autoridade é respeitada até pelos oficiais superiores do Exército. O comerciante/governo se aproveitava da boa fé dos nativos para cometer abusos econômicos e espalhar vício entre os mescaleros. Quando os líderes apaches em pé de guerra [Cochise e Geronimo são incluídos no roteiro] se encontram com o comandante Thursday [vivido por Henry Fonda] para explicar a situação, colocam a culpa no comerciante: ''O Grande Pai Branco nos prometeu proteção, mas ele nos trouxe uma morte lenta'', declaram; e resumem o papel do comerciante da reserva, explicando porque voltaram às armas: ''Ele é pior do que a guerra. Esta mata homens, mas ele mata as crianças, as mulheres e os velhos.''





A responsabilidade também recai na liderança militar ianque. O Tenente-Coronel Thursday, que acaba de se mudar para o longínquo Fort Apache na companhia da filha Filadélfia, entende sua escolha para Comandante da guarnição como uma perda de status. Era uma época em que oficiais superiores "cumulavam glórias" nas guerras indígenas, e Thursday se sentia chutado para escanteio, ''liderando homens contra mosquitos e sapos''. O Tenente-Coronel se lamenta durante a apresentação aos oficiais do Regimento: enquanto os Sioux eram guerreiros contumazes, sempre dando trabalho e oportunidade de brilho para os generais que os combatem, eles estavam perdidos em terra dos ''decadentes'' e ''covardes'' apaches. O contraponto a Thursday vem do Capitão York [interpretado por John Wayne], o Comandante anterior: Os apaches não seriam covardes, longe disso, e quando invadidos pelos Sioux em certa ocasião, os teriam colocado para correr. Este primeiro discurso em defesa dos indígenas seria repetido por Wayne ao longo do filme.


John Ford usa Thursday para desconstruir, à sua maneira, o mito do heroísmo da liderança militar da Cavalaria nas Guerras Indígenas. O oficial que buscava antes de tudo glória militar ressoa o General Custer; e assim como o personagem histórico, leva seus homens para o desastre de uma nova Batalha de Little Birghorn. O Comandante sanguinário ecoa racismo contra os "selvagens seminus", com os quais não via necessidade de manter acordos ou de respeitar a palavra dada, e também trai seus subordinados mais próximos. Sua arrogância leva à derrota trágica do Regimento frente aos mescaleros. Ford aproveita para expor a fabricação da narrativa que sustenta o mito das Guerras Indígenas. Anos depois, o falecido Thursday é mencionado e propagandeado nas escolas do Leste do país como um herói, excepcional soldado e exemplo, imagem construída em torno do General Custer por muitas décadas. Nenhum de seus oficiais nega a narrativa oficial, acreditando que ela era necessária para o Regimento e para a nação.




Mas Thursday tampouco é retratado de modo unidimensional. O racismo, a arrogância, a sede por glória e reconhecimento, não o impedem de atos nobres, inclusive em relação a desafetos. Com ordens de eficácia dúbia, ele intencionalmente salva a vida do Capitão York e escolhe morrer junto de seu alto comando. Ainda que desgostoso com o relacionamento entre sua filha Filadélfia [personagem de Shirley Temple] com o Tenente Michael O'Rourke [vivido por John Agar], dá ordens que protegem a vida do rapaz ao perceber o perigo em que metera seus homens. Suas motivações são complexas, a hybris não lhe tira a honra.


O segundo elemento fundamental da obra é a maneira como John Ford retrata o cotidiano do Regimento. O passatempo das mulheres que vivem ao lado dos maridos e pais militares, o treinamento de recrutas, a diversão dos soldados, os costumes de dança, a corte de um jovem a uma senhorita atraente, serenatas. A vitalidade do Forte se apresenta diante de nossos olhos, com personagens secundários bem desenvolvidos e trabalhados, e sem que se esqueça de citar também, ainda que por alto, determinados costumes indígenas. Por fim, uma exaltação dos valores do soldado comum, cujo nome não é citado nos livros de História, mas que, segundo o Capitão York, é a a verdadeira alma que garante continuidade às Forças Armadas. ''Eles vão lutar por 30 moedas por mês e um pouco de uísque, mas dividirão a última gota da garrafa'', nas palavras de Wayne.




Um filme que critica as motivações do alto oficialato militar sem no entanto deixar de louvar a voz do homem comum que veste a farda; que projeta honra, coragem, capacidade estratégica e resistência legítima nos líderes indígenas, inconformados com as promessas não cumpridas do ''homem branco''; que espelha o comportamento, ainda que idealizado, de diversas categorias sociais dos Estados Unidos do século XIX; e aponta para o contraponto necessário entre o mito e a história na ação e na memória ''coletiva''.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

OS DELÍRIOS DA TORCIDA ARCO-ÍRIS, PARTE 1: A TORCIDA DO FLAMENGO FOI CRIADA PELA REDE GLOBO NOS ANOS 1970?

“Poucas instituições serão tão abrangentes, nacionalmente, quanto o Flamengo — a Igreja Católica, sem dúvida, é uma delas, e, talvez o jogo do bicho. E olha que o Flamengo não promete a vida eterna e nem o enriquecimento fácil. Ao contrário, às vezes mata de enfarte e, quase sempre, só dá despesa. Mas uma coisa ele tem em comum com a religião e o bicho: a Fé! Por onde vai, o Rubro‐Negro arrasta multidões fanatizadas”.

Nelson Rodrigues




Aldeia Kariri-Xocó, interior de Alagoas, se prepara para acompanhar mais um jogo do clube de coração: "Quando o Mais Querido joga, nos reunimos e vamos assistir na casa de nossos familiares, quando vencemos comemoramos até altas horas da noite cantanto Toré, e quando prde vamos cada um para sua casa tristes, porém sem deixar a confiança abalada", diziam em 2009.


Torcida arco-íris é como os rubro-negros, principalmente os da antiga, chamam a "torcida anti-Flamengo". Dizem que é a segunda maior do Brasil, o que é discutível. Mas certamente é uma das mais criativas, capaz de elaborar uma profusão de lendas urbanas, fábulas, teorias da conspiração etc. com o intuito de explicar o sucesso perene d'O Mais Querido, que lhes dói amargamente n'alma.

Falarei sobre alguns dos delírios mais recorrentes para servir de referência para os historiadores do esporte, cada vez mais interessados em fenômenos de histeria em massa, como é o caso das ideias birutas da torcida arco-íris, ou então para aqueles que gostem de se divertir lendo sobre crenças absurdas e devaneios alucinados.



INSANIDADE 1: O Flamengo tinha uma torcida pequena antes de um suposto plano maligno elaborado pela Rede Globo nos anos 1970.


Já testemunhei gente educada, culta e informada vociferar essa teoria maluca diante de estupefato público, como quem revelava mistérios ancestrais e professasse verdades arqui-evidentes.

No campo estrito da razão e da análise dos fatos, a narrativa não tem o mínimo sentido. A televisão no Brasil tem uma história. E em 1970, só 20% dos lares tinham um aparelho de TV [metade deles nas cidades de Rio e de São Paulo]. A televisão só se torna efetivamente presente na maior parte dos domicílios pobres ao longo dos anos 1980. Mais ainda: o televisionamento de campeonatos não era comum até o fim da década de 1980. Antes disso, só partidas esporádicas e avulsas eram transmitidas. O marco da entrada da TV na difusão dos campeonatos é a Copa União em 1987. Acompanhar campeonatos sistematicamente pela televisão só se tornou prática comum nos anos 1990. Até então, o rádio era predominante, principalmente nas classes mais baixas.

[Na verdade, a predominância das transmissões de TV, a maior parte delas monopolizada pela TV Globo, tem a ver com nacionalização das torcidas paulistas, um fenômeno pós-1980. Mas este é outro papo.]


O Flamengo assumiu e revalorizou diversos estereótipos preconceituosos com que os adversários se referiam à popularidade do clube entre as classes "subalternas" e "perigosas": Time do Urubu e da Festa na Favela.


Ora, a torcida do Flamengo já era dominante nos estádios muito antes disso. O rubro-negro carioca nunca foi brilhante no Robertão, que entre 1967 e 1970 foi o embrião ou preparatório para a criação do Campeonato Brasileiro de Clubes. Era período de penúria financeira e técnica d'O Mais Querido. Ainda assim, o flamengo foi o clube que teve a melhor média de público nas quatro edições do torneio. Não é preciso recordar que a TV Globo só foi fundada em 1965, e estava longe de ser a Vênus Prateada líder de audência que se surgiria em meados da década seguinte. E que quase ninguém tinha aparelho de TV na época. E que os campeonatos tampouco eram televisionados.

As médias de público do Flamengo eram constantemente as maiores do Maracanã desde a fundação do estádio. As massas mobilizadas pelo Rolo Compressor dos anos 1950 deram à "Magnética" o status de "dona do Maracanã", algo reconhecido até por adversários: Nílton Santos explicou diversas vezes que levou Garrincha para o Botafogo porque não queria nem imaginar o que ele faria caso jogasse com "o apoio da massa rubro-negra". Isto em 1953.

Dos dez maiores públicos em confrontos de clubes na História do Maracanã [ou seja, deixando de lado as partidas que envolviam a seleção brasileira], o Flamengo esteve envolvido em nada menos que nove deles. Quatro antes de 1970.

As pesquisas de opinião não eram tão confiáveis no passado quanto depois da redemocratização. Tampouco eram nacionalizadas. Ainda assim servem de parâmetro para cidades específicas. Ora, a primeira grande pesquisa de torcidas no Rio de Janeiro, a do Instituto Gallup em 1948, mostrava o Flamengo como time de preferência de 42,5% dos cariocas, muito à frente da segunda colocada [a do Fluminense, com 23,5% das respostas]. O Rio de Janeiro era a maior cidade do país então.


Revista Placar de dezembro de 1971 comenta a pesquisa de opinião Gallup, mostrando espanto com o crescimento da torcida do Flamengo mesmo em época de vacas muito magras: um fenômeno cultural e nacional que se explica em âmbito próprio.


A percepção do gigantismo da torcida do Flamengo era algo dado para todos que acompanhassem não só os estádios nos anos 1930 e 1940, como também as festas populares nas ruas quando dos títulos do clube, e também na atração gerada nas excursões da equipe pelo Brasil. Daí que escritores e jornalistas como José Lins do Rêgo e Nelson Rodrigues tratassem o Flamengo como o time da massa já nessa época.

Por fim, o epíteto de "Mais Querido do Brasil" é ainda anterior e remonta a uma das maiores conquistas da história do clube, a Taça Salutaris, primeira e única. Ela foi entregue ao Flamengo depois do concurso realizado pelo Jornal do Brasil em todo o país para descobrir qual a equipe com maior simpatia nacional. Os votos, enviados a partir de cupons disponibilizados em edições do jornal, vinham principalmente da Capital Federal, mas também dos estados vizinhos de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo. Dos poucos mais de 736 mil votos recebidos pelo JB, 254.851 escolheram o rubro-negro carioca.

Não é possível desprezar a representatividade do concurso, que teve grande impacto. O país tinha menos de 40 milhões de habitantes, apenas um quarto deles vivendo na área urbana. O número de votos enviado para o JB é bastante relevante, e indicava de fato a imensa popularidade do Flamengo já à época.


Taça Salutaris, conferida pelo Jornal do Brasil em 1927 ao clube Mais Querido do Brasil


Sempre se procurou resposta para o tamanho e a difusão da torcida rubro-negra pelo país. O peso de ser um clube do Rio de Janeiro, capital do Império e depois primeira capital da República, além de primeira metrópole do Brasil e centro difusor de certa ideia de nacionalidade, está sem dúvida por trás da massificação do Flamengo. Mas não explica porque este clube e não, digamos, o Botafogo ou o Fluminense.

Alguns remontam a simpatia do Flamengo aos treinos que fazia na Praia do Russell. Outros, ao espírito festeiro e inclusivo da República de atletas na sede do clube, menos elitista que seus principais rivais. As cores vermelha e preta também entram no pacote de explicações, por serem ligadas a movimentos anarco-sindicalistas que, nas principais metrópoles brasileiras, foram uma das fontes de elaboração do imaginário do trabalhismo. Ou por serem as cores de Exu e suas energias, bastante poderosas na mentalidade do povo carioca.

O que se sabe ao certo é que muitos rubro-negros famosos e a própria diretoria do clube buscaram associar a identidade do Flamengo a uma identidade nacional possível: um Brasil mestiço, que integrava ricos e pobres, que era alegre e confiante. O principal nome deste projeto é o Presidente José Bastos Padilha, talvez o mais importante do clube, e que dá nome ao Estádio da Gávea, quando a sede no bairro foi erguida por ele nos anos 1930.

Esta identidade rubro-negra é reconhecida e, ainda que implicitamente, reforçada e reproduzida pelos próprios preconceitos sociais que os rivais levantam em relação ao rubro-negro: é o clube dos "marginais", que com camisa do Flamengo assaltariam nas ruas; é o "time do urubu", isto é, dos pretos; é o preferido dos pobres; clube dos "espertos e malandros"; time "da favela". Os rubro-negro são "arrogantes", fazem a festa antes mesmo do título garantido.

Todos estes estereótipos, criados ao longo de diversas décadas, repercutem o caráter eminentemente popular do Flamengo, que independe dos momentos de maior ou menor poderio da equipe. Projetos midiáticos de crescimento da própria torcida foram elaborados por São Paulo e Corinthians nas duas décadas passadas, em época em que o rubro-negro carioca estava mergulhado em dívidas e mal conseguia se segurar na primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Mas todas as pesquisas realizadas apontavam a contínua tendência de crescimento nacional da torcida do Flamengo, principalmente entre os mais jovens, o que levou Márcio Braga, um dos mais famosos ex-Presidentes d'O Mais Querido, à declaração lapidar em entrevista no início da década passada: "É um fenômeno cultural".

E organicamente nacional, para desespero da Arco-Íris.


Mosaico da torcida rubro-negra dá a chave para a compreensão do gigantismo da torcida do Flamengo: Somos uma Nação


Sejam quais forem as raízes da força do Flamengo no imaginário do brasileiro comum do Oiapoque ao Chuí, nada tem a ver com Roberto Marinho, a TV Globo ou conspirações tenebrosas elaboradas por engravatados em salões perfumados do Jardim Botânico.

A resposta talvez venha das arquibancadas pelo grito da própria Magnética: Somos uma Nação!

domingo, 5 de fevereiro de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 3



NÚMERO 4: Red River [''Rio Vermelho''], de 1948 --> O espaço mítico do Velho Oeste permite que se conte suas histórias a partir de múltiplas vozes e perspectivas. O ''barão do gado'' é uma dessas figuras mais das vezes malévola que faz papel de sombra ameaçadora a engolir comunidades inteiras, aterrorizando pequenos posseiros e contratando gangues de caubóis e ladrões. Mas nessa obra monumental do lendário cineasta Howard Hawks, ele se torna o pivô de uma jornada heroica, a abertura da trilha de Chrisholm, essencial para que rebanhos vindos do Texas alcançassem as ferrovias do Kansas, de onde partiam para alimentar os vitoriosos da Guerra Civil na Costa Leste.


''Red River'' une qualidades difíceis de serem sintetizadas: o épico trata da vida dura de caubóis em meio a uma viagem angustiante repleta de perigos de morte, um retrato da unificação do mercado americano em torno do Leste industrializado após o fim da Guerra Civil, uma aula de sociologia sobre as hierarquias no interior da vida rural americana, e ao mesmo tempo uma tragédia clássica que consegue extrair o melhor de atores até então subestimados -- ou porque não haviam ainda conquistado as telas [Montgomery Clift] ou porque seu talento não havia sido devidamente explorado [John Wayne].

Thomas Dunson é um homem duro e de fortes convicções, que não volta atrás depois de tomar uma decisão. Sua obsessão por se transformar num grande proprietário o leva a abandonar sua caravana, deixando para trás a mulher amada. Já nas primeiras cenas se estabelecem traços definitivos da personalidade do anti-herói vivido por Wayne. A promessa de retornar para buscar a amada se revela um terrível erro, que não escuta os conselhos do fiel amigo ''Groot'' Nadine, que por sua vez se cala diante da teimosias irredutível de Dunson.
Thomas consolida seu domínio sobre grande porção de terra no Texas ao roubá-la de 'Don Diego' pela força das armas. A violência do anti-herói faz referência aos conflitos de fronteira e os tratados que garantiram aos americanos o controle da região. O grupo se completa com a chegada de um menino sobrevivente de um ataque indígena à caravana: Matt Garth, vivido na fase adulta por Montgomery Clift, e é criado como filho pelo grande proprietário.

Com as premissas estabelecidas, o filme dá um salto temporal de catorze anos, para o fim da Guerra Civil. Dunsan, Groot e Matt comandam vastos pastos, um bom número de caubóis e dez mil cabeças de gado. Mas o mercado do sul não consegue absorver a produção do rancho ''River D''. A solução é abrir uma perigosa e incerta rota para as ferrovias do Missouri para escoar o rebanho para as ricas cidades do Leste. A viagem promete meses de perigos, que vão desde a possibilidade de estouros da boiada, o enfrentamento de condições climáticas extremas e ataques em sua passagem pelo território indígena [Oklahoma].

A pior ameaça, no entanto, é o temperamento do próprio Dunson, que mergulha na tirania e na paranoia. A transformação do líder em tirano é tratada de maneira soberba: Wayne começa o filme com um chapéu branco, e agora tem um negro; seus cabelos se tornam grisalhos; um tiro na perna torna sua caminhada torta; vive agora abraçado a uma garrafa de uísque.

As dificuldades da jornada criam as condições para motins, resolvidos pela força e pela aplicação de uma rotina de exaustão que impeça qualquer fuga dos empregados. O medo reina no grupo e o conflito recrudesce quando se descobre uma rota mais fácil para a maravilha tecnológica da ferrovia e que evitaria o caminho mais longo para o norte. Mas Dunson não muda suas decisões. Sua teimosia o mergulha em um estado de semi-loucura provocada pelo excesso de álcool e ausência de sono. A rebelião completa é evitada por um desafio menor mas ainda assim muito mais doloroso, com o enfrentamento entre Matt e seu pai, uma relação amorosa que se desenvolve na grande linha trágica do filme: o homem que pretende alcançar a imortalidade através do filho, o filho que se sente compelido a se provar para o pai, a confiança que se esvai por meio de uma traição motivada pela intenção de proteger a vida de todos, incluindo aí propriedade do ''barão do gado'', ameaçada pela hybris.

A grandiosidade da narrativa tem seu ponto fraco na inclusão de uma personagem feminina, nova versão do tipo clássico da ''prostituta de bom coração'': Tess Millay, cuja chegada confere tons mais psicanalíticos à trama. É ela também que está no meio da resolução do conflito entre pai e filho, em desfecho criticado por muitos como um anti-clímax.

Planos gerais exuberantes, um realismo excruciante na condução do gado pela trilha, os aspectos históricos, um roteiro magistral e atuações grandiosas tornam ''Red River'' um dos maiores clássicos do Faroeste e uma obra magna da carreira de Hawks, que ainda teria fôlego para se superar dez anos depois [mas essa é outra história]. John Wayne, por sua vez, mostra capacidade insuspeita de sair da zona de conforto, se preparando para a consagração como ator nas décadas seguintes.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 2

NÚMERO 3: My Darling Clementine [''Paixão dos Fortes''], de 1946




Wyatt Earp é um símbolo do Velho Oeste. Um sujeito de carne e osso, que atravessou todo aquele período histórico e fez de quase tudo. Caçou búfalos, foi operário de ferrovias, buscou prata em minas, gerenciou cassinos, conduziu gado por trilhas no deserto, se tornou justiceiro. Mas sua fama se consolidou por seu trabalho como xerife de cidades conflagradas, mergulhadas no caos e no conflito.

Wyatt sobreviveu ao Velho Oeste, adentrou o século XX e testemunhou o fim do estilo de vida aventureiro e desordenado que formataria para sempre o imaginário americano. Depois da Primeira Guerra Mundial já era uma lenda viva, um fóssil, e também uma fonte para os primeiros "bangue-bangues" -- força do cinema americano já na década de 1910, em pleno apogeu do cinema mudo, em um tempo em que Hollywood ainda não existia.

Uma biografia muito famosa de Earp foi lançada e se tornou um clássico instantâneo: ''Frontier Marshall'' [''Xerife da Fronteira'']. Imediatamente ela se tornou inspiração para produções dos grandes estúdios, mesmo depois que se descobriu que ela pecava por seu pequeno apego à verdade histórica. A lenda de Earp era mais forte do que os fatos, e foi elaborada, modificada, expandida em diversas versões.

Rapidamente episódios da vida de Earp se tornaram pedras basilares do mito do Oeste, como o famoso tiroteio do Curral OK, em Tombstone, em que Wyatt e dois de seus irmãos, ajudados pelo amigo Doc Holliday [outra figura indispensável na história do século XIX americano], derrotam representantes de uma gangue de ladrões de gado que se recusavam a obedecer a ordem do Xerife Virgil, que tinha proibido o porte de armas na cidade.

Elevado a símbolo da lei e da ordem, de um bravo que impôs com métodos violentos a civilização em meio a caubóis bêbedos e de armas em punho, Earp também soube deixar o distintivo de lado quando lhe apeteceu. Trabalhando muitas vezes nos meandros entre o legal e o ilegal, abraçou de vez a vida de ''fora da lei'' quando os tribunais não deram conta dos atentados que seus irmãos sofriam na mão de desafetos, incomodados com seu sucesso em pacificar cidades. O heroi reuniu um grupo, sempre apoiado pelo perigoso e carismático Doc Holliday, e saiu à caça dos inimigos, circunstância que definitivamente gravou seu nome na história da conquista do Oeste.

De todos os sucessos cinematográficos inspirados pela vida de Earp -- tais como ''Dodge City'', ''Frontier Marshall'', ''Doc'', ''Winchester 73'', ''Gunfight at the Ok Corral'', ''Hour of the Gun'', e os mais recentes ''Tombstone'' e ''Wyatt Earp'' --, ''My Darling Clementine'' [1946] é certamente o mais importante de todos, e também uma das melhores obras do mestre John Ford.

Romantizando a biografia já ultra-idealizada de Earp, Ford compôs uma poesia em forma de cinema. Não deu o papel principal para John Wayne, preferindo a figura menos dura e menos ameaçadora de Henry Fonda. Seu Wyatt é sujeito civilizado, repleto de discernimento, bem apessoado e de boa higiene, que é capaz de desarmar quase todos com sua liderança misturada a bons modos.

O lado mais sujo do heroi do ''western'' fica por conta do Doc Halliday [a mudança de nome foi para evitar conflitos com a família de Holliday] de Victor Mature, um cirurgião que deixou a sociedade da Costa Leste para se tornar o homem mais respeitado de Tombstone, levando a vida entre tiroteios, bebedeiras em tabernas, jogos de azar, os amores da dançarina Chihuahua e crises de uma tuberculose já em estágio avançado. Halliday poderia parecer um perigo para a tentativa de Earp de colocar ordem na cidade conflagrada, mas os dois estabelecem uma genuína amizade desde o primeiro encontro.

O título do filme faz menção a uma personagem fictícia e à famosa música folclórica. Clementine é uma enfermeira apaixonada por Doc, e que procura por ele na tumba do Oeste em decomposição. Apesar de todo o amor, os dois não ficarão juntos. O cirurgião sabe que há uma sentença de morte pairando sobre ele, similar ao destino traçado para o próprio Velho Oeste. A tensão que se estabelece entre a moça civilizada das metrópoles e Earp dá o tom do filme, uma paixão platônica que jamais se concretiza pela lealdade implicada na amizade entre o pistoleiro tuberculoso e o xerife.

A dinâmica da narrativa não esconde o fio de Ariadne do gênero, a busca por vingança. Wyatt aceitou ser xerife de Tombstone depois que seu irmão mais novo foi assassinado por ladrões de gado. A possibilidade de revanche dos Earp dá um sentido diferente a todos os atos que realiza em defesa da lei.

Mas o que chama atenção nessa peça única de Ford é o seu retrato singular do Faroeste. Os EUA saíam da II Guerra Mundial e rumavam para seu destino urbano, cosmopolita e tecnológico. Em contraste, John Ford oferece para sua Tombstone um panorama rústico, simples, vagaroso. O cotidiano rural está em todo lugar: conversas na taberna, preparativos para a quermesse, pregações da Igreja, danças, jogos de pôquer. O diretor presta homenagem àquele ritmo peculiar, àquela temporalidade distinta que marca a vida campestre do Velho Oeste, mais do que a uma loucura veloz de perseguições, duelos e balas zunindo que caracterizavam esse mundo imaginário.

Mais do que ação desenfreada, Ford dá a seu público um poema, uma ilustração da canção homônima do filme, como se um pequeno criador de gado tocasse sua viola do fundo de um Saloon e colocasse em palavras ritmadas e caipiras as cenas predominantes do mito. Ou como a tomada de Wyatt Earp [Henry Fonda] sentado em frente ao hotel da cidade, apoiando seu pé numa pilastra e balançando sua cadeira enquanto observa sem pressa o caminhar do pequeno povoado que se desdobra diante de seus olhos.
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