sábado, 11 de fevereiro de 2023

OS DELÍRIOS DA TORCIDA ARCO-ÍRIS, PARTE 1: A TORCIDA DO FLAMENGO FOI CRIADA PELA REDE GLOBO NOS ANOS 1970?

“Poucas instituições serão tão abrangentes, nacionalmente, quanto o Flamengo — a Igreja Católica, sem dúvida, é uma delas, e, talvez o jogo do bicho. E olha que o Flamengo não promete a vida eterna e nem o enriquecimento fácil. Ao contrário, às vezes mata de enfarte e, quase sempre, só dá despesa. Mas uma coisa ele tem em comum com a religião e o bicho: a Fé! Por onde vai, o Rubro‐Negro arrasta multidões fanatizadas”.

Nelson Rodrigues




Aldeia Kariri-Xocó, interior de Alagoas, se prepara para acompanhar mais um jogo do clube de coração: "Quando o Mais Querido joga, nos reunimos e vamos assistir na casa de nossos familiares, quando vencemos comemoramos até altas horas da noite cantanto Toré, e quando prde vamos cada um para sua casa tristes, porém sem deixar a confiança abalada", diziam em 2009.


Torcida arco-íris é como os rubro-negros, principalmente os da antiga, chamam a "torcida anti-Flamengo". Dizem que é a segunda maior do Brasil, o que é discutível. Mas certamente é uma das mais criativas, capaz de elaborar uma profusão de lendas urbanas, fábulas, teorias da conspiração etc. com o intuito de explicar o sucesso perene d'O Mais Querido, que lhes dói amargamente n'alma.

Falarei sobre alguns dos delírios mais recorrentes para servir de referência para os historiadores do esporte, cada vez mais interessados em fenômenos de histeria em massa, como é o caso das ideias birutas da torcida arco-íris, ou então para aqueles que gostem de se divertir lendo sobre crenças absurdas e devaneios alucinados.



INSANIDADE 1: O Flamengo tinha uma torcida pequena antes de um suposto plano maligno elaborado pela Rede Globo nos anos 1970.


Já testemunhei gente educada, culta e informada vociferar essa teoria maluca diante de estupefato público, como quem revelava mistérios ancestrais e professasse verdades arqui-evidentes.

No campo estrito da razão e da análise dos fatos, a narrativa não tem o mínimo sentido. A televisão no Brasil tem uma história. E em 1970, só 20% dos lares tinham um aparelho de TV [metade deles nas cidades de Rio e de São Paulo]. A televisão só se torna efetivamente presente na maior parte dos domicílios pobres ao longo dos anos 1980. Mais ainda: o televisionamento de campeonatos não era comum até o fim da década de 1980. Antes disso, só partidas esporádicas e avulsas eram transmitidas. O marco da entrada da TV na difusão dos campeonatos é a Copa União em 1987. Acompanhar campeonatos sistematicamente pela televisão só se tornou prática comum nos anos 1990. Até então, o rádio era predominante, principalmente nas classes mais baixas.

[Na verdade, a predominância das transmissões de TV, a maior parte delas monopolizada pela TV Globo, tem a ver com nacionalização das torcidas paulistas, um fenômeno pós-1980. Mas este é outro papo.]


O Flamengo assumiu e revalorizou diversos estereótipos preconceituosos com que os adversários se referiam à popularidade do clube entre as classes "subalternas" e "perigosas": Time do Urubu e da Festa na Favela.


Ora, a torcida do Flamengo já era dominante nos estádios muito antes disso. O rubro-negro carioca nunca foi brilhante no Robertão, que entre 1967 e 1970 foi o embrião ou preparatório para a criação do Campeonato Brasileiro de Clubes. Era período de penúria financeira e técnica d'O Mais Querido. Ainda assim, o flamengo foi o clube que teve a melhor média de público nas quatro edições do torneio. Não é preciso recordar que a TV Globo só foi fundada em 1965, e estava longe de ser a Vênus Prateada líder de audência que se surgiria em meados da década seguinte. E que quase ninguém tinha aparelho de TV na época. E que os campeonatos tampouco eram televisionados.

As médias de público do Flamengo eram constantemente as maiores do Maracanã desde a fundação do estádio. As massas mobilizadas pelo Rolo Compressor dos anos 1950 deram à "Magnética" o status de "dona do Maracanã", algo reconhecido até por adversários: Nílton Santos explicou diversas vezes que levou Garrincha para o Botafogo porque não queria nem imaginar o que ele faria caso jogasse com "o apoio da massa rubro-negra". Isto em 1953.

Dos dez maiores públicos em confrontos de clubes na História do Maracanã [ou seja, deixando de lado as partidas que envolviam a seleção brasileira], o Flamengo esteve envolvido em nada menos que nove deles. Quatro antes de 1970.

As pesquisas de opinião não eram tão confiáveis no passado quanto depois da redemocratização. Tampouco eram nacionalizadas. Ainda assim servem de parâmetro para cidades específicas. Ora, a primeira grande pesquisa de torcidas no Rio de Janeiro, a do Instituto Gallup em 1948, mostrava o Flamengo como time de preferência de 42,5% dos cariocas, muito à frente da segunda colocada [a do Fluminense, com 23,5% das respostas]. O Rio de Janeiro era a maior cidade do país então.


Revista Placar de dezembro de 1971 comenta a pesquisa de opinião Gallup, mostrando espanto com o crescimento da torcida do Flamengo mesmo em época de vacas muito magras: um fenômeno cultural e nacional que se explica em âmbito próprio.


A percepção do gigantismo da torcida do Flamengo era algo dado para todos que acompanhassem não só os estádios nos anos 1930 e 1940, como também as festas populares nas ruas quando dos títulos do clube, e também na atração gerada nas excursões da equipe pelo Brasil. Daí que escritores e jornalistas como José Lins do Rêgo e Nelson Rodrigues tratassem o Flamengo como o time da massa já nessa época.

Por fim, o epíteto de "Mais Querido do Brasil" é ainda anterior e remonta a uma das maiores conquistas da história do clube, a Taça Salutaris, primeira e única. Ela foi entregue ao Flamengo depois do concurso realizado pelo Jornal do Brasil em todo o país para descobrir qual a equipe com maior simpatia nacional. Os votos, enviados a partir de cupons disponibilizados em edições do jornal, vinham principalmente da Capital Federal, mas também dos estados vizinhos de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo. Dos poucos mais de 736 mil votos recebidos pelo JB, 254.851 escolheram o rubro-negro carioca.

Não é possível desprezar a representatividade do concurso, que teve grande impacto. O país tinha menos de 40 milhões de habitantes, apenas um quarto deles vivendo na área urbana. O número de votos enviado para o JB é bastante relevante, e indicava de fato a imensa popularidade do Flamengo já à época.


Taça Salutaris, conferida pelo Jornal do Brasil em 1927 ao clube Mais Querido do Brasil


Sempre se procurou resposta para o tamanho e a difusão da torcida rubro-negra pelo país. O peso de ser um clube do Rio de Janeiro, capital do Império e depois primeira capital da República, além de primeira metrópole do Brasil e centro difusor de certa ideia de nacionalidade, está sem dúvida por trás da massificação do Flamengo. Mas não explica porque este clube e não, digamos, o Botafogo ou o Fluminense.

Alguns remontam a simpatia do Flamengo aos treinos que fazia na Praia do Russell. Outros, ao espírito festeiro e inclusivo da República de atletas na sede do clube, menos elitista que seus principais rivais. As cores vermelha e preta também entram no pacote de explicações, por serem ligadas a movimentos anarco-sindicalistas que, nas principais metrópoles brasileiras, foram uma das fontes de elaboração do imaginário do trabalhismo. Ou por serem as cores de Exu e suas energias, bastante poderosas na mentalidade do povo carioca.

O que se sabe ao certo é que muitos rubro-negros famosos e a própria diretoria do clube buscaram associar a identidade do Flamengo a uma identidade nacional possível: um Brasil mestiço, que integrava ricos e pobres, que era alegre e confiante. O principal nome deste projeto é o Presidente José Bastos Padilha, talvez o mais importante do clube, e que dá nome ao Estádio da Gávea, quando a sede no bairro foi erguida por ele nos anos 1930.

Esta identidade rubro-negra é reconhecida e, ainda que implicitamente, reforçada e reproduzida pelos próprios preconceitos sociais que os rivais levantam em relação ao rubro-negro: é o clube dos "marginais", que com camisa do Flamengo assaltariam nas ruas; é o "time do urubu", isto é, dos pretos; é o preferido dos pobres; clube dos "espertos e malandros"; time "da favela". Os rubro-negro são "arrogantes", fazem a festa antes mesmo do título garantido.

Todos estes estereótipos, criados ao longo de diversas décadas, repercutem o caráter eminentemente popular do Flamengo, que independe dos momentos de maior ou menor poderio da equipe. Projetos midiáticos de crescimento da própria torcida foram elaborados por São Paulo e Corinthians nas duas décadas passadas, em época em que o rubro-negro carioca estava mergulhado em dívidas e mal conseguia se segurar na primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Mas todas as pesquisas realizadas apontavam a contínua tendência de crescimento nacional da torcida do Flamengo, principalmente entre os mais jovens, o que levou Márcio Braga, um dos mais famosos ex-Presidentes d'O Mais Querido, à declaração lapidar em entrevista no início da década passada: "É um fenômeno cultural".

E organicamente nacional, para desespero da Arco-Íris.


Mosaico da torcida rubro-negra dá a chave para a compreensão do gigantismo da torcida do Flamengo: Somos uma Nação


Sejam quais forem as raízes da força do Flamengo no imaginário do brasileiro comum do Oiapoque ao Chuí, nada tem a ver com Roberto Marinho, a TV Globo ou conspirações tenebrosas elaboradas por engravatados em salões perfumados do Jardim Botânico.

A resposta talvez venha das arquibancadas pelo grito da própria Magnética: Somos uma Nação!

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