NÚMERO 5: Fort Apache ["Sangue de Heróis''], de 1948 -->
Minha homenagem à famosa ''trilogia da cavalaria'', que inclui ''She wore a Yellow Ribbon'' [Legião Invencível], de 1949; e ''Rio Grande'' [Rio Bravo], de 1950, mas se sustenta sozinho: dirigido por Henry Ford e reunindo John Wayne, Henry Fonda e Shirley Temple, não podia ser nada menos que uma obra prima.
Dois elementos chamam atenção em Fort Apache: Primeiro, a obra rompe com o estereótipo comum no gênero até então, e que identificava os indígenas com o caos e a selvageria, ameaça sempre presente no caminho dos colonos e aventureiros que desbravavam e civilizavam o Oeste. Os Apaches de John Ford não são o real perigo nem os verdadeiros antagonistas. Esse título cabe, antes de tudo, ao comerciante da reserva indígena, que sintomaticamente é o representante do governo dos Estados Unidos e cuja autoridade é respeitada até pelos oficiais superiores do Exército. O comerciante/governo se aproveitava da boa fé dos nativos para cometer abusos econômicos e espalhar vício entre os mescaleros. Quando os líderes apaches em pé de guerra [Cochise e Geronimo são incluídos no roteiro] se encontram com o comandante Thursday [vivido por Henry Fonda] para explicar a situação, colocam a culpa no comerciante: ''O Grande Pai Branco nos prometeu proteção, mas ele nos trouxe uma morte lenta'', declaram; e resumem o papel do comerciante da reserva, explicando porque voltaram às armas: ''Ele é pior do que a guerra. Esta mata homens, mas ele mata as crianças, as mulheres e os velhos.''
A responsabilidade também recai na liderança militar ianque. O Tenente-Coronel Thursday, que acaba de se mudar para o longínquo Fort Apache na companhia da filha Filadélfia, entende sua escolha para Comandante da guarnição como uma perda de status. Era uma época em que oficiais superiores "cumulavam glórias" nas guerras indígenas, e Thursday se sentia chutado para escanteio, ''liderando homens contra mosquitos e sapos''. O Tenente-Coronel se lamenta durante a apresentação aos oficiais do Regimento: enquanto os Sioux eram guerreiros contumazes, sempre dando trabalho e oportunidade de brilho para os generais que os combatem, eles estavam perdidos em terra dos ''decadentes'' e ''covardes'' apaches. O contraponto a Thursday vem do Capitão York [interpretado por John Wayne], o Comandante anterior: Os apaches não seriam covardes, longe disso, e quando invadidos pelos Sioux em certa ocasião, os teriam colocado para correr. Este primeiro discurso em defesa dos indígenas seria repetido por Wayne ao longo do filme.
John Ford usa Thursday para desconstruir, à sua maneira, o mito do heroísmo da liderança militar da Cavalaria nas Guerras Indígenas. O oficial que buscava antes de tudo glória militar ressoa o General Custer; e assim como o personagem histórico, leva seus homens para o desastre de uma nova Batalha de Little Birghorn. O Comandante sanguinário ecoa racismo contra os "selvagens seminus", com os quais não via necessidade de manter acordos ou de respeitar a palavra dada, e também trai seus subordinados mais próximos. Sua arrogância leva à derrota trágica do Regimento frente aos mescaleros. Ford aproveita para expor a fabricação da narrativa que sustenta o mito das Guerras Indígenas. Anos depois, o falecido Thursday é mencionado e propagandeado nas escolas do Leste do país como um herói, excepcional soldado e exemplo, imagem construída em torno do General Custer por muitas décadas. Nenhum de seus oficiais nega a narrativa oficial, acreditando que ela era necessária para o Regimento e para a nação.
Mas Thursday tampouco é retratado de modo unidimensional. O racismo, a arrogância, a sede por glória e reconhecimento, não o impedem de atos nobres, inclusive em relação a desafetos. Com ordens de eficácia dúbia, ele intencionalmente salva a vida do Capitão York e escolhe morrer junto de seu alto comando. Ainda que desgostoso com o relacionamento entre sua filha Filadélfia [personagem de Shirley Temple] com o Tenente Michael O'Rourke [vivido por John Agar], dá ordens que protegem a vida do rapaz ao perceber o perigo em que metera seus homens. Suas motivações são complexas, a hybris não lhe tira a honra.
O segundo elemento fundamental da obra é a maneira como John Ford retrata o cotidiano do Regimento. O passatempo das mulheres que vivem ao lado dos maridos e pais militares, o treinamento de recrutas, a diversão dos soldados, os costumes de dança, a corte de um jovem a uma senhorita atraente, serenatas. A vitalidade do Forte se apresenta diante de nossos olhos, com personagens secundários bem desenvolvidos e trabalhados, e sem que se esqueça de citar também, ainda que por alto, determinados costumes indígenas. Por fim, uma exaltação dos valores do soldado comum, cujo nome não é citado nos livros de História, mas que, segundo o Capitão York, é a a verdadeira alma que garante continuidade às Forças Armadas. ''Eles vão lutar por 30 moedas por mês e um pouco de uísque, mas dividirão a última gota da garrafa'', nas palavras de Wayne.
Um filme que critica as motivações do alto oficialato militar sem no entanto deixar de louvar a voz do homem comum que veste a farda; que projeta honra, coragem, capacidade estratégica e resistência legítima nos líderes indígenas, inconformados com as promessas não cumpridas do ''homem branco''; que espelha o comportamento, ainda que idealizado, de diversas categorias sociais dos Estados Unidos do século XIX; e aponta para o contraponto necessário entre o mito e a história na ação e na memória ''coletiva''.
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