domingo, 5 de fevereiro de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 3



NÚMERO 4: Red River [''Rio Vermelho''], de 1948 --> O espaço mítico do Velho Oeste permite que se conte suas histórias a partir de múltiplas vozes e perspectivas. O ''barão do gado'' é uma dessas figuras mais das vezes malévola que faz papel de sombra ameaçadora a engolir comunidades inteiras, aterrorizando pequenos posseiros e contratando gangues de caubóis e ladrões. Mas nessa obra monumental do lendário cineasta Howard Hawks, ele se torna o pivô de uma jornada heroica, a abertura da trilha de Chrisholm, essencial para que rebanhos vindos do Texas alcançassem as ferrovias do Kansas, de onde partiam para alimentar os vitoriosos da Guerra Civil na Costa Leste.


''Red River'' une qualidades difíceis de serem sintetizadas: o épico trata da vida dura de caubóis em meio a uma viagem angustiante repleta de perigos de morte, um retrato da unificação do mercado americano em torno do Leste industrializado após o fim da Guerra Civil, uma aula de sociologia sobre as hierarquias no interior da vida rural americana, e ao mesmo tempo uma tragédia clássica que consegue extrair o melhor de atores até então subestimados -- ou porque não haviam ainda conquistado as telas [Montgomery Clift] ou porque seu talento não havia sido devidamente explorado [John Wayne].

Thomas Dunson é um homem duro e de fortes convicções, que não volta atrás depois de tomar uma decisão. Sua obsessão por se transformar num grande proprietário o leva a abandonar sua caravana, deixando para trás a mulher amada. Já nas primeiras cenas se estabelecem traços definitivos da personalidade do anti-herói vivido por Wayne. A promessa de retornar para buscar a amada se revela um terrível erro, que não escuta os conselhos do fiel amigo ''Groot'' Nadine, que por sua vez se cala diante da teimosias irredutível de Dunson.
Thomas consolida seu domínio sobre grande porção de terra no Texas ao roubá-la de 'Don Diego' pela força das armas. A violência do anti-herói faz referência aos conflitos de fronteira e os tratados que garantiram aos americanos o controle da região. O grupo se completa com a chegada de um menino sobrevivente de um ataque indígena à caravana: Matt Garth, vivido na fase adulta por Montgomery Clift, e é criado como filho pelo grande proprietário.

Com as premissas estabelecidas, o filme dá um salto temporal de catorze anos, para o fim da Guerra Civil. Dunsan, Groot e Matt comandam vastos pastos, um bom número de caubóis e dez mil cabeças de gado. Mas o mercado do sul não consegue absorver a produção do rancho ''River D''. A solução é abrir uma perigosa e incerta rota para as ferrovias do Missouri para escoar o rebanho para as ricas cidades do Leste. A viagem promete meses de perigos, que vão desde a possibilidade de estouros da boiada, o enfrentamento de condições climáticas extremas e ataques em sua passagem pelo território indígena [Oklahoma].

A pior ameaça, no entanto, é o temperamento do próprio Dunson, que mergulha na tirania e na paranoia. A transformação do líder em tirano é tratada de maneira soberba: Wayne começa o filme com um chapéu branco, e agora tem um negro; seus cabelos se tornam grisalhos; um tiro na perna torna sua caminhada torta; vive agora abraçado a uma garrafa de uísque.

As dificuldades da jornada criam as condições para motins, resolvidos pela força e pela aplicação de uma rotina de exaustão que impeça qualquer fuga dos empregados. O medo reina no grupo e o conflito recrudesce quando se descobre uma rota mais fácil para a maravilha tecnológica da ferrovia e que evitaria o caminho mais longo para o norte. Mas Dunson não muda suas decisões. Sua teimosia o mergulha em um estado de semi-loucura provocada pelo excesso de álcool e ausência de sono. A rebelião completa é evitada por um desafio menor mas ainda assim muito mais doloroso, com o enfrentamento entre Matt e seu pai, uma relação amorosa que se desenvolve na grande linha trágica do filme: o homem que pretende alcançar a imortalidade através do filho, o filho que se sente compelido a se provar para o pai, a confiança que se esvai por meio de uma traição motivada pela intenção de proteger a vida de todos, incluindo aí propriedade do ''barão do gado'', ameaçada pela hybris.

A grandiosidade da narrativa tem seu ponto fraco na inclusão de uma personagem feminina, nova versão do tipo clássico da ''prostituta de bom coração'': Tess Millay, cuja chegada confere tons mais psicanalíticos à trama. É ela também que está no meio da resolução do conflito entre pai e filho, em desfecho criticado por muitos como um anti-clímax.

Planos gerais exuberantes, um realismo excruciante na condução do gado pela trilha, os aspectos históricos, um roteiro magistral e atuações grandiosas tornam ''Red River'' um dos maiores clássicos do Faroeste e uma obra magna da carreira de Hawks, que ainda teria fôlego para se superar dez anos depois [mas essa é outra história]. John Wayne, por sua vez, mostra capacidade insuspeita de sair da zona de conforto, se preparando para a consagração como ator nas décadas seguintes.

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