domingo, 16 de abril de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 6: High Noon, ou: Cidade sem Princípios



NÚMERO 7: High Noon [''Matar ou Morrer''], de 1952 --> 



Obra consagrada, bem sucedida, premiada, e ao mesmo tempo controversa. Segundo John Wayne, High Noon era o filme mais anti-americano já feito. O astro se sentiu na obrigação de rebater o argumento de Fred Zinnemann, e em parceria com John Ford lançou uma resposta que se tornou também um clássico do Faroeste, e sobre a qual falarei em breve.

Uma das polêmicas suscitadas por High Noon é quanto ao impacto do ''Western Psicológico''. Os fãs mais antigos do gênero criticavam o apreço que se criava pelo desenvolvimento de dramas emocionais e dilemas morais mais complexos em um tipo de cinema considerado 'ianque' por excelência, repleto de virilidade, tópicos religiosos, messiânicos, e maniqueístas. Para eles, a busca dos diretores e roteiristas por uma pretensa profundidade temática era só expressão da repulsa que eles sentiam pelo velho e bom ''bangue-bangue'', uma tentativa de fazer ''cinema sério''. Estariam deturpando o faroeste por não conseguir encará-lo como uma obra importante e significativa em seus próprios termos. 

Mas Hign Noon não fica sob fogo cruzado só por ser um dos mais importantes faroestes psicológicos já produzidos. Houve quem criticasse a escolha de Gary Cooper para protagonista, alegando que o consagrado ator -- que já havia levado um Oscar -- estaria velho. Cooper sofreu também pela incompreensão com o Método de Interpretação para Ator, de cujo uso ele foi um dos pioneiros em Hollywood. A fotografia também foi objeto de vivo debate, dada a ausência de filtro e dos contrastes fortes entre o par claro/escuro. E Grace Kelly, que estreava em um papel importante, sempre disse detestar seu desempenho no filme.

Toda essa celeuma pode parecer mera curiosidade histórica, já que Gary Cooper ganhou seu segundo Oscar por High Noon. O filme levou o Globo de Ouro de melhor fotografia, tornando-se referência no quesito. E foi o primeiro não musical a vencer um Oscar de melhor canção. Na verdade, só não abocanhou a estatueta de melhor filme por causa de uma covardia da Academia, que, para não desagradar o Senador Joseph McCarthy, decidiu premiar ''O Maior Espetáculo da Terra'', de Cecil B. DeMille, anti-comunista ferrenho.




Chegamos assim ao cerne do quiprocó: A completude artística do filme não é exatamente o ponto, e sim suas implicações éticas e políticas. O roteiro de Carl Foreman denuncia a passividade dos estúdios e da comunidade cinematográfica à ameaça macartista que se abateu sobre a esquerda americana. Algumas figuras importantes, incluindo o roteirista, foram vítimas dos questionários do ''Comitê de Atividades Anti-Americanas'', que exigia delação de comunistas como prova de sinceridade.

O filme começa com o casamento de Will Kane, que se prepara para deixar o cargo de xerife, com Amy Fowler [Grace Kelly], uma quaker pacifista. Kelly representa a figura da mulher capaz de tirar o herói do Oeste daquele estado ambíguo entre a civilização e a selvageria, apresentando-o a uma forma de vida superior, acima da violência e do culto às armas. 

Logo depois do casamento, porém, chega a notícia de que um assassino preso por Kane cumpriu a sentença, e que vai chegar no trem do meio-dia para, junto com três cúmplices que o esperam na estação, rumar para a cidade a fim de se vingar do homem da lei. Todo o filme é gravado no intervalo de tempo real entre o casamento do Xerife, realizado às 10:40 h, e a chegada do trem do meio dia, gerando um suspense e uma tensão cada vez mais angustiante.

A primeira reação de Kane é ouvir os pedidos de sua mulher, amigos e cidadãos em geral, e fugir. Mas no meio do caminho, já fora do perímetro urbano, se arrepende e retorna para colocar mais uma vez o distintivo. Ele decide enfrentar os bandidos, já que oficialmente é Xerife da cidade até o dia seguinte.




A escolha não é engolida por quase ninguém. A primeira crítica parte da própria mulher, que o abandona. Amy se diz guiada por seu princípio pacifista. Na sua escala de valores, o marido estava preferindo a violência à vida de paz. A personagem de Grace Kelly não se mostra capaz de entender as motivações do marido, e chega a imaginar que se trata de paixão por uma prostituta local, a mexicana Helen Ramírez, vivida por Katy Jurado. Temos aqui, aliás, mais um tipo clássico do gênero, a prostituta de bom coração, única a entender as razões de Kane e também a antever que a cidade toda o deixaria sozinho em seu momento de maior necessidade.

Sozinho enquanto o relógio corre, Kane busca ajuda entre os cidadãos respeitáveis e outros nem tanto, velhos companheiros, amigos e até na Igreja local, último bastião da ética comunitária, apenas para dolorosamente testemunhar todos lhe dando as costas. Zinnemann desce a lenha no pragmatismo, a verdadeira religião americana. Kane era Xerife de uma cidade sem princípios e que não merecia ser salva. O personagem de Gary Cooper não poderia se encontrar mais solitário, como demonstrado pela famosa cena em que caminha suando frio por uma cidade sem viva alma, aparentemente deserta. O tic-tac dos relógios se torna ainda mais excruciante, estourando por cima do protagonista enquanto ele escreve seu testamento na delegacia.




Mas as motivações de Kane tampouco são claras. Em nenhum momento fica explícito que o Xerife é movido apenas pelo desejo de cumprir o dever cívico. Ele titubeia a todo momento, não entende bem porque tomou aquela decisão. É um homem em conflito entre o dever, o princípio, o pragmatismo, a palavra dada à esposa, o medo, o sentimento de repúdio pela hipocrisia e ingratidão da cidade, e o orgulho que não o permite chutar o pau da barraca.

O debate gerado por High Noon  torna impossível contar a história do cinema sem mencioná-lo. O Faroeste é expressão cinematográfica de um dos principais mitos constitutivos do imaginário norte-americano. A obra de Zinnemann coloca o dedo em feridas profundas da alma da sociedade dos EUA.

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