sábado, 11 de janeiro de 2025

Dugin, o novo Olavo?, ou: O Ocidente como salvação da Quarta Teoria Política

 "O ontem do Ocidente preparou o hoje do Ocidente como um Ocidente Global. Os valores ocidentais de ontem, incluindo o cristianismo ocidental, prepararam os valores hipermodernos de hoje. Pode-se rejeitar esse último passo, mas o passo precedente, que vai na mesma direção, não pode ser considerado uma alternativa séria."


Dugin, "Os EUA e a Nova Ordem Mundial, um debate entre Alexander Dugin e Olavo de Carvalho"




Há anos Alexander Dugin tem mitigado suas teses para adequá-las ao trumpismo e à ascensão chinesa. As reticências em relação à nova superpotência e a preferência por um polo geopolítico extremo-oriental centrado no Japão tiveram de ser deixadas de lado por causa da dependência cada vez maior da Rússia em relação a Xi Jinping.


Já a primeira eleição de Trump forçou uma modificação radical em sua Quarta Teoria Política, que agora desvinculava um suposto Liberalismo 1.0, representado pelas novas forças hegemônicas no Partido Republicano, de um Liberalismo 2.0 que ele clamava ser ''inimigo de qualquer liberdade'' e que identificava com o Partido Democrata na figura de Biden.

Esta semana, Dugin deu um passo além. Depois de vociferar por anos que o Ocidente era não só uma civilização de trevas mas o próprio Anticristo em marcha, o ideólogo cindiu o conceito a fim de acomodar a aliança Trump/Musk. O russo escreveu em sua conta do X:

"De um ponto de vista russo, parece [existir] algo como o "Ocidente coletivo". O comportamento do Ocidente (EUA, UE, OTANlândia) durante a época de Obama, neocons e Biden, e a maioria dos líderes da União Europeia confirmam isto. Mas agora a figura mudou drasticamente. Existe o Ocidente e o Ocidente. O Ocidente número 1 é o do monstro globalista liberal. Mas surgiu o Ocidente número 2. O Ocidente-MAGA. Há portanto duas entidades, não somente uma. E assim o termo "Ocidente" não é mais correto. Ocidente-MAGA vs Ocidente-Monstro. Mas este monstro tem de ter outro nome. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz são partes do monstro, mas apenas órgãos, apenas sua interface. As estruturas de Soros são seu sistema nervoso. Mas há algo ainda mais sinistro e horrível por trás da cortina. Algo que mantém unidos todos os elementos do Ocidente-Monstro. E tem tem de ter seu próprio nome."


["From Russian point of view it seemed something like “collective West”. Behaviour of the West (US, EU, Natoland) during Obama, neocons, Biden epoch and most of EU leaders confirmed that. But now whole picture is drastically changed.There is the West and the West. West number one is that of globalist liberal monster. But there appears West number two. MAGA-West.Hence the are two identity not just one. So the name “West” is not correct one any more. MAGA-West vs Monster-West. But this monster should have another name. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz are parts of monster but just organs, just interface. Structures of Soros is nervous system. But there should be something more sinister and horrible behind the curtain. Something that holds all the elements of Monster-West together. It has to have proper name. "

Fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876897209611944323]

Desse modo, o movimento trumpista [Make America Great Again] e Ellon Musk já não podem mais ser considerados como a civilização do Anticristo. Trata-se de um Ocidente em guerra contra o próprio Anticristo, o Monstro sem nome de Dugin. As teses do filósofo se aproximam da percepção defendida por Olavo de Carvalho há cerca de vinte anos. O brasileiro via os EUA como uma trincheira de guerra cultural e também apostava no imperialismo ianque como salvaguarda do Ocidente verdadeiro. Dugin expôs aquilo que pensa ser a natureza do ''Ocidente-MAGA":

"As políticas do MAGA no cenário internacional tal como ganham forma exatamente agora na campanha de Musk contra o governantes globalistas na União Europeia confirmam objetivamente a criação de uma ordem mundial multipolar. Claro que a ideia é reorganizar a hegemonia ocidental em uma base diferente. Mas desta a vez a base é a identidade ocidental -- com os EUA no centro, e Europa e Austrália como satélites. O núcleo da civilização branco moderno, majoritariamente cristão, desenvolvido tecnologicamente. Todo o restante é periferia de menor importância. A Rússia é esquecida (não é mais o inimigo número 1). A Índia substitui a China. A China, o mundo islâmico, a África e a América Latina são dor de cabeça. Eles devem ser neutralizados de algum modo, reduzidos a seus âmbitos históricos. A imigração no Ocidente deveria ser regulada e controlada com assimilação e integração a partir da aceitação da identidade ocidental. O Ocidente para os ocidentais e aqueles que sinceramente partilham de seus valores. Esta estratégia se opõe quase em tudo aos liberais e aos globalistas. Ela leva, talvez a despeito de seus arquitetos e construtores, à multipolaridade -- os não ocidentais começam a reorganizar suas próprias civilizações. O trumpismo em Relações Internacionais é a reorganização da hegemonia ocidental com fundamento no liberalismo de direita e na identidade ocidental. Mas a preocupação principal é a América, a doutrina Monroe, a expansão meridiana e a consolidação da Europa inscrita na zona direta de influência americana. É a nova versão do realismo ofensivo, um tipo de imperialismo americano. Objetivamente, facilita a formação de outros polos civilizacionais que não estão incluídos no núcleo ocidental. Algo como o sugerido por Huntington."

[fonte: https://alexanderdugin.substack.com/p/the-trumpism-in-ir-is-reorganisation]



Em termos geopolíticos, a abordagem é condizente com algumas das alternativas construídas por Dugin em suas publicações geopolíticas mais recentes. No livro "Eurasian Mission" [2014], o ideólogo russo já mostrava seu apreço por esta solução:

"Os planos eurasianos para o futuro presumem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos verticais, ou zonas meridianas, do Norte ao Sul. Ambos os continentes americanos vão formar um espaço comum orientado e controlado pelos EUA segundo a arquitetura da Doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana Atlântica. Em adição, três outras zonas estão planejadas. Elas são as seguintes: Euro-África, com a União Europeia em seu centro; a zona Rússia-Ásia Central; a zona do Pacífico. É no interior destas zonas que se darão a divisão do trabalho e a criação de áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Cada um destes cinturões (zonas meridianas) contrabalança a outra, e todas elas justam contrabalançam a zona meridiana. No futuro, estes cinturões serão o fundamento sobre o qual vai ser construído um modelo multipolar de mundo: vão existir mais de dois pólos, mas seu número será muito menor do que o número de Estados-Nações. O modelo eurasiano propõe que sejam quatro.

[fonte: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/dugin-depois-de-foundations-ou.html]


Em 2017, primeiro ano do primeiro mandato de Trump, Alexander Dugin escrevia em "Rise of the Fourth Polytical Theory":

"Se três “Grandes Espaços” estão aptos para uma expansão, de modo a se tornarem “Impérios”, “Reichs”, então a expansão americana, que clama atualmente um escopo universal e global, terá de se contrair. Para que os EUA retornem à versão original da “Doutrina Monroe”, para que se torne de novo um “Grande Espaço” e um “Império”, é sua influência deve ser apreciavelmente diminuída. Esta análise demonstra que a teoria dos “Grandes Espaços”, de Carl Schmitt, como expressão gráfica de todas as construções da Quarta Teoria Política, é a plataforma mais segura para um mundo multipolar, o anti-globalismo, o anti-americanismo e a luta de libertação nacional da dominação global americana.

[fonte: fonte: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/dugin-depois-de-foundations-ou.html]


A "expansão meridiana" como a afirmação de um império americano mais restrito e calcado na Doutrina Monroe e na influência na "Europa atlantista'' é uma agenda inscrita na militância de Dugin há pelo menos dez anos. Seria possível voltar até mais no tempo para flagrá-la em sua proposta de ''mundo quadripolar".

Daí se entende a comemoração efusiva do intelectual russo com a vitória de Trump no fim do ano passado. Em 6 de novembro de 2024, Dugin declarava que o resultado das eleições norte-americanas era a vitória final da multipolaridade, o que não deixa de ser irônico para um evoliano anti-democrata que identificava a América com os infernos:

"Então vencemos. Isso é decisivo. O mundo jamais será o mesmo de novo. Os globalistas perderam seu combate final. O futuro finalmente está aberto. Estou realmente feliz."

[So we have won. That is decisive. The world will be never ever like before. Globalists have lost their final combat. The future is finally open. I am really happy.]



Dugin repete mais uma vez que o novo mundo multipolar de potências imperialistas coloca fim à era dos Estados Nacionais. É verdade que distintas civilizações tem o direito às suas próprias articulações culturais e identidades, mas a soberania de fato pertence só aos polos geopolíticos. Em 7 de janeiro, o russo publicava no X:

"A Ucrânia está totalmente esquecida agora. O mundo em que estamos entrando agora não reconhece nem o Canadá nem a Ucrânia. O mundo multipolar, só existem verdadeiramente grandes poderes soberanos."

[fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876753078583500885]

Para além do sabor olavético e das semelhanças com a perspectiva do ex-chanceler Ernesto Araújo, a perspectiva duginista tem consequências óbvias para os países que estão fora da ''festa'' das grandes potências militares. Eles deixam de ter, Brasil incluído, ''direito'' ao reconhecimento de sua soberania nacional. Na multipolaridade de Dugin, a Ucrânia e o Canadá só tem direito à existência como quintal de alguma grande potência. Para os demais povos americanos, as propostas de Dugin representam não só Doutrina Monroe, mas também Big Stick. Para ele não há problema algum, é apenas a consequência exata de sua agenda, em que a Rússia se vê livre da pressão atlantista e com carta branca para reconstruir seu espaço geopolítico imediato.

Como escrevi ao longo dos últimos três anos, a agenda duginista é uma tentativa de recuperar o mundo anterior à Primeira Guerra Mundial. Quando o ideólogo fala de combater o ''liberalismo 2.0" e o "Ocidente-Monstro", pretende apenas recuperar a ordem liberal moderna dos grandes impérios oitocentistas que competiam sem freios pelo domínio dos demais povos. Está tudo bem, desde que seja tudo feito em nome da "Tradição" e não do ''progressismo''.

Este mundo seria uma derrota para o globalismo, avisa Dugin. Mas é um mundo satisfatório para o Brasil e demais nações do Sul Global? A multipolaridade de Dugin é liberdade para o Império russo, mas para a América Latina é a nova forma de um velho aguilhão.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

AINDA ESTOU AQUI [2024]

 

Em novembro passado, escrevi no meu Facebook sobre "Ainda estou aqui", filme que proporcionou à Fernanda Torres o Globo de Ouro de melhor de atriz. Recupero o texto.


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Assisti "Ainda estou aqui'' e vai ter spoiler na postagem.

O filme é uma aula de reconstituição de época, cinematografia, direção e também de atuação [não só de Fernanda Torres, mas também de Selton Mello].

O contexto político está subentendido mas nunca passa à frente do drama do desparecimento de Rubens Paiva e das consequências que ocasiona para a família e amigos. É como se o Paraíso, representado de forma magnífica pela vida idílica e rica no Leblon, e pela adolescência no fim dos anos 1960, é como se o Paraíso, dizia eu, fosse perdido pouco a pouco.

Essa vida perfeita e fascinante tem sempre o perigo da ditadura rondando, mas ao longe, um eco distante do caos que reina fora daquele círculo, mas que pode encostar no Éden de uma hora para outra, como na blitz policial nos primeiros minutos. E quando esse caos se torna presente de vez, o filme transita de forma imediata e admirável para o medo, a tensão, a incerteza, como um castelo de areia que vai se desfazendo diante das primeiras marolas.

Só não dou nota 10 porque os produtores não resistiram a dois epílogos que serviram de defesa da Justiça de transição, comissão da verdade e punição para os envolvidos na repressão, com a típica justificativa de que a condenação consolidaria na ''memória coletiva'' ou pública alguma forma de respeito aos direitos individuais: mas como se vê pela Indústria do Holocausto, que é basicamente a inspiração para essas propostas de ''passar ditaduras a limpo a fim de consolidar uma sociedade democrática'', o tiro está sempre pronto pra sair pela culatra.

O filme deveria terminar, na minha opinião, com a venda do casarão no Rio e a mudança para Sampa. Seria adequado e diria tudo que realmente importava dizer, muito bem retratado pela reação de uma das filhas do casal Rubens/Eunice, que toma consciência naquele momento que jamais veria o pai novamente.

Enfim, corram para as salas de cinema. Aliás, há tempos que não as via tão cheias para um filme. Matei saudade.


Publicado originalmente em:
https://www.facebook.com/constantor/posts/pfbid076M9U3h6MoynJXuStBP5KgpvtmspGGZ1zpZRf9UEzW3xFEJcfGeBy4AYxF2JDJXcl

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Nosferatu [2024] e A Bruxa [2015], o terror sobrenatural de Eggers contra a fragilidade do racionalismo

 


No fim de 2023, escrevi no meu Facebook sobre o filme 'A Bruxa' [The Witch], a estreia de Robert Eggers em 2015. [Reproduzo o texto no fim dessa postagem.] O intuito era apontar a incapacidade de muitos críticos de perceberem que o filme era sobre...bruxaria! Preferiam psicologizar os temas, tratá-los como alegorias contra uma sociedade patriarcal, misógina, repressora e supersticiosa. 


Ainda que o filme tangencie isso tudo, a pegada é terror sobrenatural. A feiticeira está mesmo lá na floresta, ela de fato sequestra o bebê e o mata em um ritual para reforçar seus poderes mágicos, a protagonista verdadeiramente estava em um processo de pacto com o cramulhão. As viseiras ideológicas não permitiam, no entanto, que estas pessoas notassem o minucioso trabalho de reconstrução histórica de Eggers e seu talento para nos transportar para um mundo em que bruxas existem. 


Pois bem, assisti ontem 'Nosferatu' [2024], do mesmo diretor, que já disse alhures que seu sonho de infância era fazer um remake do clássico imortal de Murnau, lançado no auge do cinema mudo, ainda em 2022. [E que gerou outro filmaço no fim dos anos 1970, dessa vez dirigido por Herzog, e protagonizado por Klaus Kinske e Isabelle Adjani]. O tamanho do desafio tinha tudo para fazer o sonho se tornar um pesadelo. Eggers conseguiu, no entanto, transformar o clássico em um filme seu, e um filme seu em uma síntese do terror gótico e das crenças medievais e modernas no vampirismo, antes  das idealizações juvenis do século XX. 



Mais ainda, ele aproveita para criticar explicitamente a mentalidade modernosa, iluminista e cientificista que aliena o ocidental do sagrado, das forças psíquicas e espirituais, e o torna presa fácil de um mundo cuja existência ele se recusa a admitir. O diretor mira justamente nas pessoas que assistem um filme sobre bruxaria sem conseguir ver a bruxa que é assunto principal da trama. Nas palavra de Von Franz [William Defoe vivendo o 'Van Helsing' da vez], a ciência tanto nos iluminou quanto nos cegou para estas forças cósmicas. Aliásd, o personagem que tipifica o racionalismo da Europa oitocentista é punido pela perda de toda sua família.


Tenho um texto sobre o assunto nesse blog [leia Sobre o Vampirismo] e recomendo a leitura para aqueles que desejam vislumbrar os fundamentos da história [re]contada por Eggers. O diretor se focou no 'folclore' das populações do período e complementou tudo com leitura esotérica e ocultista o suficiente para realizar seu sonho de criança. De todas as versões de Nosferatu/Drácula, esta é disparada a que melhor capta o esqueleto que sustenta o famoso conto de um entidade atraída dos confins de uma Europa distante temporal e geograficamente do Ocidente nascente. 


Afinal, os ''oceanos de tempo'' atravessados pelo nosferatu, citados por Coppola em seu 'Drácula, de Bram Stoker' [1992], não passam, no fundo, de uma viagem do interior da Romênia para alguma cidade portuária alemã. Diferente de Coppola, no entanto, o vampiro não tem qualquer laço afetivo e emocional por Ellen Hutter [nossa 'Mina', vivida por Lily-Rose Depp]. O próprio Conde Orlok afirma a certa altura que ''não passa de um apetite'' invocado pela força psíquica de uma adolescente que, sem conseguir lidar com seus dons preternaturais, sofrendo com a distância do pai, e com o erotismo à flor da pele, se envolve com um íncubo. O tema da possessão demoníaca permeia o filme, e a atuação de Depp impressiona na fisicalidade e nas transformações ocasionadas pelos ataques sobrenaturais e histéricos, pelos transes, pela epilepsia e pelas neuroses. Longe de ser uma vítima, ela é antes a 'feiticeira' que invocou um gigante até então preso no Hades. 



De modo similar, os costumes e ritos de ciganos e de religiosos romenos são retratados com fidedignidade capaz de gerar assombro no espectador. E também as práticas ocultistas de uma burguesia em busca de imortalidade, tipificadas aqui pelo bizarro Herr Knock [vivido por Simon McBurney]. Sigilos e círculos esotéricos, o envolvimento com feitiçaria que leva à transformação em vampiro após a morte, o papel de virgens no processo de caça ao monstro, o misticismo cristão-ortodoxo, e a ideia de pacto satânico [com ecos também de bruxaria. Está tudo lá. 


E Bill Skargard constrói o Orlok/Drácula mais terrífico já visto. Tudo nele remete a algo profano, corrupto e demoníaco, formados pela conjunção de uma voz aberrante, vinda de algum lugar do inferno, entrecortada com soluços e uma respiração difícil, e o corpanzil de dois metros se movimentando com dificuldade em uma figura montada em muita pesquisa sobre os nobres romenos do século XV.  De resto, a experiência imersiva de mundos históricos apresentados de forma impressionante, e com sutilezas, como o castelo tcheco usado no filme de Herzog. Os aspectos técnicos são um dos pontos altos, principalmente a cinematografia e o ritmo. Aliás, a tensão não cai em momento algum, o espectador está sempre desconfortável diante do conto de horror.


Vai ter gente reclamando que o filme não dialoga com  as pessoas do nosso tempo. O que não passa de mais uma bobagem iluminista. Por trás da máscara de racionalização, todos nós continuamos, ao fim e ao cabo, com medo do escuro.




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Abaixo, texto de novembro de 2023.



Revi ontem 'A Bruxa' [The Witch], filme de estreia de Robert Eggers, lançado em 2015. E aí resolvi olhar algumas análises e fiquei surpreso com resistência de boa parte das críticas a enxergar o óbvio. O que vi de nêgo virando do avesso a obra pra encaixotá-la em noções feministas, desprezo pela crença em bruxaria, e discurso anti-religioso não está no gibi.

Em um dos canais, um sujeito com nítidas crenças ocultistas fazia uma salada para defender que a bruxa da floresta não passava de uma criação da imaginação de fanáticos cristãos, mas que se torna um foco de parasitismo psíquico capaz de atuar de modo autônomo em relação às neuras e traumas que a geraram. Isso é ocultismo de segunda série primária; mas pior ainda porque desdito pelo próprio filme.

Existe muito papo sociologizante, e o tema tem seu espaço, claro. Muitos focam só nas questões de gênero, na repressão sufocante do puritanismo, e se apegam demasiadamente ao terror psicológico da obra.

Mas não percebem ou preferem não perceber que 'A Bruxa' não é só um terror psicológico, e sim um terror sobrenatural. Esses dois aspectos não estão separados, nem muito menos compartimentalizados.

Para não admitirem essa simplicidade, dão voltas e voltas argumentativas, torcem e distorcem o enredo e as cenas, como se o filme mantivesse o tempo todo uma ambiguidade sobre a realidade ou não da Bruxaria e do diabo. Ora, Eggers explora elementos importantes da relação entre os personagens, dos entrelaçamentos entre fé e dúvida, das rivalidades e desconfianças crescentes no interior da família, bem como dos aspectos culturais e históricos envolvidos. Mas a sutileza está em mostrar, desde o início, que tudo isso é joguete nas mãos do capiroto.

O diretor e roteirista estudou a fundo os julgamentos de bruxaria nos EUA e Inglaterra nos séculos XVI e XVII -- auge do fenômeno de "caça às bruxas" que tomou conta da Europa, e momento histórico em que se consolidou a imagem tipicamente europeia de bruxa que nos chegou, de forma matizada, a partir do folclore oitocentista redescoberto e reelaborado.

A derrocada da família tem início com o banimento da colônia em que viviam, motivada por orgulho e rigorismo religioso. Segue com o sequestro do bebê pela bruxa da floresta. As cena seguintes são tenebrosas e seguem à risca as crenças que o alvorecer da Era Moderna tinha sobre a bruxaria. A bruxa, na forma de uma velha nua, arranca o pênis do bebê, canibaliza a criança, se unta com seu sangue, faz unguentos e fabrica uma vara/vassoura com a qual pode voar. O diabo se manifesta em forma de lebre, de corvo e, principalmente, como um bode preto [Black Phillip], que se comunica com Mercy e Jonas, casal de gêmeos ainda na primeira infância, e os ensina uma música blasfema que revela a real natureza do animal. No fim da obra, o cramulhão toma sua forma mais perigosa, a humana, quando então sacramenta o pacto com Thomasin através do sexo.

Por fim, muitos que conseguem enxergar os elementos sobrenaturais do filme mantém, ainda assim, a opinião de que, apesar disso tudo, Thomasin é uma vítima da misoginia e do fanatismo religioso da época. Ela teria se tornado uma bruxa apenas no fim do filme, quando já não tinha qualquer alternativa.

Mas isto é falso. Ainda que toda a família seja afetada e influenciada pelo Mão-Peluda, e ainda que até mesmo Katherine, a mãe e dona da casa, conceda em ser parasitada por demônios -- momento em que William, vivido pelo excelente Ralph Ineson, deixa de ser de fato a cabeça daquele lar, e pode ser, então, assassinado pelo cramulhão --, Thomasin É A BRUXA desde o início, ainda que aja inconscientemente e lute contra a descoberta ou a revelação de seu próprio papel na trama.

Mas só saca inteiramente este último ponto quem não foi consumido por ocultismo de segunda série primária.