sábado, 26 de julho de 2025

A Receita de bolo de Dugin, ou: a manipulação imperialista do conceito de Tradição

 "Putin é o líder mais pró-Ocidente e pró-liberal que vocês possam imaginar. O único momento em que isso é diferente está em sua devoção à soberania russa, e ainda assim no estilo clássico do realismo ocidental em Relações Internacionais. Ele é pró-capitalista e pró-globalista, e liberal-democrata".


O "sincericídio do guru"



A obra de Alexander Dugin não passa, toda ela, da aplicação de reducionismos maniqueístas toscos para fins de propaganda geopolítica. Em termos teóricos, ela não resiste a uma análise de três minutos.


A receita de bolo é a seguinte:

i. tratar de forma maniqueísta o par Tradição vs Anti-Tradição descrito na obra de autores da ''escola tradicionalista'';

ii. reduzir toda a complexidade de teorias e fenômenos históricos e sociais a pares dicotômicos, mesmo quando não o são, usando para isso confusões terminológicas explícitas;

iii. encaixar, em verdadeira tour de force, os pares dicotômicos construídos no ponto ii. na dualidade Tradição vs Anti-Tradição [tratada de forma maniqueísta, lembrem-se];

iv. vincular o polo "Tradição" sempre ao Estado Russo e seus interesses geopolíticos, e o polo "Anti-Tradição" aos obstáculos à ação imperial russa.


Um exemplo claro da aplicação da receita é quanto aos debates geopolíticos e identitários que se desenvolveram na Rússia a partir do século XIX, e que dividiram seus intelectuais em europeístas ['ocidentalistas'], eslavófilos, e eurasianos.

Em termos estritamente geopolíticos, esses posicionamentos são incompatíveis. Se eurasianos defendem o espraiamento do Estado Russo para o "exterior próximo" não só do leste europeu e dos Bálcãs, mas também para o Cáucaso e Ásia Central, os eslavófilos tendem a ver com maus olhos este tipo de tendência.

Depois da revolução, muitos eurasianos aderiram, felizes e contentes, ao Stalinismo, percebendo nele a construção do Estado euroasiático capaz de se impor à Europa. Basta apontar isso para provar que esse debate não está intrinsecamente ligado a qualquer dualidade Tradição vs Anti-Tradição.

Com o esfacelamento do bolchevismo, parte considerável da dissidência russa adotou posturas "neo-eurasianas" como forma de defender a reconstrução de seu poder geopolítico como força concorrente à Europa [em vez de simplesmente integrada e subordinada a ela]. Nesse sentido, o comunista Zyuganov era tão neo-eurasianista quanto outros ideólogos na outra ponta o espectro político ideológico.

O neo-eurasianismo de Dugin, desenvolvido em parceria com Limonov, não é exatamente eurasianismo, mas um frankenstein ideológico criado para atrair, ao mesmo tempo, o excepcionalismo étnico de raiz eslavófila e posições anti-capitalistas, tudo cimentado na ideia neo-imperialista de reconstrução do espaço geopolítico russo em seu sentido mais amplo.

Já apontei que esse tipo de reconstrução geopolítica não está necessariamente atrelada a parâmetros tradicionais [ou tradicionalistas]. Mas Dugin vende para a patuleia a ideia de que essa política é a própria epítome da ideia de Tradição.

Se Putin adota uma posição de confronto com a OTAN, então ele se torna, imediatamente, um símbolo solar encarnado que peita corajosamente o anticristo. É uma forma erística de pressionar Putin para posturas geopolíticas mais condizentes com o nacionalismo expansionista russo.

Mas dizer que Putin é "solar" só porque defende o espaço geopolítico russo [seja ele mais ou menos amplo, de acordo com a ideologia de plantão], é o mesmo que tornar Charles de Gaulle, Mao Tsé Tsung, ou Fidel Castro agentes da Tradição só porque confrontam os EUA.

Ou seja, pura papagaiada sem nexo pra enganar incautos. Qualquer população tende a defender sua própria independência. Qualquer potência tende a defender suas posições estratégicas. A Rússia, a França, a Inglaterra, a China, ou qualquer outra.

Isso não tem a ver com o parâmetro Tradição vs Anti-Tradição, a não ser na imaginação desenfreada do "pau pra toda obra", que é a militância dissidente sob orientação do "guru".

Como bem analisou o professor Angêlo Segrillo, Putin é um ocidentalista moderado. Ou, mais especificamente, um gosudarstvennik. Um defensor dos interesses do Estado. É nesse sentido que ele se contrapõe às demais potências.

Qualquer dúvida, só olhar para as instituições e para a sociedade russa. Putin é só um Presidente que governa um país ocidenalizado, segundo o figurino básico do modelo, dos princípios, e dos valores do próprio Ocidente. Temperados com o autoritarismo da cultura política russa, sem dúvida, mas sem beber de ideias do Tradicionalismo.

Já disse antes e repito: o Estado inglês é muito mais tradicional do que o russo. Quem quiser olhar para um governante em moldes tradicionais, vai olhar para o Rei Charles, e não para o plebeu Putin. Evidente que isso não torna a geopolítica inglesa menos execrável. Mas é justamente esse o ponto. O ponto em que vocês, russófilos, foram enganados.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O QUE "THE CHOSEN" TEM A VER COM A "ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO", ou: A NEGAÇÃO DA CRISTOLOGIA TRADICIONAL?

"Mesmo o rosto de Moisés foi iluminado por sua associação com Deus. Não sabem que Moisés foi transfigurado quando subiu o monte e contemplou a Glória de Deus? Mas não foi Moisés quem causou isso, ele passou por uma transfiguração. No entanto, nosso Senhor Jesus Cristo possuía essa Luz em Si mesmo. Nesse sentido, na verdade, Ele não precisava de oração para que Sua carne irradiasse a Luz Divina; isso foi feito apenas para mostrar de onde os santos de Deus recebem essa Luz e como contemplá-la. Pois está escrito que até os santos “brilharão como o sol” (Mt 13:43), ou seja, completamente permeados pela Luz Divina enquanto contemplam Cristo, que brilha divina e inefavelmente Sua Radiância, proveniente de Sua Natureza Divina. No Monte Tabor, essa luz também se manifestou em Sua carne, por causa da União Hipostática (isto é, a união das duas naturezas perfeitas, divina e humana, na Pessoa divina [Hipóstase] de Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade). O Quarto Concílio Ecumênico em Calcedônia definiu essa união hipostática das duas naturezas de Cristo, divina e humana, como “sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação.”

São Gregório Palamas, Homilia sobre a Transfiguração

E transfigurou-se diante deles: o seu rosto ficou refulgente como o sol, e suas vestiduras tornaram-se luminosas de brancas que estavam [Evangelho de Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo segundo o Glorioso Evangelista São Mateus 17:2]



Há algo que se nota de imediato em produções como a série The Chosen: a escolha por retratar Cristo com nossa natureza decaída.

 

Lembro do escândalo que foi "A Última Tentação de Cristo'', que chegou bem longe nesse ponto ao mostrar até conflitos internos e luxúria em Jesus Cristo. Mas aí é que está, mesmo os cristãos que se sentem desconfortáveis com o filme se acostumaram a imaginar o Senhor com nossas limitações e restrições.

 

Em linguagem teológica, o imaginário das pessoas foi conquistado por um Cristo ''póslapsariano'', ou seja, com uma natureza humana tal como ela é depois da Queda de Adão.

 

É uma noção que se consolidou em pensadores protestantes modernos, e de lá se espalhou por alguns católico-romanos no século XX, e que, ainda que bem minoritário, pode ser visto até em alguns cristãos ortodoxos [como em obras do Metropolita Kallistos Ware, que foi criticado por monge do Monte Athos por causa disso].

 

Boa parte dos evangélicos, senão a maioria deles, carrega esse tipo de imaginário de um Cristo com natureza decaída.

 

Nem sempre foi assim: até nas edições críticas dos evangelhos católico-romanos dos anos 1970, se deixava claro que a natureza humana de Cristo era ''pré-lapsariana'', embora não se usasse o termo. Ou seja, era aquela que Adão tinha antes da Queda.

 

Mais do que isso, se falava da perfeição da natureza humana de Cristo dada a ''communication idiomatum'' gerada pela união hipostática com a natureza divina na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

 

Na Igreja Ortodoxa, esse ensinamento é ainda mais explícito dado o conceito de 'theosis', de deificação pelas energias divinas.

 

Voltarei a esse ponto depois. Vamos começar pela natureza adâmica, ou seja, a natureza humana tal como saída das mãos de Deus, antes de ser corrompida pelo pecado original.

 

Adão não estava submetido às desordens das paixões que nos trouxeram a tendência ao pecado. Mais ainda: sua mente era límpida e capaz de conhecer as realidades tais como elas são, e portanto ele discernia de modo límpido o que era bom. Seu corpo estava vestido com as ''roupas da glória'', era resplandecente, luminoso, imune a qualquer perigo e desconforto ambiental [segundo os Santos Padres, Adão não sentia nem calor nem frio]. Ele também não sentia dor, sofrimento, doença, sono, envelhecimento e não precisava passar pela morte.

 

Esta é a natureza humana assumida pelo Verbo. A natureza que carregamos é doente. A dele é sadia. E é por isso que Ele é nosso médico e redentor.

 

Na Igreja Ortodoxa, esse ensinamento é ainda mais nítido, já que acreditamos que a natureza humana de Cristo é ainda superior ao do primeiro Adão. No momento da Concepção no seio da Toda Santa e Pura Virgem Maria, o corpo de Cristo foi deificado. Estava pleno pelas energias divinas, não apenas imagem de Deus como Adão, mas semelhante a Deus.

 

Este é um ponto muito importante: Cristo não é um homem passando por um ''processo de deificação'', como os santos que passaram pela theosis. Ele é deificado desde a concepção, e Seu Corpo é FONTE DE SANTIDADE E DE DEIFICAÇÃO. Sua vida foi a destruição dos obstáculos que nos impediam de partilhar essa fonte de santidade e deificação.

 

Sendo ainda mais explícito: Cristo nunca se sentiu tentado pelo diabo. O capiroto ousou tentá-lo, sem dúvida. Mas o Senhor não se sentiu tentado. Ele não tem conflito interno. Cristo tampouco se sentiu frustrado ou apartado de Deus na Cruz. O grito "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" não é expressão de alienação da Divindade: Cristo é Deus, ara! Ele está sempre em pericorese com o Pai e o Espírito Santo, e dada a união hipostática e a deificação é impossível que sua mente humana seja obscurecida! Cristo estava citando um salmo messiânico, apontando para todos o cumprimento da Profecia [leiam o salmo inteiro!].

 

Mais ainda: Cristo não estava sujeito ao reino da necessidade. Não, Ele não estava agrilhoado à fome, à sede, não ficava doente, não sentia perigo vindo do ambiente, não precisava sofrer ou sentir dor. Os Santos Padres deixam claro que Ele só passou por estas coisas por ação de sua própria vontade [tanto da divina quanto da humana]. Ele permitiu que estas tendências agissem sobre Ele na medida e na extensão em que eram necessárias para a Redenção e a libertação das consequências do pecado original.

 

Há diversas hagiografias, diversos santos que superaram as necessidades impostas pela fome e pela sede, pela dor e sofrimento. Diversos santos que não comiam na quaresma, só comungavam uma vez por semana, ou então eram ''alimentados pelos anjos''. Que eram jogados em caldeiras ferventes ou eram torturados e nada sentiam. Que eram atirados às feras e elas se deitavam a seus pés. Pois bem, Cristo era assim desde a concepção, e é por meio da deificação cuja fonte é Cristo que estes santos eram tão cheios da Graça.

 

É o que os Santos Pedro, Tiago e João viram no Monte Tabor: a Transfiguração. Como ensina São Gregório Palamas, não houve alteração em Cristo na ocasião. Foram os Apóstolos que vivenciaram, momentaneamente, elementos da deificação, e com isso puderam perceber Cristo como Ele verdadeiramente é em Sua natureza humana.

 

Assim como Cristo se permitia sentir fome, sede, cansaço, sono, Ele também se permitiu sentir medo da morte [ainda mais intenso Nele, já que a morte era completamente estranha à Sua natureza], se permitiu sentir dor, e se permitiu morrer.
Este é outro ensinamento que foi se perdendo com o tempo: Cristo era livre em relação à morte. Ele morre em completa liberdade. Não é que a morte o capture por necessidade, como acontece com nós, homens decaídos e doentes. Ele deixa, em completa liberdade, que ocorra a separação entre alma e corpo com o escopo de destruir o Hades.

 

O alto brado que o Senhor deu antes da morte é o sinal de que se manteve vivo até o instante em que quis. Esse era um ensinamento comum entre os cristãos até praticamente ontem, e no entanto parte deles se surpreende com isso hoje em dia.

 

Quando dizemos que Cristo morreu por nós, não é que Ele tenha se entregado de mãos amarradas ao Sinédrio e a Pilatos. Não é só isso. É que Ele NÃO PRECISAVA morrer. A morte não tinha qualquer poder sobre Ele. Nenhum. Zero. Ele não entra no Hades como cativo, mas como Conquistador!

 

A Igreja tem exemplos e exemplos de corpos de santos que se tornam incorruptos. Que são fontes de milagres. Os corpos dos santos estão unidos a suas almas, que, santificadas, transmitem a santidade a seus corpos mesmo depois da morte. Em alguns, essa transmissão é tão evidente que a incorrupção nos os alcança. Alguns destes, além de incorruptos, ainda vertem mirra. De onde vem isso? Da participação desses santos na deificação proporcionada por Cristo. Ora, o corpo de Cristo nunca foi um cadáver.

 

Mesmo depois da separação da alma e do corpo, não é possível afirmar que Seu corpo estivesse sem vida. O corpo de Cristo não viu qualquer corrupção, isso é impossível.
Ele tampouco foi ressuscitado por uma força externa. Não é como se Ele se entregasse à morte, e estivesse lá preso no Hades, e aí Deus, como força externa, O ressuscitasse. Ele Se ressuscitou! Ele nunca esteve aprisionado pela morte. Supor o contrário e imaginar que o próprio Senhor necessitasse de Redenção, um absurdo completo.

 

"O Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai” [Evangelho de Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo segundo o Glorioso Apóstolo e Evangelista São João Teólogo, capítulo 10].

 

O padre Emmanuel Hatzidakis se propôs o mesmo exercício teórico que Nikos Kazantzakis em "A Última Tentação de Cristo": e se a crucificação não ocorresse? [é só um exercício, pois é evidente que Cristo nasceu para morrer.] Cristo envelheceria, ficaria doente e morreria, como no livro e depois no filme dirigido por Scorsese? Só existe uma resposta ortodoxa para o ''problema'': Não! E Ele poderia ascender aos Céus, com ascendeu depois, quando quisesse.

 

Tudo fica mais simples quando se entende que Cristo não estava passando por nenhum processo de santificação interna, moral, psíquica, mental, física etc. Ele é deificado desde a concepção em sua própria natureza humana, e portanto criada. Na Ressurreição, Ele destruiu o Hades para que o homem pudesse adentrar o Reino dos Céus. Não para si mesmo. Na Paixão e Morte, Ele destruiu a dívida do pecado. Nossa dívida, não a Dele. No Batismo, Ele deificou a Natureza, abrindo a possibilidade de que a Graça Divina adentrasse o coração humano [batismo]. Nosso coração, não o Dele. Na Encarnação, Ele restaurou a natureza humana e a elevou pela União Hipostática.

 

Todos esses ensinamentos, que nada mais fazem repetir a noção tradicional de que Cristo é SENHOR, DEUS E SALVADOR, eram comuns quando eu era criança. Mas hoje é como se fossem incompreensíveis, e as pessoas acham mesmo que Cristo estava escravizado à dor física, a necessidades fisiológicas, a crises de ansiedades, a dúvidas e deliberações, ao perigo representado pelos elementos da natureza, à doença, dor, morte etc.

 

Ele se fez semelhante a um escravo, mas Ele nunca o foi. E é só assim que se entende a dimensão do amor que Ele tem pelo homem.

sábado, 7 de junho de 2025

O BRASIL QUE NÃO SERÁ EVANGÉLICO


Os dados de religião do Censo 2022 começaram a ser divulgados essa semana, revelando algumas surpresas. É verdade que os números são diferentes daqueles 'vazados' por Gerson Camarotti na Globonews há pouco mais de um mês. É possível que o jornalista tivesse em mãos o dado de um recorte populacionais [as informações dele batem exatamente com a proporção de católico-romanos e evangélicos na população de cor/raça branca], e não do quadro populacionais geral. Apesar disso, o Censo também frustrou algumas das principais projeções que vigoraram entre especialistas sobre o campo religioso do nosso país.



Por anos, cientistas, institutos de pesquisa de opinião, e grande mídia abraçaram a tese do professor José Eustáquio Diniz Alves. Segundo esse importante estatístico e ex-funcionário do IBGE, existiriam sinais de aceleração das tendências observadas entre os censos de 1991 e 2010. O professor cravava, assim, que os católico-romanos declinariam a uma velocidade de 1,2% ao ano, enquanto os evangélicos aumentariam seu peso na população a um ritmo de 0,8%.


Eram projeções ousadas, já que as médias de queda e de crescimento desses grandes grupos religiosos nunca atingiram este patamar nas décadas anteriores. Entre 1991 e 2010, a perda católica-romana foi estrondosa, mas em uma média que gravitou de 0,9 a 1,0 ponto percentual por ano. Os evangélicos, por sua vez, cresceram no período a um ritmo entre 0,65 e 0,7%.


A previsão do professor Eustáquio era a de que a proporção de evangélicos superaria a de católico-romanos por volta de 2032. A alegação ganhou a grande mídia, universidades, e até a conversa de bar. Foi considerada como informação tão segura quanto previsões das ciências naturais. Mesmo os pesquisadores mais cautelosos quanto à tese de aceleração das tendências acreditavam que o cenário mais geral desenhado pelo estatístico era o mais correto. Se o número de evangélicos não superar o de católico-romanos em 2032, provavelmente o faria até 2040, pensavam. No fundo, ninguém ia saber o ano exato, já que o censo só ocorre de dez em dez anos, na melhor das hipóteses.


O grande problema desse tipo de abordagem é que se referem não a objetos físicos ou matemáticos, mas a dinâmicas sociais. Ou seja, interações entre pessoas, que ocorrem em diversos níveis, e se associam com movimentos políticos, ideológicos, culturais, econômicos e demográficos de difícil mensuração.


O Censo de 2022 nos lembrou dessa verdade óbvia, mas muitas vezes negligenciada. É verdade que a perda de fiéis católica-romana permaneceu muito acentuada nos 12 anos abarcados pela publicação do IBGE, mas o ritmo de queda caiu. A linha de tendência do declínio da religião hegemônica suavizou para uma média de -0,70% de fiéis ao ano. Como se trata de uma curva de desaceleração, é seguro dizer que no início da década atual, o peso do catolicismo no país estivesse diminuindo na faixa -0,5% ao ano. Está longe de ser uma estabilização, mas é suficiente para cravar que o catolicismo-romano vai permanecer como a religião da maioria dos brasileiros em 2030 [ou seja, continuará como a religião de mais da metade da população].






O crescimento evangélico, por sua vez, continuou robusto. O grupo avançou cerca de 5 pontos percentuais em 12 anos. Mas isso não é novidade. O relevante é que a expansão perdeu fôlego. A média de 0,65% de aumento ao ano declinou para 0,39%. E como estamos falando de uma curva de desaceleração, é bastante seguro afirmar que os evangélicos não vão alcançar a fatia de 30% da população em 2030. A média indica que a expansão já estaria na faixa dos 0,2% ao ano nos anos finais aferidos pelo Censo.


Alguns acadêmicos tentam justificar a perda de fôlego a partir do fenômeno dos desigrejados. Mas não saberiam identificar exatamente onde eles se localizariam no censo. No grupo de "outras religiões"? Mas elas cresceram apenas 1,1% [de 2,9% para 4%] entre 2010 e 2022, e seus sub-grupos, que incluem cristãos orientais e não-cristãos, podem ser aferidos pelo IBGE. Não há margem para suficiente para validar essa hipótese.


A verdade nua e crua é que pelas linhas de tendência do ritmo de queda católica e de crescimento evangélico, é bem razoável supor que o peso dos dois grupos esteja respectivamente por volta de 53% e 28% no próximo Censo. Talvez com erro de 1 pp para baixo ou para cima de qualquer um dos dois grupos, mas tudo indica que será por aí.


É uma previsão bem mais cautelosa e sóbria, mas também menos midiática. Há jornalistas que preferiram revisar a conta do professor Eustáquio e prever que a ultrapassagem evangélica foi adiada de 2032 para 2049, se esquecendo que é altamente improvável que o ritmo de expansão e/ou declínio aferido entre 2010 e 2022 se mantenha nas décadas subsequentes. As curvas apontam fortemente que elas já não estão assim hoje.


A essa altura, é mais razoável imaginar que, já que o tal Brasil evangélico não vai acontecer nos próximos vinte anos, é bem provável que não aconteça nunca. As grandes transições demográficas se arrefeceram. Segundo o próprio IBGE, o crescimento vegetativo será minúsculo na próxima década. Algumas UFs já vão apresentar diminuição do número de habitantes. Também não há qualquer perspectiva de algum fluxo migratório que impacte o perfil demográfico do país. Caso aconteça, é ínfima a chance que venha de um país protestante. Por fim, os movimentos populacionais internos também diminuíram sensivelmente em relação ao grande êxodo rural e regional observado entre os anos 1960 e 2000.



Diante do quadro acima, é improvável que a velocidade da transição religiosa permaneça nas próximas décadas. É mais razoável apostar em uma estabilização nos próximos dez, quinze anos. Uma estabilização da qual os evangélicos já parecem bem próximos. A principal dúvida é se em um médio prazo os católico-romanos continuam como a religião de mais da metade dos brasileiros ou se declinam para um pouco abaixo desse limite. Mas tudo indica que vão continuar como o principal grupo religioso, bem à frente do "segundo colocado".

sábado, 11 de janeiro de 2025

Dugin, o novo Olavo?, ou: O Ocidente como salvação da Quarta Teoria Política

 "O ontem do Ocidente preparou o hoje do Ocidente como um Ocidente Global. Os valores ocidentais de ontem, incluindo o cristianismo ocidental, prepararam os valores hipermodernos de hoje. Pode-se rejeitar esse último passo, mas o passo precedente, que vai na mesma direção, não pode ser considerado uma alternativa séria."


Dugin, "Os EUA e a Nova Ordem Mundial, um debate entre Alexander Dugin e Olavo de Carvalho"




Há anos Alexander Dugin tem mitigado suas teses para adequá-las ao trumpismo e à ascensão chinesa. As reticências em relação à nova superpotência e a preferência por um polo geopolítico extremo-oriental centrado no Japão tiveram de ser deixadas de lado por causa da dependência cada vez maior da Rússia em relação a Xi Jinping.


Já a primeira eleição de Trump forçou uma modificação radical em sua Quarta Teoria Política, que agora desvinculava um suposto Liberalismo 1.0, representado pelas novas forças hegemônicas no Partido Republicano, de um Liberalismo 2.0 que ele clamava ser ''inimigo de qualquer liberdade'' e que identificava com o Partido Democrata na figura de Biden.

Esta semana, Dugin deu um passo além. Depois de vociferar por anos que o Ocidente era não só uma civilização de trevas mas o próprio Anticristo em marcha, o ideólogo cindiu o conceito a fim de acomodar a aliança Trump/Musk. O russo escreveu em sua conta do X:

"De um ponto de vista russo, parece [existir] algo como o "Ocidente coletivo". O comportamento do Ocidente (EUA, UE, OTANlândia) durante a época de Obama, neocons e Biden, e a maioria dos líderes da União Europeia confirmam isto. Mas agora a figura mudou drasticamente. Existe o Ocidente e o Ocidente. O Ocidente número 1 é o do monstro globalista liberal. Mas surgiu o Ocidente número 2. O Ocidente-MAGA. Há portanto duas entidades, não somente uma. E assim o termo "Ocidente" não é mais correto. Ocidente-MAGA vs Ocidente-Monstro. Mas este monstro tem de ter outro nome. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz são partes do monstro, mas apenas órgãos, apenas sua interface. As estruturas de Soros são seu sistema nervoso. Mas há algo ainda mais sinistro e horrível por trás da cortina. Algo que mantém unidos todos os elementos do Ocidente-Monstro. E tem tem de ter seu próprio nome."


["From Russian point of view it seemed something like “collective West”. Behaviour of the West (US, EU, Natoland) during Obama, neocons, Biden epoch and most of EU leaders confirmed that. But now whole picture is drastically changed.There is the West and the West. West number one is that of globalist liberal monster. But there appears West number two. MAGA-West.Hence the are two identity not just one. So the name “West” is not correct one any more. MAGA-West vs Monster-West. But this monster should have another name. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz are parts of monster but just organs, just interface. Structures of Soros is nervous system. But there should be something more sinister and horrible behind the curtain. Something that holds all the elements of Monster-West together. It has to have proper name. "

Fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876897209611944323]

Desse modo, o movimento trumpista [Make America Great Again] e Ellon Musk já não podem mais ser considerados como a civilização do Anticristo. Trata-se de um Ocidente em guerra contra o próprio Anticristo, o Monstro sem nome de Dugin. As teses do filósofo se aproximam da percepção defendida por Olavo de Carvalho há cerca de vinte anos. O brasileiro via os EUA como uma trincheira de guerra cultural e também apostava no imperialismo ianque como salvaguarda do Ocidente verdadeiro. Dugin expôs aquilo que pensa ser a natureza do ''Ocidente-MAGA":

"As políticas do MAGA no cenário internacional tal como ganham forma exatamente agora na campanha de Musk contra o governantes globalistas na União Europeia confirmam objetivamente a criação de uma ordem mundial multipolar. Claro que a ideia é reorganizar a hegemonia ocidental em uma base diferente. Mas desta a vez a base é a identidade ocidental -- com os EUA no centro, e Europa e Austrália como satélites. O núcleo da civilização branco moderno, majoritariamente cristão, desenvolvido tecnologicamente. Todo o restante é periferia de menor importância. A Rússia é esquecida (não é mais o inimigo número 1). A Índia substitui a China. A China, o mundo islâmico, a África e a América Latina são dor de cabeça. Eles devem ser neutralizados de algum modo, reduzidos a seus âmbitos históricos. A imigração no Ocidente deveria ser regulada e controlada com assimilação e integração a partir da aceitação da identidade ocidental. O Ocidente para os ocidentais e aqueles que sinceramente partilham de seus valores. Esta estratégia se opõe quase em tudo aos liberais e aos globalistas. Ela leva, talvez a despeito de seus arquitetos e construtores, à multipolaridade -- os não ocidentais começam a reorganizar suas próprias civilizações. O trumpismo em Relações Internacionais é a reorganização da hegemonia ocidental com fundamento no liberalismo de direita e na identidade ocidental. Mas a preocupação principal é a América, a doutrina Monroe, a expansão meridiana e a consolidação da Europa inscrita na zona direta de influência americana. É a nova versão do realismo ofensivo, um tipo de imperialismo americano. Objetivamente, facilita a formação de outros polos civilizacionais que não estão incluídos no núcleo ocidental. Algo como o sugerido por Huntington."

[fonte: https://alexanderdugin.substack.com/p/the-trumpism-in-ir-is-reorganisation]



Em termos geopolíticos, a abordagem é condizente com algumas das alternativas construídas por Dugin em suas publicações geopolíticas mais recentes. No livro "Eurasian Mission" [2014], o ideólogo russo já mostrava seu apreço por esta solução:

"Os planos eurasianos para o futuro presumem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos verticais, ou zonas meridianas, do Norte ao Sul. Ambos os continentes americanos vão formar um espaço comum orientado e controlado pelos EUA segundo a arquitetura da Doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana Atlântica. Em adição, três outras zonas estão planejadas. Elas são as seguintes: Euro-África, com a União Europeia em seu centro; a zona Rússia-Ásia Central; a zona do Pacífico. É no interior destas zonas que se darão a divisão do trabalho e a criação de áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Cada um destes cinturões (zonas meridianas) contrabalança a outra, e todas elas justam contrabalançam a zona meridiana. No futuro, estes cinturões serão o fundamento sobre o qual vai ser construído um modelo multipolar de mundo: vão existir mais de dois pólos, mas seu número será muito menor do que o número de Estados-Nações. O modelo eurasiano propõe que sejam quatro.

[fonte: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/dugin-depois-de-foundations-ou.html]


Em 2017, primeiro ano do primeiro mandato de Trump, Alexander Dugin escrevia em "Rise of the Fourth Polytical Theory":

"Se três “Grandes Espaços” estão aptos para uma expansão, de modo a se tornarem “Impérios”, “Reichs”, então a expansão americana, que clama atualmente um escopo universal e global, terá de se contrair. Para que os EUA retornem à versão original da “Doutrina Monroe”, para que se torne de novo um “Grande Espaço” e um “Império”, é sua influência deve ser apreciavelmente diminuída. Esta análise demonstra que a teoria dos “Grandes Espaços”, de Carl Schmitt, como expressão gráfica de todas as construções da Quarta Teoria Política, é a plataforma mais segura para um mundo multipolar, o anti-globalismo, o anti-americanismo e a luta de libertação nacional da dominação global americana.

[fonte: fonte: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/dugin-depois-de-foundations-ou.html]


A "expansão meridiana" como a afirmação de um império americano mais restrito e calcado na Doutrina Monroe e na influência na "Europa atlantista'' é uma agenda inscrita na militância de Dugin há pelo menos dez anos. Seria possível voltar até mais no tempo para flagrá-la em sua proposta de ''mundo quadripolar".

Daí se entende a comemoração efusiva do intelectual russo com a vitória de Trump no fim do ano passado. Em 6 de novembro de 2024, Dugin declarava que o resultado das eleições norte-americanas era a vitória final da multipolaridade, o que não deixa de ser irônico para um evoliano anti-democrata que identificava a América com os infernos:

"Então vencemos. Isso é decisivo. O mundo jamais será o mesmo de novo. Os globalistas perderam seu combate final. O futuro finalmente está aberto. Estou realmente feliz."

[So we have won. That is decisive. The world will be never ever like before. Globalists have lost their final combat. The future is finally open. I am really happy.]



Dugin repete mais uma vez que o novo mundo multipolar de potências imperialistas coloca fim à era dos Estados Nacionais. É verdade que distintas civilizações tem o direito às suas próprias articulações culturais e identidades, mas a soberania de fato pertence só aos polos geopolíticos. Em 7 de janeiro, o russo publicava no X:

"A Ucrânia está totalmente esquecida agora. O mundo em que estamos entrando agora não reconhece nem o Canadá nem a Ucrânia. O mundo multipolar, só existem verdadeiramente grandes poderes soberanos."

[fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876753078583500885]

Para além do sabor olavético e das semelhanças com a perspectiva do ex-chanceler Ernesto Araújo, a perspectiva duginista tem consequências óbvias para os países que estão fora da ''festa'' das grandes potências militares. Eles deixam de ter, Brasil incluído, ''direito'' ao reconhecimento de sua soberania nacional. Na multipolaridade de Dugin, a Ucrânia e o Canadá só tem direito à existência como quintal de alguma grande potência. Para os demais povos americanos, as propostas de Dugin representam não só Doutrina Monroe, mas também Big Stick. Para ele não há problema algum, é apenas a consequência exata de sua agenda, em que a Rússia se vê livre da pressão atlantista e com carta branca para reconstruir seu espaço geopolítico imediato.

Como escrevi ao longo dos últimos três anos, a agenda duginista é uma tentativa de recuperar o mundo anterior à Primeira Guerra Mundial. Quando o ideólogo fala de combater o ''liberalismo 2.0" e o "Ocidente-Monstro", pretende apenas recuperar a ordem liberal moderna dos grandes impérios oitocentistas que competiam sem freios pelo domínio dos demais povos. Está tudo bem, desde que seja tudo feito em nome da "Tradição" e não do ''progressismo''.

Este mundo seria uma derrota para o globalismo, avisa Dugin. Mas é um mundo satisfatório para o Brasil e demais nações do Sul Global? A multipolaridade de Dugin é liberdade para o Império russo, mas para a América Latina é a nova forma de um velho aguilhão.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

AINDA ESTOU AQUI [2024]

 

Em novembro passado, escrevi no meu Facebook sobre "Ainda estou aqui", filme que proporcionou à Fernanda Torres o Globo de Ouro de melhor de atriz. Recupero o texto.


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Assisti "Ainda estou aqui'' e vai ter spoiler na postagem.

O filme é uma aula de reconstituição de época, cinematografia, direção e também de atuação [não só de Fernanda Torres, mas também de Selton Mello].

O contexto político está subentendido mas nunca passa à frente do drama do desparecimento de Rubens Paiva e das consequências que ocasiona para a família e amigos. É como se o Paraíso, representado de forma magnífica pela vida idílica e rica no Leblon, e pela adolescência no fim dos anos 1960, é como se o Paraíso, dizia eu, fosse perdido pouco a pouco.

Essa vida perfeita e fascinante tem sempre o perigo da ditadura rondando, mas ao longe, um eco distante do caos que reina fora daquele círculo, mas que pode encostar no Éden de uma hora para outra, como na blitz policial nos primeiros minutos. E quando esse caos se torna presente de vez, o filme transita de forma imediata e admirável para o medo, a tensão, a incerteza, como um castelo de areia que vai se desfazendo diante das primeiras marolas.

Só não dou nota 10 porque os produtores não resistiram a dois epílogos que serviram de defesa da Justiça de transição, comissão da verdade e punição para os envolvidos na repressão, com a típica justificativa de que a condenação consolidaria na ''memória coletiva'' ou pública alguma forma de respeito aos direitos individuais: mas como se vê pela Indústria do Holocausto, que é basicamente a inspiração para essas propostas de ''passar ditaduras a limpo a fim de consolidar uma sociedade democrática'', o tiro está sempre pronto pra sair pela culatra.

O filme deveria terminar, na minha opinião, com a venda do casarão no Rio e a mudança para Sampa. Seria adequado e diria tudo que realmente importava dizer, muito bem retratado pela reação de uma das filhas do casal Rubens/Eunice, que toma consciência naquele momento que jamais veria o pai novamente.

Enfim, corram para as salas de cinema. Aliás, há tempos que não as via tão cheias para um filme. Matei saudade.


Publicado originalmente em:
https://www.facebook.com/constantor/posts/pfbid076M9U3h6MoynJXuStBP5KgpvtmspGGZ1zpZRf9UEzW3xFEJcfGeBy4AYxF2JDJXcl

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Nosferatu [2024] e A Bruxa [2015], o terror sobrenatural de Eggers contra a fragilidade do racionalismo

 


No fim de 2023, escrevi no meu Facebook sobre o filme 'A Bruxa' [The Witch], a estreia de Robert Eggers em 2015. [Reproduzo o texto no fim dessa postagem.] O intuito era apontar a incapacidade de muitos críticos de perceberem que o filme era sobre...bruxaria! Preferiam psicologizar os temas, tratá-los como alegorias contra uma sociedade patriarcal, misógina, repressora e supersticiosa. 


Ainda que o filme tangencie isso tudo, a pegada é terror sobrenatural. A feiticeira está mesmo lá na floresta, ela de fato sequestra o bebê e o mata em um ritual para reforçar seus poderes mágicos, a protagonista verdadeiramente estava em um processo de pacto com o cramulhão. As viseiras ideológicas não permitiam, no entanto, que estas pessoas notassem o minucioso trabalho de reconstrução histórica de Eggers e seu talento para nos transportar para um mundo em que bruxas existem. 


Pois bem, assisti ontem 'Nosferatu' [2024], do mesmo diretor, que já disse alhures que seu sonho de infância era fazer um remake do clássico imortal de Murnau, lançado no auge do cinema mudo, ainda em 2022. [E que gerou outro filmaço no fim dos anos 1970, dessa vez dirigido por Herzog, e protagonizado por Klaus Kinske e Isabelle Adjani]. O tamanho do desafio tinha tudo para fazer o sonho se tornar um pesadelo. Eggers conseguiu, no entanto, transformar o clássico em um filme seu, e um filme seu em uma síntese do terror gótico e das crenças medievais e modernas no vampirismo, antes  das idealizações juvenis do século XX. 



Mais ainda, ele aproveita para criticar explicitamente a mentalidade modernosa, iluminista e cientificista que aliena o ocidental do sagrado, das forças psíquicas e espirituais, e o torna presa fácil de um mundo cuja existência ele se recusa a admitir. O diretor mira justamente nas pessoas que assistem um filme sobre bruxaria sem conseguir ver a bruxa que é assunto principal da trama. Nas palavra de Von Franz [William Defoe vivendo o 'Van Helsing' da vez], a ciência tanto nos iluminou quanto nos cegou para estas forças cósmicas. Aliásd, o personagem que tipifica o racionalismo da Europa oitocentista é punido pela perda de toda sua família.


Tenho um texto sobre o assunto nesse blog [leia Sobre o Vampirismo] e recomendo a leitura para aqueles que desejam vislumbrar os fundamentos da história [re]contada por Eggers. O diretor se focou no 'folclore' das populações do período e complementou tudo com leitura esotérica e ocultista o suficiente para realizar seu sonho de criança. De todas as versões de Nosferatu/Drácula, esta é disparada a que melhor capta o esqueleto que sustenta o famoso conto de um entidade atraída dos confins de uma Europa distante temporal e geograficamente do Ocidente nascente. 


Afinal, os ''oceanos de tempo'' atravessados pelo nosferatu, citados por Coppola em seu 'Drácula, de Bram Stoker' [1992], não passam, no fundo, de uma viagem do interior da Romênia para alguma cidade portuária alemã. Diferente de Coppola, no entanto, o vampiro não tem qualquer laço afetivo e emocional por Ellen Hutter [nossa 'Mina', vivida por Lily-Rose Depp]. O próprio Conde Orlok afirma a certa altura que ''não passa de um apetite'' invocado pela força psíquica de uma adolescente que, sem conseguir lidar com seus dons preternaturais, sofrendo com a distância do pai, e com o erotismo à flor da pele, se envolve com um íncubo. O tema da possessão demoníaca permeia o filme, e a atuação de Depp impressiona na fisicalidade e nas transformações ocasionadas pelos ataques sobrenaturais e histéricos, pelos transes, pela epilepsia e pelas neuroses. Longe de ser uma vítima, ela é antes a 'feiticeira' que invocou um gigante até então preso no Hades. 



De modo similar, os costumes e ritos de ciganos e de religiosos romenos são retratados com fidedignidade capaz de gerar assombro no espectador. E também as práticas ocultistas de uma burguesia em busca de imortalidade, tipificadas aqui pelo bizarro Herr Knock [vivido por Simon McBurney]. Sigilos e círculos esotéricos, o envolvimento com feitiçaria que leva à transformação em vampiro após a morte, o papel de virgens no processo de caça ao monstro, o misticismo cristão-ortodoxo, e a ideia de pacto satânico [com ecos também de bruxaria. Está tudo lá. 


E Bill Skargard constrói o Orlok/Drácula mais terrífico já visto. Tudo nele remete a algo profano, corrupto e demoníaco, formados pela conjunção de uma voz aberrante, vinda de algum lugar do inferno, entrecortada com soluços e uma respiração difícil, e o corpanzil de dois metros se movimentando com dificuldade em uma figura montada em muita pesquisa sobre os nobres romenos do século XV.  De resto, a experiência imersiva de mundos históricos apresentados de forma impressionante, e com sutilezas, como o castelo tcheco usado no filme de Herzog. Os aspectos técnicos são um dos pontos altos, principalmente a cinematografia e o ritmo. Aliás, a tensão não cai em momento algum, o espectador está sempre desconfortável diante do conto de horror.


Vai ter gente reclamando que o filme não dialoga com  as pessoas do nosso tempo. O que não passa de mais uma bobagem iluminista. Por trás da máscara de racionalização, todos nós continuamos, ao fim e ao cabo, com medo do escuro.




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Abaixo, texto de novembro de 2023.



Revi ontem 'A Bruxa' [The Witch], filme de estreia de Robert Eggers, lançado em 2015. E aí resolvi olhar algumas análises e fiquei surpreso com resistência de boa parte das críticas a enxergar o óbvio. O que vi de nêgo virando do avesso a obra pra encaixotá-la em noções feministas, desprezo pela crença em bruxaria, e discurso anti-religioso não está no gibi.

Em um dos canais, um sujeito com nítidas crenças ocultistas fazia uma salada para defender que a bruxa da floresta não passava de uma criação da imaginação de fanáticos cristãos, mas que se torna um foco de parasitismo psíquico capaz de atuar de modo autônomo em relação às neuras e traumas que a geraram. Isso é ocultismo de segunda série primária; mas pior ainda porque desdito pelo próprio filme.

Existe muito papo sociologizante, e o tema tem seu espaço, claro. Muitos focam só nas questões de gênero, na repressão sufocante do puritanismo, e se apegam demasiadamente ao terror psicológico da obra.

Mas não percebem ou preferem não perceber que 'A Bruxa' não é só um terror psicológico, e sim um terror sobrenatural. Esses dois aspectos não estão separados, nem muito menos compartimentalizados.

Para não admitirem essa simplicidade, dão voltas e voltas argumentativas, torcem e distorcem o enredo e as cenas, como se o filme mantivesse o tempo todo uma ambiguidade sobre a realidade ou não da Bruxaria e do diabo. Ora, Eggers explora elementos importantes da relação entre os personagens, dos entrelaçamentos entre fé e dúvida, das rivalidades e desconfianças crescentes no interior da família, bem como dos aspectos culturais e históricos envolvidos. Mas a sutileza está em mostrar, desde o início, que tudo isso é joguete nas mãos do capiroto.

O diretor e roteirista estudou a fundo os julgamentos de bruxaria nos EUA e Inglaterra nos séculos XVI e XVII -- auge do fenômeno de "caça às bruxas" que tomou conta da Europa, e momento histórico em que se consolidou a imagem tipicamente europeia de bruxa que nos chegou, de forma matizada, a partir do folclore oitocentista redescoberto e reelaborado.

A derrocada da família tem início com o banimento da colônia em que viviam, motivada por orgulho e rigorismo religioso. Segue com o sequestro do bebê pela bruxa da floresta. As cena seguintes são tenebrosas e seguem à risca as crenças que o alvorecer da Era Moderna tinha sobre a bruxaria. A bruxa, na forma de uma velha nua, arranca o pênis do bebê, canibaliza a criança, se unta com seu sangue, faz unguentos e fabrica uma vara/vassoura com a qual pode voar. O diabo se manifesta em forma de lebre, de corvo e, principalmente, como um bode preto [Black Phillip], que se comunica com Mercy e Jonas, casal de gêmeos ainda na primeira infância, e os ensina uma música blasfema que revela a real natureza do animal. No fim da obra, o cramulhão toma sua forma mais perigosa, a humana, quando então sacramenta o pacto com Thomasin através do sexo.

Por fim, muitos que conseguem enxergar os elementos sobrenaturais do filme mantém, ainda assim, a opinião de que, apesar disso tudo, Thomasin é uma vítima da misoginia e do fanatismo religioso da época. Ela teria se tornado uma bruxa apenas no fim do filme, quando já não tinha qualquer alternativa.

Mas isto é falso. Ainda que toda a família seja afetada e influenciada pelo Mão-Peluda, e ainda que até mesmo Katherine, a mãe e dona da casa, conceda em ser parasitada por demônios -- momento em que William, vivido pelo excelente Ralph Ineson, deixa de ser de fato a cabeça daquele lar, e pode ser, então, assassinado pelo cramulhão --, Thomasin É A BRUXA desde o início, ainda que aja inconscientemente e lute contra a descoberta ou a revelação de seu próprio papel na trama.

Mas só saca inteiramente este último ponto quem não foi consumido por ocultismo de segunda série primária.