quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A Bíblia é a Palavra de Deus?, ou: A Formação do Cânone, parte 1

 


Rua de Jerusalém

Se a composição das Escrituras Judaicas [Tanach] já coloca problemas imensos para a visão protestante e 'protestantizada', ela se torna inviável quando se estuda a formação do cânone do ''Novo Testamento''.


O conceito de 'Sola Scriptura' -- em sentido amplo, o que inclui a 'Prima Scriptura' --, está comprometido até a raiz quando se sabe que o cânone não caiu do céu, mas foi composto ao longo de gerações, e determinado pelas autoridades da Igreja em um processo que só teve fim na primeira metade do século V.


Os protestantes tentam escapar das implicações mais óbvias deste fato evitando confrontá-lo de modo direto. Alguns alegam que a escolha dos livros canônicos não foi arbitrária, que se fundamentou em critérios bem rigorosos. Outros dizem que a principal autoridade na formação do cânone não era exatamente a eclesiástica, mas a apostólica.


As duas afirmações estão parcialmente corretas, inclusive do ponto de vista historiográfico, ainda que se deva qualificá-las: primeiro, quem estabeleceu os critérios e os aplicou na lenta formação do cânone foi a Igreja, cuja autoridade era constituída pelos Bispos, Padres e Monges, que se reuniam em Sínodos para debater as questões mais incisivas. Em segundo lugar, nem todos os escritos canonizados saíram da pena dos Santos Apóstolos, fato plenamente reconhecido tanto pela Igreja dita "Primitiva", quanto pelos acadêmicos, e inclusive pelos Protestantes [o próprio Lutero, diga-se de passagem].


No fim das contas, a posição protestante é insustentável por causa de algo ainda mais grave do que as minúcias acima: a Igreja dita "Primitiva'' não acreditava nem usava o 'Sola Scriptura'. Os cristãos conviveram por décadas sem escritos de qualquer tipo, e sobreviveram por mais de um século sem necessidade de pensar um cânone. A necessidade de uma 'lista oficial' de livros só brotou mais de meio século depois que todos os Santos Apóstolos tinham falecido. Depois que um cânone foi considerado imprescindível, o debate em torno dele durou ainda uns dois ou três séculos.


Convém lembrar que a composição dos textos que entrariam no cânone dependeu de uma transmissão de conhecimentos que era dada de forma oral. O Novo Testamento não está nem acima, não se confunde, nem se encontra ao lado da Tradição. Ele deriva da Tradição, é fruto dela de modo indiscutível.


Todo e qualquer contra-argumento protestante baseado nas Escrituras [como afirmar que São Mateus ou São Lucas ensinam que Cristo constituiu Apóstolos, ou que em Cartas de São Paulo se lê que as Escritura são boas para o ensino] não passam de tergiversações, já que nenhum destes textos existia antes dos anos 50.

Colinas próxima à Nazaré



Começo pela datação dos textos sobre os quais a Igreja dita ''Primitiva'' se debruçava, chamando a atenção para dois pontos fundamentais. Podemos datá-los de duas maneiras: seguindo a posição que os autores cristãos dos primeiros séculos tinham sobre estas obras, algo que podemos chamar de ''atribuição tradicional''; ou colocando a pesquisa histórica na jogada. Como pretendo deixar claro, este último critério complica ainda mais a posição protestante.


Não quero dar a entender que faço dos trabalhos acadêmicos uma régua segura sobre a autoria, a data ou a composição desses escritos. Pelo contrário, muitas das alegações dos historiadores são francamente inconclusivas e por demais frágeis, algo que eles nem sempre deixam claro por razões que fogem ao escopo destas postagens.


Como já usei os sinóticos em uma postagem [clique no link] sobre o mesmo tema, dou aqui como exemplo tão somente o Evangelho de São João: Até o início do século XX, era muito forte a tendência a datá-lo de forma tardia, um pouco antes do Diatéssaron, obra escrita por volta do ano 170 por Taciano, o assírio, que tentou harmonizar em um único texto o relato dos evangelhos hoje canônicos. Os argumentos eram os mesmos usados hoje em dia, e fundamentados em pressupostos teóricos e em uma seleção de ''evidências internas'' aos textos: o quarto evangelho tinha de ser do segundo século porque continha discursos longos, cristologia muito elaborada etc.


Ora, essa apreciação caiu por terra quando nos anos 1930 foram descobertos fragmentos de papiro com o texto de São João. Eles vinham do Egito e, segundo apontaram os métodos de datação, são dos anos 120. A conclusão é que o Evangelho de São João só podia ser do século I, com um consenso historiográfico forte ao redor dos anos 90, e uma franca minoria defendendo uma data anterior ao ano 70.


O exemplo aponta a insuficiência dos métodos pautados apenas por evidências e críticas textuais. É possível alcançar certo conhecimento da composição e da história de um texto dessa maneira, mas as hipóteses levantadas a partir daí são, em larga medida, inconclusivas. Seja como for, ainda que não sejam conclusivos ou definitivos, há muito valor nos métodos definidos pela Academia, de modo que é sempre bom tê-los em mente.


O segundo ponto: os textos hoje canônicos não foram os únicos produzidos no primeiro século da vida da igreja, nem eram os únicos lidos pelas comunidades cristãs. Havia outros e com peso suficiente para constarem de alguns cânones ainda no século IV, ou para pelo menos levantarem dúvidas sobre sua canonicidade [que existiam também em relação a alguns escritos que hoje constam do Novo Testamento].


É impossível falar da Igreja dita ''Primitiva'' ou da formação do cânone sem mencionar, ainda que por alto, a importância das duas Epístolas de São Clemente, da Epístola de Barnabé, do Evangelho dos Hebreus, do Evangelho de São Tiago, da Didaché, do Pastor de Hermas, dos Atos de São Paulo, do Apocalipse de São Pedro etc.


Vou evitar, porém, qualquer texto que saibamos com segurança ser escrito após o cânone de Marcião de Sínope [por volta de 160] pela simples razão de que eles eram tardios, nascidos mais das vezes em ambientes gnósticos sem vínculo com a Igreja, e não eram objeto de debate sério quanto à sua autoridade, confiabilidade, nem muito menos canonicidade. Não precisamos perder tempo com ''evangelhos'' e ''ensinamentos'' supostamente ''secretos'' datados dos séculos III em diante, por exemplo.



Rio Jordão



Proponho a seguinte classificação dos escritos: i. as Epístolas, gênero dos primeiros documentos cristãos conhecidos, e também os primeiros a serem alçados a uma posição de autoridade entre as diversas comunidades; ii. os Evangelhos, dando conta dos ditos e fazeres de Cristo; iii. os demais escritos [de natureza sapiencial, instrutiva, apocalíptica ou dando conta das missões e atos dos Santos Apóstolos].


Pra começar, podemos imaginar o seguinte cenário após a Gloriosa Ressurreição: nos primeiros vinte anos, o "Caminho" -- como alguns chamam o movimento cristão em suas origens -- se espalhava principalmente entre judeus e prosélitos [gentios buscando conversão ao Judaísmo] na Judeia, Galileia e áreas próximas.


Sua base principal era Jerusalém. Suas principais autoridades eram Pedro, João e Tiago [primeiro São Tiago irmão de São João, depois São Tiago o Justo, chamado de ''Irmão do Senhor" ou Adelphotheos]. De forma mais ampla, os Doze Apóstolos. Em um círculos ainda mais amplo, os 72 Apóstolos. É seguro supor a presença de algumas mulheres muito importantes, como a Mãe de Cristo [citada em todos os Evangelhos e também em Atos dos Apóstolos], Maria de Cleofas, Joana de Cusa e outras.


Esta primeira geração espalhava a "Boa Nova" sem qualquer escrito autoral nas mãos. Eles não podiam acreditar ou aplicar o Sola Scriptura pelo simples motivo que o Novo Testamento não existia. Para falar de Jesus Cristo, dependiam dos ensinamentos orais das figuras que foram discípulos do Senhor como também daqueles que chegaram a uma posição de liderança na primeira comunidade cristã [dentre os quais, um sujeito mais tarde conhecido como São Paulo, que certamente já fazia parte d'O Caminho na virada dos anos 30 para os 40], e tidos como pessoas guiadas por Deus.


É bem provável que durante essa primeira geração existissem coleções de ditos de Jesus circulando ao lado de uma vigorosa tradição oral. Mas elas não tinham qualquer peso de autoridade no interior destas comunidades, e a prova é que não conhecemos citação ou alusões a elas nos escritos cristãos, nem mesmo naqueles que datam dos anos 50 e 60 [como as epístolas paulinas]. Onde quer que essas supostas coleções tenham existido, tinham seguramente um status muito subordinado em relação aos ensinamentos das autoridades constituídas e que regiam a vida nas comunidades.


Daí que não precisamos tratar de alguma fonte Q oriunda desses tempos, conforme mencionei em postagem sobre o problema sinótico [clique no link]. Se havia algum documento como Q, e não há qualquer prova concreta disso, nunca adquiriu peso suficiente entre os cristãos sequer para ser copiado para as demais gerações, ou nomeado ou citado de modo direto e indiscutível seja nos textos hoje canônicos, seja naqueles produzidos no primeiro século de vida da Igreja mas que ficaram de fora do cânone, seja ainda nos autores cristãos dos séculos seguintes.


Toda vez que os fiéis d'O Caminho se referiam às Escrituras, estavam falando da Lei e dos Profetas, ou seja, das Escrituras Judaicas [mais tarde chamadas de ''Antigo Testamento"], que conforme argumentei em mais de uma postagem [aqui e aqui], circulavam em mais de uma variante em hebraico e, principalmente, na versão grega conhecida como Septuaginta. Não havia cânone fechado nessas Escrituras nem em hebraico nem em grego.


Esta era a Igreja em sua origem: sem nenhum texto 'oficial' ou 'oficioso', nenhuma Escritura própria senão aquela em comum com os demais judeus, nenhuma compilação chamada ''Novo Testamento''. Apenas a autoridade discipular [os 3 pilares, os Doze Apóstolos, os 70 Apóstolos, os Discípulos dos Apóstolos, os Bispos/Prebísteros e Diáconos estabelecidos nas comunidades], a tradição oral e a alegação de que seus líderes eram Iluminados pelo Espírito Santo [crença que se consolidou na tradição do Pentecostes].



Betânia



Além disso, existiam alguns ritos fundamentais -- o batismo [feito segundo uma fórmula que incluía ''o Pai, o Filho e o Espírito Santo''], e a 'ceia do Senhor' [Eucaristia], cuja instituição era atribuída ao próprio Cristo --, sem os quais ninguém era considerado membro do ''movimento''. E, tudo indica, crenças consideradas perigosas se divulgadas publicamente, e por isso mantidas de forma mais ou menos discreta, como a identificação de Jesus com o Kyrios [Senhor] da Septuaginta, a afirmação de que Ele era o Messias, e de que Ressuscitou dos mortos.


Se esta Igreja aplicasse o Sola Scriptura, o Novo Testamento jamais teria vindo à existência. A Bíblia não era considerada a ''palavra de Deus'' porque a Bíblia não existia. Não havia sequer um cânone fechado das Escrituras Judaicas. E ninguém ligava, ninguém pedia por isso nesta época, não se pensava ser necessário. A vida da Igreja, suas regras, seus ritos, suas práticas não eram determinadas por isso, mas por ensinamentos pessoais transmitidos de mestre para discípulo ou revelados diretamente do Alto.


Depois de vinte anos de vida, já no início da segunda geração de cristãos, e dada a expansão d'O Caminho por cidades cada vez mais distantes ao redor do Mediterrâneo Oriental, e ainda sob a liderança dos Apóstolos [dos Doze e dos Setenta e Dois], surgem os primeiros escritos que serão considerados importantes o suficiente para serem copiados e lidos publicamente nas comunidades como forma de ensinamentos.


Os primeiros documentos deste tipo eram cartas atribuídas a Apóstolos, seus discípulos, ou lideranças de grande status na Igreja. Foram escritas mais ou menos entre o ano 50 e o 140. Daquelas produzidas neste período, foram objeto de discussão para entrada num futuro cânone aquelas atribuídas a São Paulo [cujo número vou determinar na próxima postagem], as duas atribuídas a São Clemente de Roma, as três atribuídas a São João, as duas atribuídas a São Pedro, a de São Tiago, a de São Judas, e a de São Barnabé. O debate sobre quais Epístolas fariam ou não parte de um cânone definitivo prosseguiu até o fim do século IV, como veremos.


As sete Epístolas de Santo Inácio de Antioquia também são do final desse período, mas não vou mencioná-las diretamente por nunca terem sido parte de qualquer cânone dada sua composição reconhecidamente tardia [por volta do ano 140]. Ainda assim, são escritos de importância fundamental para conhecer o primeiro século de existência da Igreja.


No próximo texto, trato portanto desta primeira categoria de escritos que propus, as Cartas.

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