domingo, 28 de janeiro de 2024

O outro Pentateuco: o Samaritano

 


Se há quem se abale por saber que o texto massorético, em que se fundamenta as Escrituras Judaicas e os protestantes/evangélicos, foi elaborado por Rabinos durante a Idade Média, e que existiam diversas variantes do texto hebraico na Palestina do século I, imagina se eu falar do 'Pentateuco Samaritano'?



É que existe uma versão da Torah, a "Lei'', ou os cinco livros atribuídos ao Santo e Justo Profeta Moisés -- o Vidente de Deus --, compilada e usada pelos samaritanos.


Os samaritanos formam uma comunidade religiosa que se separou do Judaísmo, e cujo culto girava em torno do Monte Gerizim [hoje na Cisjordânia], em vez de Jerusalém. A história da separação entre judeus e samaritanos é um tanto complexa. Há uma versão judaica e uma samaritana para a origem da separação.


Para a historiografia, ela se deu de forma gradual e ao longo dos séculos. É possível confirmar a existência de um Templo no Monge Gerizim desde, pelo menos, o século V a.C., com uma linhagem sacerdotal própria e independente. Era um lugar de culto que existia na mesma época que o Segundo Templo de Jerusalém, portanto.


O Templo de Gerizim foi destruído na última fase do Reinado de João Hicarno, no fim do século II a.C., um período em que os Asmoneus impuseram, inclusive, conversões forçadas ao Judaísmo na Idumeia.


Também foi encontrada uma versão ou variante do ''Pentateuco dos Samaritanos" em Qumram. Ela contém cerca de seis mil variações em relação ao texto massorético atual [duas mil das quais concordam com a Septuaginta].


As variações mais importantes são quanto ao local de culto estabelecido por Iahweh [que os samaritanos dizem ser o Monte Gerizim], o papel de Moisés [que é ainda mais enfatizado], e a descrição muito menos antropomórfica da Divindade.





Desnecessário dizer que os samaritanos consideram sua Torah a verdadeira. E diferente das perspectivas historiográfias que vigoraram até recentemente, as traduções dos Pergaminhos do Mar Morto revelaram que não há meio de definir qual dessas diversas variantes era mais próxima de um lendário ''texto original''.


Muitos historiadores duvidam hoje em dia da tese de que existia uma texto único, um Urtext, que deu origem a múltiplas versões. Há quem diga que é mais provável imaginar um cenário em que múltiplas variantes eram normalmente aceitas ao longo dos séculos, até que foram uniformizadas em comunidades religiosas distintas [Septuaginta, no Judaísmo marcado pelo Helenismo, principalmente a partir de Alexandria; texto massorético, pela ação dos rabinos durante a Idade Média em cima de uma das variantes em hebraico circulando na Judeia; texto samaritano, pelos samaritanos que também usavam uma das variantes comuns na Palestina ao longos dos séculos].


De modo que voltamos à questão: temos a Septuaginta, cuja tradução se inicia em meados do século III a.C., e que era usada pela maioria dos judeus. É o texto utilizado pela Igreja dita ''primitiva'' da Era Apostólica.


E temos o texto massorético, trabalhado ao longo da primeira metade da Idade Média por escribas judeus que se consideravam herdeiros dos fariseus, e que tomou sua forma final entre o século VII e X da Era Cristã. Esta última passou a ser usada pelos movimentos protetantes.

Um comentário:

  1. Rigor na argumentação e profundo conhecimento das fontes são marcas registradas do professor André. Quando ele escreve sobre religiões, simbolismo e historiografia, fica difícil competir com sua clareza e domínio dos assuntos. É um deleite lê-lo. Muito obrigado por essas últimas postagens.

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