"A civilização ocidental moderna aparece na história como uma anomalia: dentre todas aquelas das quais temos conhecimento ora mais completo, ora menos, essa civilização é a única que se desenvolveu num sentido puramente material [...]; daí seu desdém não somente pelas civilizações orientais, mas até pela Idade Média europeia, cujo espírito lhes escapa de modo não menos completo."
René Guénon, "Oriente e Ocidente"
René Guénon, provavelmente o maior metafísico do século passado e uma das grandes esfinges intelectuais dos nossos tempos |
O conceito de Dissidência Tradicionalista é melhor compreendido com a exposição, ainda que em linhas bem gerais, de alguns elementos do Tradicionalismo. Vou apresentar aquelas características que esclarecem a ação dos que decidiram militar dialogando com esta escola. É também oportunidade de desfazer pelo menos uma ou duas confusões causadas por Benjamin Teitelbaum em sua obra “Guerra pela Eternidade”.
Nela, o Tradicionalismo é chamado de “bizarro”. Mas ele não parece assim tão esquisito para quem está minimamente familiarizado com os temas e discussões das correntes esotéricas ocidentais dos últimos dois séculos, ou com metafísicos como Plotino e Shankaracharya.
E para desfazer a possível estranheza, vou
apresentar, de forma bem rápida e simples, alguns problemas tratados por três
dos mais importantes representantes da corrente. O assunto é complexo, cada um
desses esoteristas tem dezenas de obras publicadas ao longo de décadas de
atividade intelectual, espiritual e, pelo menos no caso de um deles, política.
Mas é imprescindível falar de Guénon, Schuon e Evola para que se compreenda
corretamente a História da Dissidência.
René
Guénon, que pode ser considerado o primeiro autor da escola tradicionalista, era
francês nascido em Blois em 1886, e se movia por círculos maçônicos e
para-maçônicos, grupos ocultistas, rosacrucianos, de magia, hermetismo, cabala,
teosofia e martinismo que eram então comuns e que, com algumas modificações,
continuam parte indissociável da vida intelectual europeia e americana. Por
certo, estas correntes de pensamento, práticas e crenças não tem aceitação no
debate público mainstream nem muito
menos nas instituições acadêmicas, o que não implica que sejam menos
disseminadas de alto a baixo do tecido social.
Na verdade, sua presença é quase tão constante
quanto os templos das mais diferentes religiões. Por todo lugar que olhemos, flagramos
astrólogos fazendo dinheiro; celebridades propagandeando a Cabala, a Yoga e a
Meditação; executivos consultando médiuns; políticos usando serviços de
oráculos, sacerdotes e supostos magos; uma profusão de pessoas acreditando em
manipulação de energias sutis; e um mercado popular imenso para todos os itens
clássicos das práticas ocultas. Enquanto o discurso público se abraça ao
racionalismo, empirismo, materialismo metodológico e ciência contemporânea, aqueles
que o proferem mergulham, mais das vezes, em ideias que bebem das “bizarrices”
que Teitelbaum parece estranhar.
O Professor Jason A. Joseph Storm, do Williams
College, demonstra em “The Myth of
Disenchantment” que os cientistas, ideólogos e filósofos que, desde o
século XVIII até os dias atuais, denunciaram e combateram as “superstições” em
nome da Modernidade, estavam eles próprios imbuídos de crenças espirituais e
mágicas, que consideravam superiores àquelas que criticavam. Isto é, o discurso
de “desmitologização” e “desencantamento do mundo” que fundamenta a Modernidade
é ele próprio um Mito. De modo similar, Christopher Hugh Partridge, Professor
da Universidade de Lancaster, criou o termo “occulture” para se referir à
imensa influência que práticas ocultistas tem nas sociedades ocidentalizadas.
O que parece chocar no Tradicionalismo e lhe
conferir um caráter dissonante não é exatamente seu caráter esotérico, suas
supostas credenciais iniciáticas e sua defesa de uma sabedoria superior e ao
mesmo tempo ancestral. Uma jornalista do site El Coyote participou em 2020 de um podcast sobre ocultismo, Magia
do Caos e assuntos similares com o objetivo de denunciar “infiltração” de
direitistas em “grupos esotéricos”, que todos no programa avaliavam como
absurda e contraditória. O esoterismo e o ocultismo estariam inevitavelmente
vinculados à esquerda política, que aquelas pessoas identificavam com as atuais
ideologias social-liberais do establishment
político dos EUA e da Europa “desenvolvida”. O escândalo destes progressistas
com a descoberta do Tradicionalismo é uma chave interessante para analisar o
impacto de René Guénon.
2.
1 René Guénon
Diferente da maior parte dos esoteristas de seu
tempo, que buscavam ler as teorias, símbolos e ritos antigos e medievais, tanto
europeus quanto do Oriente, a partir de ideologias contemporâneas -- como um
certo evolucionismo, cientificismo e individualismo --, Guénon tomou a via
contrária: leu a sociedade em que vivia e os próprios grupos esotéricos
ocidentais a partir das fontes de ensinamento orientais com as quais entrou em
contato, tais como o Taoísmo, os escritos indianos e os mestres sufis. Esta “inversão
de olhar” deu à obra do francês uma qualidade bastante diferenciada em relação
aos seus pares e lhe permitiu, de certo modo, avaliar o mundo contemporâneo a
partir da perspectiva de povos pré-modernos.
O quanto ele foi bem-sucedido no esforço é
matéria polêmica, é como se perguntar o quanto um homem moderno pode ser não
moderno. Não que esta questão se colocasse para o francês, que se considerava
um iniciado, alguém que domina um conhecimento para além das possibilidades
verbais e racionais comuns. Mais de uma vez, Guénon insistiu que suas obras não
tinham qualquer teor subjetivo, que eram expressão pura da própria Tradição.
Por mais que estas alegações de transparência e dissociação das próprias
conjunturas pessoais possam ser problemáticas, permanece a singularidade da
proposta. Em um tempo e em meios que não cansavam de proclamar a superioridade
moral e intelectual da civilização europeia [e de suas neo-Europas], Guénon
tomou o lado, digamos assim, dos povos ditos tradicionais [no sentido de
não ocidentalizados].
Em certo sentido, obras como “A Crise do Mundo Moderno”, publicado
originalmente em 1927, são quase um manifesto anti-colonial, criticando as
pretensões da civilização europeia e americana [o mundo moderno] de se verem
como a única civilização de fato, e alertando contra a invasão não só material
mas da mentalidade ocidental nas demais regiões do planeta, cujo caráter
pré-moderno permitia que fossem todas agrupadas sob o epíteto de Oriente [mundo
tradicional] [1]:
“O
que não se pode contestar é que o Ocidente invadiu tudo; sua ação se exerceu de
início sobre o domínio material, que estava imediatamente ao seu alcance seja
pela conquista violenta, seja pelo comércio e pela apropriação dos recursos de
todos os povos; hoje, no entanto, as coisas vão ainda mais longe. Os
ocidentais, sempre animados pela necessidade de proselitismo que lhes é tão
particular, chegaram a fazer penetrar nos outros povos, numa certa medida, seu
espírito antitradicional e materialista; enquanto a primeira forma de invasão
atingia somente os corpos, a invasão atual envenena as inteligências e mata a
espiritualidade. Na verdade, a primeira preparou o caminho para a segunda e a
tornou possível, e isso não poderia ser diferente, pois é nisso que reside a
única superioridade real da civilização ocidental, tão inferior sob todos os
outros pontos de vista.”
Guénon diz ainda que a suposta influência de
conceitos e religiões orientais na Europa da virada do século XIX para o XX não
passava de uma ilusão. O ocultismo distorcia o sentido das fontes indianas,
chinesas e outras sob as luzes das ideias contemporâneas. O francês denuncia a
incapacidade dos “Orientalistas” em produzir um conhecimento real sobre a
cultura das demais civilizações. Em “Oriente
e Ocidente”, de 1924, ele faz uma defesa ferrenha da sabedoria das demais culturas
frente aos preconceitos europeus:
“Sabemos muito bem que esse modo de ver
choca a grande maioria dos ocidentais, pois é contrário a todos os seus
preconceitos; porém, deixando de lado toda a questão da superioridade, deveriam
ao menos admitir que as coisas às quais atribuem a maior importância não
necessariamente interessam a todos os homens no mesmo grau, que alguns podem
considerá-las perfeitamente insignificantes e que não é somente pela construção
de máquinas que se pode dar prova de inteligência. Seria já alguma coisa se os
europeus chegassem a compreender isso e a se comportar de acordo com essa
compreensão; suas relações com os outros povos se modificariam de modo mais
vantajoso para todos. No entanto, esse é apenas o lado mais exterior da
questão. Se os ocidentais reconhecessem que o simples fato de outras
civilizações serem diferentes da sua não as torna totalmente desprezíveis, nada
os impediria de estudar essas civilizações como devem ser estudadas, sem um
viés de menosprezo e sem hostilidade preconceituosa.”
Para Guénon, o Ocidente não passaria de uma anomalia que se considerava o suprassumo da realização humana tão somente por causa de conquistas no campo material, e ainda a fonte de uma frágil teleologia do progresso capaz de justificar a intervenção em todos os demais povos. O Ocidente era, na verdade, a real superstição.
É a partir desta “inversão de
perspectiva”, que os Tradicionalistas certamente chamariam de um “olhar a
partir dos princípios”, que o francês critica todos os fundamentos da cultura
ocidental, desde o cientificismo e a “matematização do mundo”, até o
individualismo, o racionalismo e a massificação.
Tentando ser sucinto, os pontos principais da
obra de Guénon que nos importam pra essa História são:
2.1.1
Metafísica:
Estátua de Adi Shankara, o principal expositor do Advaita |
Esta ascensão pelos diferentes níveis do Ser
não seria, segundo ele, apenas fruto de abstração, mas uma identificação
realizada pela mente humana com cada degrau de realidade: uma contemplação, ou
gnose, capaz de superar a dualidade entre sujeito e objeto. Por fim, o homem
alcança a Identidade Suprema ou, no jargão de Guénon, a Realização Metafísica,
se libertando de todas as condições limitadas, e, principalmente, da ignorância
[avidya]
que impede esta consecução. No caminho inverso, todos os ‘níveis de realidade’
são reflexos da Realidade Primeira, que se reveste cada vez mais do véu de Maya,
que encobre a verdadeira natureza do ser.
Não tenho espaço para uma apresentação menos
simplista do Advaita, mas cabe notar que não se trata da única
metafísica indiana, nem tampouco pré-moderna. Se Guénon realmente a considerava
a melhor e mais verdadeira, ou a escolheu por outras razões, é tema de debate,
principalmente porque ele se ‘reverteu’ ao Islã e se tornou um sheik sufi. De
todo modo, as linhas de interpretação do Vedanta, de modo geral, e o Advaita
em particular, tem uma grande vantagem: seus expositores estão acostumados a
conviver com uma multiplicidade incrível de espiritualidades e práticas. O que
chamamos de “Hinduísmo” não passa de um termo guarda-chuva para doutrinas,
ritos e vias espirituais muito díspares.
Para além da questão da verdade, as linhas de
interpretação do Vedanta construíram discursos doutrinários tão profundos quanto
abrangentes, capazes de incluir os mais diversos “pontos de vista”. Os
defensores destas diferentes abordagens metafísicas se reconhecem como
legítimos, desde que se apoiem nos escritos tidos por sagrados e nos métodos comumente
aceitos. O “debate” [Guénon também discordaria do uso deste termo] se voltava
para estabelecer qual deles teria a visão ou abordagem mais elevada ou
esotérica. Isto é, qual dos caminhos permitiria a maior realização espiritual.
Neste sentido, o Advaita proporcionava a Guénon uma forma de fazer o mesmo com
todas as demais religiões pré-modernas fora da Índia; lhe deu uma linguagem ampla o suficiente para
enquadrá-las em um discurso comum, mesmo se discordassem em pontos importantes.
2.2.2
Tradição e formas tradicionais:
Guénon tem uma visão “vertical” da Tradição.
Não se trata de uma transmissão de ensinamentos realizada no tempo, pelo menos não
somente, e sim o ‘influxo’ espiritual que, vindo de estratos superiores da
Realidade, que transcendem o âmbito do particular e da Existência propriamente
dita, vinculam aqueles que o recebem com os Princípios Universais, as dimensões superiores do Ser. A Tradição é
apurusheia,
isto é, de origem supra-humana. A transmissão de cima para baixo se adequa, no
entanto, às contingências do mundo, marcadas por movimento e particularidades.
A Tradição toma diversas formas, cada uma delas adaptada aos homens,
personalidades, tempo e espaço que a recebem. Um símbolo que explica esta ideia
é a da Árvore cujas raízes estão nos Céus e cujos ramos se espalham pela Terra.
A multiplicidade imensa de espiritualidades seria
perfeitamente compatível com uma unidade superior, que estaria no nível
metafísico, de conhecimento dos Universais. A diversidades das formas tradicionais é desejável, já que a humanidade é
necessariamente múltipla. As formas tradicionais, por sua vez, estão
na base das mais diversas culturas e civilizações, ligando todos os aspectos da
vida humana à Ordem Transcendente.
Guénon divide as formas tradicionais em um âmbito exotérico e um âmbito esotérico. O primeiro se destina aos aspectos individuais do ser humano [que incluem a moralidade, a racionalidade, e as instituições sociais e comunitárias]. Já o segundo diz respeito ao terreno da realização gnóstica de “estados superiores do ser”. Ou seja, à gnose que leva o homem a superar sua condição limitada e se identificar gradualmente com Princípios Superiores ou Universais. O esoterismo, por sua vez, se divide em pequenos e grandes mistérios.
Toda forma tradicional “completa” seria portadora destas duas dimensões, a exotérica e a esotérica, e ambas são justificáveis e legítimas em suas respectivas ordens de atuação.
2.2.3
Os Ciclos Cósmicos e as “Castas”
Do mesmo modo que a Realidade gera, em ordem
descendente, “níveis” e degraus cada vez menos espiritualizados, assim também a
humanidade vai caindo na matéria e na ignorância em ciclos sucessivos que a
afastam do Princípio Divino [2]. Guénon expressa esta ideia por meio das Yugas
védicas [Satya Yuga, Treta Yuga, Dvapara Yuga e Kali Yuga], fazendo uma
analogia com as Eras de Hesíodo [Idade de Ouro, de Prata, de Bronze e de
Ferro]. Este é um dos aspectos do Tradicionalismo mais incompreendidos e
distorcidos por Teitelbaum.
Em “Guerra
Pela Eternidade”, a perspectiva de Guénon, que nada mais é do que a
repetição de uma ordem de ideias védica, é chamada de “fatalista”, repetindo um
preconceito típico dos Orientalistas oitocentistas. Pior ainda, o escritor
percebe a sucessão de ciclos como uma
inversão da ideologia do progresso. Assim como o Ocidente acreditou no mito do
crescimento temporal inexorável dos níveis de civilização, tecnologia e
conhecimento, representados em uma linha reta direcionada para um futuro
brilhante e visto com otimismo; os Tradicionalistas acreditariam, parece
imaginar o escritor, em uma decadência também em linha reta, contra a qual nada
poderia ser feito, e que terminaria tão somente quando uma nova Idade de Ouro
fosse instaurada de cima para baixo. Partindo dessa abordagem errônea sobre um
aspecto fundamental desta corrente, Teitelbaum retira conclusões insustentáveis,
como a de que os Tradicionalistas seriam necessariamente aceleracionistas,
defensores do “quanto pior, melhor”. Afinal, pensa ele, se a Idade Sombria for
intensificada, se seus aspectos negativos se disseminarem em velocidade cada
vez maior, mais rápido também retornaremos à Idade de Ouro almejada. Assim,
quando refletido na política, o Tradicionalismo se manifestaria como uma força
destrutiva, sem qualquer intenção de incrementar, melhorar ou oferecer soluções
para os problemas das sociedades:
“O
desejo de lutar pela eternidade em vez de imaginar um futuro melhor e mais
promissor. É assim que você distingue um Tradicionalista real de alguém que é
meramente conservador – ou um tradicionalista, com ‘t’ minúsculo. É a diferença
entre alguém meramente pessimista e quem acredita que vivemos em um tempo de
destruição, que sustenta que o desmoronamento de monumentos é algo a ser
celebrado e que a vontade de construir algo grandioso não passa de uma tolice
perversa.”
Em entrevista ao jornal El País, em 2020,
Teitelbaum declara que “O Tradicionalismo
acredita que é preciso haver um cataclismo para restaurar o que acreditam ser a
verdade.” [3] Mas Guénon dizia o contrário. Primeiro, a decadência não é uma
linha reta do melhor para o pior, e sim um movimento de oscilação, similar à
batida do coração, em que existe uma perpétua tensão entre fatores ascendentes
e descendentes. Períodos de crise e queda podem ser revertidos temporariamente,
ou, no jargão guenoniano, “retificados”. O próprio cristianismo e a civilização
medieval são vistos por Guénon nessa chave: o período helenístico seria de
brutal degeneração, “consertada” pelo cristianismo durante cerca de mil anos.
Ou seja, diferente do que diz o escritor, é possível sim “melhorar a História”.
Nos primeiros parágrafos de “Crise do Mundo Moderno”, Guénon declara que “quando se diz que o mundo moderno está
passando por uma crise, o que habitualmente se entende por isto é que ele
chegou a um ponto crítico, ou, em outras palavras, que se encontra na iminência
de uma transformação mais ou menos profunda, que uma mudança de orientação
deverá se produzir em breve, por bem ou por mal, de modo mais brusco ou menos
brusco, acompanhada ou não de uma catástrofe”. Em outro ponto, ele
esclarece ainda mais o que entende pelo caráter descendente dos ciclos:
“O
que acabamos de dizer sobre o desenvolvimento da manifestação representa uma
concepção que, conquanto exata no conjunto, é por demais simplificada e
esquemática e pode dar a entender que este desenvolvimento se efetua em linha
reta, num sentido único e sem nenhum tipo de oscilação. A realidade, no
entanto, é bem mais complexa. Com efeito, como já indicamos, em tudo é possível
identificar duas tendências opostas, uma descendente e outra ascendente, ou,
caso queiramos fazer uso de outro modo de representação, uma centrífuga e outra
centrípeta. Da predominância de uma ou de outra procedem duas fases
complementares da manifestação: uma que se afasta do Princípio e outra que a
ele retorna, às quais são muitas vezes comparadas simbolicamente aos dois
movimentos do coração ou às duas fases da respiração. Embora estas duas fases
sejam, de ordinário, descritas como sucessivas, deve-se conceber que as duas
tendências às quais elas correspondem agem sempre de modo simultâneo, ainda que
em proporções diversas. Em certos momentos críticos nos quais a tendência
descendente parece a ponto de prevalecer no avanço geral do mundo, pode
acontecer de uma ação especial intervir para reforçar a tendência contrária de
modo a restabelecer pelo menos um equilíbrio relativo, segundo o permitam as
condições do momento, e operar assim uma retificação parcial em razão da qual o
movimento de queda parece temporariamente detido ou neutralizado.”
Não faz sentido, portanto, imaginar que o Tradicionalismo leve apenas a posturas destrutivas quando aplicado à política [uma aplicação, é bom ressaltar, que não é feita nem incentivada por Guénon, embora ele tampouco negasse esta possibilidade], mesmo que esta corrente de pensamento possa ser vista sob um signo efetivamente revolucionário, já que pretende instaurar uma ordem diferente da Moderna -- o que ademais também é o caso de múltiplos socialismos e também do liberalismo antes de sua vitória na Europa do século XIX. Além disso, ainda que se conclua que a Idade Sombria tenha alcançado um estado irreversível, possibilidade constantemente colocada nas obras do francês, a solução defendida por ele é a da constituição de uma elite intelectual que seja capaz de preservar as verdades tradicionais para a possível formação de um novo ciclo. Em nenhum momento se advoga a destruição pela destruição ou o abraço às correntes descendentes.
O Neoplatonismo é uma das grandes influências do Tradicionalismo, particularmente explícita em Schuon, que também incorporaria tradições indígenas norte-americanas |
No que diz respeito às varnas, elas não devem ser confundidas com o “sistema de castas” indiano. Este é específico à Índia, enquanto as varnas são disposições inerentes aos seres humanos segundo as quais é possível classificá-los em quatro grupo principais de “vocações”. Estas disposições nascem de articulações e tensões que ocorrem em cada indivíduo entre os três principais ‘vetores’ da Matéria Primordial [que forma todos os seres do mundo], ou, em terminologia hindu, entre as três gunas de Prakriti. Aqueles em que predomina o ‘vetor’ Sattva [a varna brâmane], ou luminoso, tem uma direção ascendente, e maior facilidade para a compreensão dos Universais e sua transmissão para os demais. Estão vocacionados às funções intelectuais [no sentido não apenas racional, mas de gnose, ou seja, de contemplação espiritual]: são professores, mestres, sacerdotes etc. Para Guénon, eles não exercem o governo, mas são a mais elevada autoridade de uma civilização ‘normal’ ou tradicional.
Depois temos aqueles em que predomina o vetor Rajas,
de expansão horizontal nos diferentes aspectos do mundo. São os Ksatryias, vocacionados para o governo,
a manutenção da ordem social e a defesa. É daqui que sai a aristocracia e a
Realeza, e também os juízes e militares, além de outras funções de ordem
administrativa e política. Este grupo exerce o poder temporal propriamente
dito. Abaixo, temos os homens em que predomina uma mescla de Rajas
e Tamas,
os Vayshas.
Estão vocacionados para a produção material e o domínio da ordem econômica: comerciantes, agricultores, artesãos, e todos os que apresentam tendência ao
exercício da técnica aplicada à geração de riqueza. Por fim, aqueles em
que predomina Tamas, e de direção descendente, os Sudras. São aprisionados pelas paixões mais baixas e pela gratificação dos próprios
sentidos. Em uma civilização ‘normal’ teriam de se ocupar dos serviços mais
baixos.
As varnas seriam expressões
substanciais do ser humano, e as sociedades mais complexas tendem a seguir suas
divisões mesmo que não a instituam em um sistema jurídico [o sistema de castas
propriamente dito]. Mas, de acordo com as condições cíclicas que imperem em uma
civilização ou no mundo em geral, as funções sociais podem ser ocupadas por
pessoas sem disposição ou vocação real para exercê-las. Teríamos assim militares
ou governantes que não são ksatryias, professores e
intelectuais que não são brâmanes. Além disso, a sociedade é orientada por um
dos tipos ideais que correspondem às diferentes varnas. Ela pode estar
organizada segundo os ‘valores’ e ‘objetivos’ dos brâmanes, dos ksatryias,
dos vayshas
ou dos sudras. A sucessão de Yugas e a decadência a ela associada pode ser entendida também como um "Retrocesso das Castas", cuja origem está em uma quebra do princípio hierárquico descrito acima. Para Guénon, essa ruptura se dá, originalmente, por uma rebelião dos ksatryias contra a autoridade espiritual dos brâmanes.
As três primeiras varnas
portariam “qualificações iniciáticas”, ou seja, podem efetivamente ser
introduzidos ao esoterismo. Por estarem presos nas paixões corporais mais
grosseiras, os sudras se limitariam à ordem exotérica. Cada varna
teria uma via espiritual mais condizente com suas disposições. Para simplificar
a questão, Guénon associava os Ksatryias aos Pequenos Mistérios,
mais vinculados a práticas espirituais bakthi, de teor devocional, ou seja, que partem de aspecto passionais da pessoa. Já os
Brâmanes estariam associados aos Grandes Mistérios e a práticas jñani,
ou de pura contemplação [gnose]. [4]
Como veremos, o tema das Varnas é muito importante
não só para o Tradicionalismo como também para a Dissidência Tradicionalista, já
que influencia diretamente na interpretação da história e dos
problemas contemporâneos, bem como nas propostas de superação da crise, ou de
“melhora da sociedade”. Este assunto é, inclusive, terreno de uma das mais
famosas discordâncias entre René Guénon e Julius Evola.
2.3
Frithjof Schuon
Muitos autores seguiram os passos de Guénon, tendo-o
como referência e realizando, cada um a seu modo, a “inversão de olhar”
que mencionei no início. Dois deles são particularmente importantes para
nossa História: o suíço Frithjof Schuon e o italiano Julius Evola.
Guénon e Schuon juntos antes do estranhamento e do desenvolvimento do Perenialismo do suíço |
Schuon também se ‘reverteu’ ao Islã e se tornou sheik Sufi, neste caso da Tariqa Maryamiyya, embora suas "credenciais" de transmissão iniciática tenham sido contestadas depois. O suíço
construiu uma obra tão consistente quanto a de Guénon, publicando cerca de duas
dezenas de livros, e seu movimento obteve grande sucesso nos EUA. Durante muito
tempo, ele foi a força dominante no interior do Tradicionalismo, e um
importante revisor da escola. Estas revisões não foram aprovadas por Guénon, diga-se de passagem, que acusou Schuon de criar um “pseudo-universalismo”. [5]
A abordagem schuoniana tem importância capital
para a nossa História em pelo menos um sentido bastante específico: Olavo de
Carvalho foi largamente influenciado pela Maryamiyya, copiou alguns de seus
métodos, e boa parte das criticas que realizou ao Tradicionalismo nos anos 2000
tinham por principal alvo o projeto que pensou discernir na organização do
suíço.
Schuon é conhecido pela proposta da “Unidade
Transcendente das Religiões”, nome de seu livro mais famoso. Ele radicalizou o
Perenialismo implícito em Guénon, emprestando a ele, no entanto,
características muito próprias. O metafísico francês dizia que toda forma
tradicional plena tinha uma dimensão esotérica, que lidava com a dimensão
propriamente metafísica e iniciática. Schuon extremou esta posição ao defender
que todas as tradições verdadeiras tinham o mesmo núcleo metafísico, uma religio
perennis cujo núcleo podia ser descrito a partir de uma comparação de
seus símbolos e ensinamentos. Em suma, começou não só a destrinchar quais
seriam esses ensinamentos como também a “conciliar” as aparentes contradições
entre as diversas “religiões”. Foi ainda além quando a Maryamiyya passou a
admitir não-muçulmanos, pelo menos em estágio inicial, o que a levou a ter
influência em outras organizações religiosas. Também cruzou uma linha sempre
muito criticada por Guénon ao permitir certo sincretismo nos ritos da tariqa.
Com isto, abriu o flanco para a acusação de que
buscava uma infiltração nas religiões, lendo-as a partir de uma
“super-doutrina” elaborada e aplicada por ele próprio, ensinada para iniciados
em sua tariqa, e a partir da qual ele se colocaria em posição superior
às próprias autoridades das formas tradicionais praticadas “exotericamente” por
seus discípulos. Além disso, levou a fama de relativizar as práticas basilares
do Islã, criando um “sufismo genérico” sem grandes compromissos como a Shari’a. [6] No fim da vida, sua tariqa foi abalada por acusações de desvios sexuais. Há relatos também de que o suíço alegou ter
alcançado a Identidade Suprema.
2.4
Julius Evola
O Barão Giulio Cesare Andrea Evola tornou-se a
principal referência Tradicionalista nos meios fascistas e neofascistas da
Europa e dos EUA. Sua importância na dissidência é tamanha que seu nome é o
primeiro que vem à mente quando se pensa neste campo político, o que é ainda mais
surpreendente quando se sabe que o Barão era um autor quase que marginalizado
dentro das principais linhagens da escola. É possível encontrar pessoas
com décadas de estudo de Guénon, Schuon, Ananda Kentish Coomaraswamy, Rama
Coomaraswamy, Titus Burckhardt, Marco Pallis, Seyyed Hossein Nasr e muitos
outros, mas com conhecimento apenas fragmentário da obra de Evola. Isto se deve,
claro, ao envolvimento do italiano com movimentos políticos demonizados após a
Segunda Guerra Mundial. E ainda assim, ele deve ser visto não só como um dos
mais eruditos, mas também um dos mais profícuos, originais e abrangentes
pensadores da escola.
Guénon e Schuon davam atenção restrita para a
ciência e a arte de seu tempo, preferindo criticar o Ocidente por inteiro enquanto
divulgavam para elites intelectuais as supostas verdades metafísicas e
esotéricas que pensavam discernir em seus estudos e vias espirituais. Nenhum
dos dois pretendia realizar qualquer atividade política ou ter envolvimento com
os afazeres do mundo moderno. A posição de Evola era flagrantemente distinta,
consequência de um esoterismo que, pelo menos no discurso público, tomou outra
trilha em relação aos dois Tradicionalistas mais famosos.
O italiano levava mais a sério a ideia de que
as sombras da Kali Yuga não eram um rompimento definitivo com a esfera do
Ser, o que seria impossibilidade pura e simples. As influências espirituais se
esvaneciam na medida em que o ciclo se afastava do Princípio, mas elas nunca
estavam ausentes de fato. Assim, era possível dialogar com o resquício de luz
divina que existia por trás da decadência da Era. Isto significava para o
italiano dialogar com as forças contemporâneas, tanto no terreno da arte,
quanto no da ciência e no da ação política, visando potencializar suas
positividades na direção de uma retificação. Podemos também interpretar a abordagem
de Evola como tântrica, ainda que Guénon não concordasse que a distinção fosse
exatamente esta.
Não apenas tântrica, mas marcadamente varmachara,
o chamado “Caminho da Mão Esquerda”. Segundo Christopher D. Wallis, quanto mais
à esquerda for a via tântrica, “mais ela
enfatiza as seguintes características: não-dualismo, culto ao feminino,
inclusão das mulheres, transgressão das normas sociais, simbolismo mortuário
ocasional, e gurus carismáticos.” Em que grau essas características se
aplicam à visão de Evola é matéria polêmica. Mas diferente de Guénon e Schuon,
ele não tinha intenção de salvaguardar as grandes religiões como veículos
tradicionais. Pelo contrário, as considerava incapazes de fornecer apoio para a
retificação do Ocidente.
O Barão igualmente criticava o que entendia ser
a defesa de uma “burocracia iniciática” nos escritos do metafísico francês. Para
Evola, muitas das instituições e organizações esotéricas já não providenciavam
aos seus adeptos a “realização de estados superiores”. Ou seja, eram também estéreis
no terreno iniciático.
As divergências entre Julius Evola e René Guénon levantam alguns dos principais problemas da história do esoterismo ocidental e são fundamentais para entender a Dissidência Tradicionalista |
Uma divergência ainda mais fundamental se dava
em relação aos Grandes Mistérios. O francês defendia a superioridade brâmane em
relação aos ksatryias. Mais ainda, considerava que o processo de
“retrocesso de castas” teve início quando estes últimos se rebelaram contra a
autoridade espiritual brâmane. A suposta rebelião se ligava a ideias sobre a
Geografia Sagrada e os continentes perdidos de Hiperbórea e Atlântida, que por
sua vez incluíam assuntos como o do Centro Tradicional Primordial e da
Contra-Tradição, que não temos espaço para tratar aqui, mas que se refletiram
profundamente na obra do russo Alexandr Dugin, que será abordada em textos futuros.
De todo modo, Evola pensava que as tendências
espirituais inscritas no ksatrayia tornavam-no apto a uma
iniciação superior pela “usurpação” ou “conquista” das energias veiculadas
pelos brâmanes. Esta Iniciação transformava quem a possuísse em um ser acima
das próprias varnas. Ora, esta figura existia também para Guénon, um estado de grande realização anterior à divisão da humanidade em castas, e que ele chamava de Hamsa, a condição primordial da humanidade. Evola sustentava, no entanto,
que esta era também a função da Realeza Sagrada, o cume do poder do Estado e
maior símbolo de transcendência na ordem social.
Assim, o Barão enxergava nas características
próprias aos Ksatryias a chave para a retificação do Ocidente, e não na
formação de uma elite intelectual [e portanto brâmane], como queria Guénon. A
forma do Império -- com um governante sagrado, capaz de unir em si próprio a
iniciação do guerreiro e a do sacerdote – seria aquela que representava no
mundo o Homem Cósmico; não as civilizações em que a autoridade espiritual se
concentrava nas mãos de brâmanes. No debate político da história
europeia, os evolianos costumam dizer que estariam do lado dos gibelinos e do
Império, contra os guelfos e o Papado. Esta quase inversão na hierarquia de ksatrayias
e brâmanes era acompanhada também pela valorização da ação [espiritual] sobre a
contemplação. Também se associava à valorização que Evola conferia em sua Metafísica da História às sociedades indo-europeias, consideradas ksatryia e ativas, e oriundas do Norte Global; em relação às sociedades orientais, tidas por sacerdotais [brâmanes] e contemplativas. [7]
Enfim, estas discussões entre Guénon e Evola,
que podem parecer sutis demais para os leitores, são vitais para quem deseja
entender de modo apropriado o Tradicionalismo, incluindo o envolvimento de
dissidentes com esta corrente de pensamento. Na verdade, boa parte da história
das ideias esotéricas ocidentais se conecta com estas questões. Elas induzem a
uma abordagem distinta do mundo ao redor, da natureza da ordem social, do papel
das religiões e instituições sagradas, bem como visões díspares sobre a
História, os ciclos cósmicos e as raízes dos processos de decadência espiritual
e civilizacional.
Como dito no início, Evola se envolveu
diretamente com o pensamento de sua época, em diálogo que tinha por objetivo
impregnar de esoterismo o mundo em que vivia. Mesmo as obras mais polêmicas,
como “Síntese da Doutrina da Raça”, visavam “corrigir” a perspectiva
que ele considerava profana. Há muita polêmica a respeito de seu envolvimento
direto com o nazi-fascismo nos anos 1940, ainda que ele próprio não se considerasse
fascista e tivesse produzido críticas a essa ideologia desde os princípios dos
anos 1930. É indubitável que suas escolhas naquelas décadas continuam inspirando movimentos neonazistas, embora ele também tenha realizado críticas ferrenhas ao Nazismo. O que aliás, também aponta um erro flagrante de Teitelbaum em entrevista concedida este ano.[8]
Depois da Segunda Guerra Mundial, Evola adotou uma postura pública aparentemente apolítica. A Idade Sombria teria atingido tal grau de degeneração que já não seria possível retificá-la. Nesta situação, o melhor seria o não-compromisso, a guarda interior contra as influências nefastas, a “saída para a vida interior” a fim de escapar da contaminação da degradação ocidental. Era uma abordagem que parecia contrastar com a anterior. Mas até que ponto o italiano considerava impossível uma ação que revertesse as condições da Idade sombria é tema polêmico entre seus próprios discípulos. Há quem diga que ele continuou ligado, de algum modo, a movimentos neofascistas em seu país. Outros relatos sugerem que sua paraplegia era uma farsa. Há polêmicas, inclusive, sobre qual seria sua verdadeira vertente espiritual – em “Julius Evola: o Sufi de Roma”, Frank Gelli declara que seu mestre era, na verdade, um cripto-sufi, o que redimensionaria completamente a obra de um autor que, para muitos, era o maior dos defensores das tradições pagãs indo-europeias.
Os estudiosos mais antigos do Tradicionalismo
aprenderam sempre a ter um pé atrás e diferenciar atentamente entre o discurso
que estes autores sustentavam em suas obras e suas reais perspectivas
espirituais e intenções. Nenhum deles deve ser abordado com simplificações. Muitos
aspectos da biografia deles se ocultam sob uma nuvem de mistérios, à
espera de uma abordagem mais precisa em pesquisas futuras.
A emergência da Dissidência Tradicionalista no
debate político levantou um véu que escandalizou diversos estratos da sociedade
ocidental e da mídia, que decidiram lidar com a descoberta repetindo jargões
antifascistas e reafirmando sua crença na ciência, no progresso, nas liberdades
individuais etc. Alguns criam espantalhos e, com chapéu de alumínio, imaginam
uma grande rede de conspiração financiada por bilionários. Mas a verdade é que,
antes mesmo de transbordar para a esfera propriamente política, o
Tradicionalismo se difundia intensamente por diversos círculos intelectuais,
artísticos, filosóficos e esotéricos dos países da Europa e da América.
Voltamos ao início do texto para explicar a adesão cada vez maior a esta escola
de esoterismo.
Estátua de Nagarjuna, principal nome da escola Madhyamika, que possibilitou a conciliação entre os brâmanes e o Budismo |
O Ocidente não é criticado apenas pelo
Tradicionalismo, mas virtualmente por toda e qualquer corrente filosófica do
último meio século. A partir dos anos 1960, as classes médias tiveram acesso aos debates oriundos da Academia. Quem de fato é hoje ingênuo o
suficiente para sustentar o valor de face do cientificismo e do evolucionismo
oitocentista, a não ser aqueles com parco acesso à informação de qualidade?
Neste sentido, muitos elementos do Tradicionalismo estiveram na vanguarda, pelo
menos no campo do esoterismo, de uma crítica que se tornou generalizada nas
décadas recentes. E, no caso Tradicionalista, ela é feita não a partir de
um relativismo completo e individualista, mas de matrizes de pensamento que
estão entre os maiores arcabouços intelectuais já produzidos pelo homem, do
neoplatonismo ao taoísmo, da mística sufi ao Shaivismo de Caxemira.
Por isso também se equivoca quem imagina que esta
escola metafísica atraiu apenas gangues neonazistas desejosas de reeditar as
polêmicas – que compreendem muito pouco, diga-se de passagem – de Julius Evola.
Na verdade, os meios tradicionalistas estão ainda mais repletos de adeptos da
contracultura, hippies, estudantes cultos de filosofia e esoterismo, pessoas de
sensibilidade de esquerda, críticos do colonialismo. O Tradicionalismo se
tornou perfeito para a Dissidência em uma época em que o mito
burguês e ocidental perdeu sua capacidade de mobilizar corações e mentes.
2.6
Pontes para o próximo capítulo
A) O Tradicionalismo não é necessariamente uma
linha de chegada, mas um portal que dá acesso a um oceano imenso de autores.
Ter isso em mente é fundamental para que se compreenda a dinâmica dos próprios
grupos que se vincularam a esta escola. Muitos seguiram a trilha de Guénon,
Schuon e se converteram a uma espiritualidade tradicional. Alguns descobriram
as ‘fontes tradicionais’ mencionadas por estes autores nos ritos, práticas e
metafísicas das vias espirituais que escolheram. O sujeito começa em Guénon, e
logo está lendo Abhinavagupta ou São Simeão Novo Teólogo. Parte destes passa
não só a mobilizar o Tradicionalismo contra o Ocidente, mas também a ler o
próprio Tradicionalismo, e a criticá-lo, a partir da ótica de suas religiões e
tradições. O exemplo típico dessa abordagem é o de São Seraphim de Platina.
B) No caso de pessoas vinculadas a Schuon, há
tendência de assumir uma identidade religiosa mas continuar lendo a própria via
espiritual a partir da ótica da “Unidade Transcendente das Religiões”. De todo modo, nem toda pessoa realiza esta "passagem" pelo portal do Tradicionalismo. Muitos tornam os livros de um ou mais de seus autores em novas "Escrituras Sagradas".
C) Os
frutos mais óbvios do Tradicionalismo não se encontram no terreno político. E
há de se ressaltar que muitos tradicionalistas nunca se interessaram
diretamente por este tipo de atuação.
Na próxima postagem, vou abordar rapidamente, e
sem maiores pretensões, alguns exemplos de recepção do Tradicionalismo no
Brasil. E finalmente falar sobre Olavo de Carvalho e sua importância capital na
gestação da Dissidência Tradicionalista, principalmente entre aqueles que
interpretaram a ação do “Filósofo da Virgínia” como flagrantemente dissonante
com os princípios mais fundamentais da escola.
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[1] O discurso de Guénon se dá muitas vezes em múltiplos níveis, por mais que ele tente esclarecer, a cada passagem, o âmbito a que se está referindo. Assim, os epítetos "Oriente" e "Ocidente" são aplicados por ele a dois tipos de mentalidade, àquela tradicional e à Moderna, tendo esta última se manifestado na Europa a partir do século XV. Por outro lado, Oriente e Ocidente também podem ser vistos sob a ótica de uma Geografia Sagrada, que em Guénon se vincula ao tema dos Ciclos Cósmicos e dos Centros Iniciáticos que tem a função de transmitir e manter os ensinamentos tradicionais em cada período específico. Este é um tema muito complexo, e não pretendo abordá-lo de modo sistemático e direto neste texto.
[2] A Realidade Primeira une em si os dois pólos principais cuja articulação vão gerar todos os Universais e toda a Existência propriamente dita: Purusha [o Espírito, o 'Eu', o pólo ativo ou Masculino] e Prakriti [A Matéria, a Substância, o pólo passivo ou Feminino]. A queda ou afastamento do princípio é, portanto, uma materialização cada vez maior do mundo e de seus estados correspondentes, rumo a uma indistinção total na matéria primordial.
[3] Destruição é a agenda do Tradicionalismo
[4] Não há espaço para tratar dos aspectos de uma Antropologia e de uma Psicologia Tradicionalista. Mas há uma correspondência analógica entre a constituição do ser humano em sua estrutura psicossomática, e o Cosmos ou o Homem Universal. Há também uma analogia entre ambos e a Ordem Social. Para uma abordagem acadêmica, vejam "Homo Hiearchicus: o sistema de castas e suas implicações", do antropólogo Louis Dumont, em que são tratadas as diferenças entre as sociedades holistas [tradicionais] e as individualistas [modernas].
[5] Neste sentido, é necessário distinguir o Perenialismo de Schuon com a postura e as ideias Tradicionalistas de René Guénon.
[6] Ou seja, um sujeito continuaria praticando sua religião, e inclusive chegando a uma posição de autoridade na instituição religiosa correspondente, mas no fundo se vincularia às ideias da metafísica exposta por Schuon, aceitando sua autoridade superior e esotérica. Um fenômeno também ligado a uma forma de cripto-sufismo. Esta questão foi mais tarde explorada por Olavo de Carvalho, que a associou a sensibilidades islamofóbicas do neoconservadorismo e da direita europeia. Tratarei deste ponto no próximo texto.
[7] Este é um tema caro ao esoterismo oitocentista: as diversas Eras da história humana, com a sucessão cíclica dos Centros Iniciáticos segundo uma Geografia Sagrada. Pode ser encontrado tanto em Blavatsky quanto em Papus, tanto em organizações rosacrucianas quanto em maçônicas e para-maçônicas.
[8] É verdade que Teitelbaum se esforçou algumas vezes para desvincular o Tradicionalismo do nazismo e do fascismo [vide: A base ideológica que funda a nova direita]. Mas em outras ocasiões escorregou sob a pressão do entrevistador, chegando a dizer à Folha de São Paulo que "Julius Evola [1898-1974], que é o principal político Tradicionalista, colaborou com o governo fascista na Itália, mas no fundo nazistas e fascistas eram muito modernos para ele, muito materialistas. Mas creio que o Tradicionalismo não tenha nenhuma crítica particular ao nazismo." [vide: Guerra na Ucrânia reflete doutrina de Dugin]. A declaração é surpreendente, porque dá a entender que o autor de "Guerra pela Eternidade" não domina a obra daquele que considera o "principal político Tradicionalista". Afinal, Evola escreveu uma obra específica com críticas veementes ao nazismo. Em "Notas sobre o Terceiro Reich", ele critica a vulgarização, massificação e filistinismo nazista, suas distorções de conceitos como o de Reich [que, segundo ele, jamais poderia ser um modelo político Tradicional], a "insuperável incapacidade" da simbologia nazista face à dimensão transcendente, o nacionalismo, e até a mentalidade "plebeia" [em um sentido de varna] de Hitler e associados. Aliás, até mesmo a "Síntese da Doutrina da Raça" pode ser encarada como uma ferrenha crítica ao racismo biológico, ao cientificismo e ao materialismo das concepções nazistas.
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