terça-feira, 10 de maio de 2022

A Geopolítica de Dugin em "Foundations of Geopolitics"

 

"O Novo Império deve ser eurasiático, continental, e no futuro Mundial. A batalha dos russos pela dominação mundial não chegou ao fim."

A. Dugin






Foundations of Geopolitics” é usado como objeto de propaganda por alguns discípulos e simpatizantes de Alexandr Dugin. Segundo se conta, a obra impactou profundamente o establishment militar e o aparato de inteligência russo, e foi lida sistematicamente entre os planejadores de política externa e no alto escalão das Forças Armadas. O próprio Dugin alimenta esta fama: depois do início da invasão à Ucrânia, em fevereiro deste ano, deu entrevistas descrevendo como suas ideias geopolíticas se tornaram influentes entre os oficiais superiores russos a partir do fim dos anos 1990.

 

Não vou adentrar a espinhosa questão sobre se Dugin é de fato o cérebro por trás das linhas geopolíticas de Putin, ou se é, alternativa bem mais provável, um dos integrantes da ala eurasianista que se impôs aos ocidentalistas [ou “europeístas”] e pan-eslavistas [ou “eurasianos nacionalistas”]. Esta ala, que não foi inventada recentemente, mas mergulha fundo na história intelectual do país, alega que a Rússia é não só uma civilização à parte, formada por uma intersecção de elementos bizantinos [Império Romano do Oriente], eslavos e turco-mongóis, como deveria se expandir em aliança com outras potências da Eurásia com o objetivo de furar o cerco norte-americano à Ilha-Mundo.

 

O ponto principal deste pequeno texto é expor algumas das linhas gerais do pensamento estratégico de Dugin, sem entrar em muitos detalhes, que podem e devem ser tratados em outras ocasiões. Antes, cabe esclarecer dois pontos. 


Primeiro, alguns poderiam frisar que a obra em questão foi escrita em 1997 e reeditada até início dos anos 2000. Representaria, assim, a forma como Dugin enxergava estes assuntos há vinte anos. É uma observação importante, e eu não me espantaria caso o sociólogo tenha mudado de posição quanto a vários aspectos da exposição. Mudar de ideia diante de novos ou velhos problemas, se adaptando à realidade, ou superando insuficiências e limites das próprias teorias e abordagens, é sinal de inteligência e boa forma intelectual e política, não uma traição à própria causa.

 

Mas não há nenhum texto com a mesma abrangência, escopo e detalhamento negando os pontos principais da análise realizada por Dugin em “Foundations of Geopolitics”. É legítimo considerar que ele continua esposando os elementos mais substanciais da obra. Inclusive, muitos estudiosos do pensador russo vão reconhecer no livro, de imediato e de modo muito fácil, os temas mais constantes em seu discurso atual.


Outro possível contra-argumento é de que se trata de escrito anterior à Quarta Teoria Política, que veio à tona em 2009, e da Noomaquia, publicada na década passada. Mas nem um nem outro são propriamente obras de geopolítica. Pelo contrário, elas buscam legitimar, sustentar e elaborar teoricamente um mundo multipolar -- no sentido em que este último faz sentido para Dugin; ou seja, uma multiplicidade de civilizações com parâmetros axiológicos e perspectivas míticas e ontológicas diferentes. Elas Podem se lidas como esforços para substanciar a estratégia geopolítica delineada em “Foundations”, sem necessidade de alterá-la drasticamente. Como Dugin dizia há vinte e cinco anos, e continua repetindo em entrevistas e textos recentes, o cerne da geopolítica russa repousa no Eurasianismo, na oposição irredutível entre Terra-Mar, e em uma forma de “destino manifesto” russo, um povo que só faria sentido quando percebido por meio de uma ótica messiânica, escatológica e imperial.

 

Até que se prove o contrário, “Foundations” permanece como a obra magna da geopolítica de Dugin e do Neo-Eurasianismo, e a principal exposição desta estratégia para a formação de um novo sistema internacional. Conheçamos algumas de suas linhas gerais.

 

 

 

1.      1. A oposição Terra vs Mar

 

Boa parte do livro apresenta uma narrativa e exposição sobre a Geopolítica Clássica. E é a partir dela que o pensador russo afirma a existência de uma oposição essencial na estrutura geopolítica, o confronto entre Terra e Mar, que já estava dado em MacKinder e Carl Schmitt. Leitores menos atentos de Dugin devem ter cuidado com este ponto: o russo radicaliza esta distinção, lhe conferindo uma dimensão esotérica ligada a certo tipo de Tradicionalismo e algumas crenças ocultistas do século passado.

 

A oposição entre Terra e Mar é, para Dugin, muito mais do que uma contraposição entre potências terrestres e marítimas, ou culturas arcaicas e cosmopolitas. Ela tem uma dimensão espiritual. É uma “Guerra nos Céus” que se manifesta em todos os campos da vida humana, incluindo o arcabouço cultural dos povos e as vias espirituais e religiosas [No fundo, este é o tema real da Noomaquia, conjunto de livros que parte da mobilização do conceito de Imaginário de Gilbert Durand]. 


Os poderes civilizacionais e geopolíticos que ele identifica com o Mar são a “Eterna Catargo”, que se opõe à “Eterna Roma” -- epíteto destinado à Terra. Dugin usa também os mitos esotéricos de “Atlântida” e de “Hiperborea”, temas importantes em Guénon, para se referir à mesma dicotomia fundamental. A primeira,  símbolo da Tradição decaída [afundou no mar, permitiu-se cercar pelas forças cósmicas simbolizadas na mulher, se liquefez, perdendo sua forma e aderindo ao polo substancial da existência]. A segunda, é símbolo do “eterno Norte”, a terra primordial, edênica, e dourada da raça semi-divina, que, como a Eurásia, é inabalável e inalcançável pelos “poderes marítimos” [percebam a leitura esotérica da expressão].

 

As civilizações do Mar cultuam a Grande Mãe, a Natureza, os deuses ctônicos, os poderes cósmicos femininos, e se expressam por tendências igualitárias, predominância do comércio e do cosmopolitismo, e por certa concepção materialista do mundo e da História. [O Mar é encarado por Dugin sob o símbolo do domínio da Mulher.] Estas forças espirituais se tornaram hegemônicas no mundo contemporâneo, na forma da sociedade de massas, do capitalismo, do individualismo e do homo economicus. Geopoliticamente, são representadas por diversos países, tais como a Inglaterra e a Holanda, que formaram impérios talassocráticos. Mas sua encarnação definitiva são os EUA e o domínio do Oceano. As Civilizações da Terra, por sua vez, são arcaístas, vinculadas à própria terra e tradições [‘provincianas’], hierárquicas e patriarcais, holistas e militaristas. São manifestações de forças espirituais que tem sua encarnação em diversos povos, tais como o alemão e o iraniano. Sua região sagrada por excelência é a Eurásia, e sua encarnação atual, desnecessário dizer, é a Rússia. [Estas civilizações são vistas pela simbologia do Pai, do Herói, do Guerreiro.]


É impossível compreender a Geopolítica de Dugin sem esta dualidade irredutível como pano de fundo. Para ele, não há possibilidade de conciliação humana entre estes dois pólos, nenhuma neutralidade. Ou é Terra ou é Mar, tertium non datur. A distinção entre amigo e inimigo, desenhada por Schmitt, atinge aqui seu ponto culminante, transferida para a própria dimensão espiritual, transformando-se em chave de leitura política e geopolítica. Daí a tendência de Dugin de realizar reducionismos dicotômicos em todas as suas análises, reunindo todos os múltiplos fatores e elementos de determinada situação a dois campos opostos que funcionam como antítese insuperável um do outro. Impossível negar que tal empreendimento tem uma eficácia retórica enorme.

 

“A fórmula metodológica mais comum e compartilhada é a afirmação do dualismo histórico fundamental entre Susha, Telurocracia, o “Nomos” da Terra, Eurásia, Coração Continental, a “Terra do Meio”, a Civilização da Ideocracia, o “Eixo Geográfico da História”, de um lado; e o poder do Mar, o “nomos” do Mar, o Atlântico, o mundo anglo-saxão, a civilização comercial, uma “ilha do crescente externo”, do outro lado. Esta pode ser considerada a lei principal da Geopolítica. Fora do postulado deste dualismo, todas as demais conclusões perdem o significado. [...] Em importância, ela é comparável à lei da Gravidade na Física.[Parte 1 - Capítulo 10]

 

 

 

2.      2. A dominação mundial russa vem através de um novo Império

 

Como apontei, Terra e Mar não são meras abstrações no discurso de Dugin, mas verdadeiras potências metafísicas em um confronto espiritual que se manifesta de diferentes formas. Na Geopolítica, foi MacKinder [com as correções ainda mais pró-russas de Savitsky] quem desnudou de forma mais direta esse antagonismo primordial. Os poderes atlânticos anglo-saxões são inimigos da área central da Ilha Mundo [Eurásia], que ele considera o “pivô da História” e a “fortaleza do poder terrestre [continental]”.

 

Dugin não está sendo apenas retórico quando escreve em postagens de redes sociais que “a Rússia é a civilização da luz”, e tudo o que é “anti-russo” [ou russofóbico -- aliás, a estratégia de qualificar de russofóbica a oposição europeia às ações geopolíticas russas já está delineada neste livro] não passa de trevas. No fim das contas, ele acredita realmente nisto. Como coração da Eurásia, a Rússia é a encarnação do Norte Simbólico, e representa o eixo vertical, o Pai, o Poder Masculino, e a Ideia [Platônica]. Seria a área de maior dinamismo geopolítico, destinada a impulsionar os demais poderes continentais na formação de um Império Telurocrático que rompesse o cerco do Mar.

 

Embora tenha tratado o assunto com maior acuidade em outras obras [vide “O Mistério da Eurásia”], abundam em “Foundations” menções a este “Destino Manifesto” da Rússia, a “Terceira Roma” do discurso escatológico ligado ao Patriarcado de Moscou. A posição Neo-eurasiana, neste aspecto, segue boa parte do discurso de Gumilyov [temperado por outras contribuições, e lidos a partir de uma interpretação Tradicionalista], que firma a ideia de “eixo geográfico da História” não apenas na realidade da Eurásia “oriental”, mas também na especificidade étnica [Grão]-Russa.

 

“Em relação à Rússia-Heartland, todos os outros Estados e terras eurasianas são costeiras, Rimland. A Rússia é o “Eixo da História”, porque a “civilização” se revolve ao seu redor, criando suas formas mais acabadas, expressivas e surpreendentes não na fonte vivificante continental, mas na “zona costeira”, na faixa crítica, em que a terra do Sushi faz fronteira com o espaço da Água, mar ou oceano. De um ponto de vista estratégico, a Rússia é uma estrutura territorial independente, cuja segurança e soberania é idêntica à soberania e segurança do continente inteiro. Isto não pode ser dito de nenhum outro poder eurasiano, nem da China, nem da Alemanha, nem da França, nem da Índia. Em relação aos seus vizinhos costeiros ou a outras “ilhas” ou continentes, a China, a Alemanha, a França, a Índia etc. podem agir como forças continentais; em relação à Rússia, sempre permanecerão como “faixas costeiras”, como Rimland, com todas as suas consequências políticas, culturais e estratégicas correspondentes. Só a Rússia pode falar pela Heartland com completo fundamento geopolítico. Somente seus interesses estratégicos são não apenas similares aos interesses continentais, mas estritamente idênticos a eles.” [Parte 3 – Capítulo 1]

 

Fácil perceber que para Dugin a Rússia é, na História atual, a expressão da Hiperbórea, do Espírito – que segundo a particular interpretação platônica-tradicionalista-evoliana do russo, é a expressão do Poder Espiritual Masculino, Solar e Apolíneo. Em relação à Rússia, até mesmo o restante da Eurásia é “feminina”, “passiva”, “costeira”, ficando do lado do polo ‘substancial’ da existência. Mais ainda, os interesses das forças continentais, e portanto da Terra, são idênticos aos interesses russos. Nenhum outro Estado tem este poder.

 

Ora, esta linha de raciocínio tem consequências óbvias. Para Dugin, a única forma de se contrapor ao Império Talassocrático mundial, liderado pelos Estados Unidos, é por meio da construção de um Império Telurocrático, dando concretude ao maior medo de MacKinder. A estratégia de resistir ao cerco atlantista à Eurásia, libertar o continente, e afirmar mais uma vez o Poder Terrestre, é uma estratégia comandada teórica, política e militarmente pela Rússia, único povo que pode falar integralmente a favor do coração da Ilha Mundo. 


Além disso, dada a cultura e posição específica russa, não existe qualquer outra possibilidade para o país se não reunir um Império em torno de si, considerado como “Eixo da história”. Dugin tem de ser lido nesta clave quando declara que a Rússia está “lutando por sua sobrevivência” na Ucrânia. Segundo ele, os russos não tem alternativa senão construir o Império Eurasiático, porque a Rússia é a expressão acabada da Terra em sua missão e expansão universal, em seu confronto arquetípico com o Mar. A Rússia é o “Império do Fim”, a instanciação da “Ideia Absoluta” de Hegel:

 

“O povo russo está certamente entre os povos messiânicos. E como todo povo messiânico, tem um sentido universal que compete não só com outras ideias nacionais, mas com outros tipos de universalismo civilizacional. K. Leontiev e os eurasianos russos desenvolveram plenamente esta ideia. Apesar dos problemas, períodos de transição e cataclismos políticos, o povo russo sempre manteve sua identidade messiânica e, portanto, sempre permaneceu como sujeito político da História. [...] É absurdo considerar que o pronunciado e sistemático “expansionismo” dos russos seja um acidente histórico. Este “expansionismo” é uma parte integral da vida do povo russo e está intimamente ligado à natureza de sua missão civilizatória. Esta missão carrega um certo “denominador comum” que permite aos russos integrar uma grande variedade de realidades culturais em seu Império. [...] O povo russo procede em seu ser de uma perspectiva soteriológica ainda mais global, que, no limite, tem significado universal. Isto não diz respeito à expansão ilimitada do “espaço vital” dos russos, mas sobre o estabelecimento de um tipo especial de cosmovisão “russa”, que é acentuadamente escatológica e reivindica a palavra final da história mundial. Esta é a tarefa suprema da nação como “povo portador de Deus”. [Parte 4 – Capítulo 2]

 

Daí que, para Dugin, a manutenção da identidade russa, e portanto sua sobrevivência como povo, só é possível na construção do Império Eurasiático, que tem, no fundo, propósito universal.

 

“Diferente de Roma (a primeira Roma), Moscou e a Rússia devem seu impulso imperial a um profundo senso escatológico e teológico. Hegel desenvolveu o interessante conceito de que a Idéia Absoluta se manifestaria, em uma situação escatológica, em uma forma final “consciente” no Estado prussiano. Entretanto, em uma escala planetária, a Prússia, e mesmo a Alemanha, são geopoliticamente insuficientes para caberem seriamente neste conceito. A Rússia, a Terceira Roma, corresponde perfeitamente, tanto religiosamente, quanto culturalmente, espacialmente e estrategicamente, a uma visão teológica similar da essência da história, e claramente busca cumprir esta missão [...] O povo russo se move, passo a passo, precisamente rumo a este objetivo. A cada estágio de expansão de seu Estado, os russos chegaram a um nível superior de universalismo messiânico, primeiro reunindo os eslavos orientais, depois incluindo o ramo turco das estepes e a Sibéria, então se movendo para o sul e para os desertos e montanhas; e finalmente, formando um bloco político gigantesco no período soviético, controlando literalmente meio mundo. Se percebermos que o povo russo, em sua essência, é este processo de construção imperial, o poderoso vetor geopolítico intencional de criar um “Estado da Ideia Absoluta”, se torna completamente óbvio que a existência do povo russo depende diretamente da continuação deste mesmo processo, de seu desenvolvimento, de sua intensificação. [Parte 4 – Capítulo 3]

 

 O Império  a ser construído deve superar a própria União Soviética, se impondo não só à Ilha Mundo, mas ao mundo. Se não em termos estritamente territoriais, pelo menos como liderança ideológica e bélica:

 

“A existência do povo russo como uma comunidade histórica orgânica é inimaginável sem a criação continental e imperial. Os russos só permanecerão como uma nação no interior de um Novo Império. Este Império, de acordo com a lógica geopolítica, desta vez tem de superar tanto espacialmente quanto estrategicamente sua versão anterior [URSS]. Consequentemente, o Novo Império deve ser eurasiático, continental, e no futuro Mundial. A batalha dos russos pela dominação mundial não chegou ao fim. [Parte 4 – Capítulo 3]

 


3.      3. A Organização do Novo Império

 

A estratégia de Dugin para a formação do Novo Império parte de uma aliança contra-hegemônica para furar o cerco estadunidense à Eurásia. Com este intuito, o russo advoga a formação de três grandes eixos geopolíticos: o Moscou-Berlim, o Moscou-Teerã, e o Moscou-Tóquio. Estes eixos, articulados de modo central pela Rússia, que estaria no comando político e estratégico da aliança, realizaria o maior temor dos geopolíticos do poder marítimo: a unificação da Eurásia.

 

Dugin mobiliza o conceito de Grande Espaço, de Carl Schmitt, para advogar a implementação de grandes confederações de Estados, cada um deles baseado em seu próprio princípio ideológico e civilizacional integrador. O que ele chama de Império Eurasático seria, portanto, uma aliança entre quatro Impérios [ou Grandes Espaços] menores. O primeiro deles, unificaria a Europa Ocidental sob domínio da Alemanha. O segundo, unificaria parte do Oriente Médio e dos xiitas sob égide do Irã. E, finalmente, o extremo-oriente seria integrado pelo Japão. Na área pivô, gozando de centralidade territorial em todo o Novo Império Eurasiático, teríamos o Império Russo.

 

Cada um destes Grandes Espaços garante a autonomia dos “países”, “etnias” e “nações” em seu interior em assuntos culturais, linguísticos etc. Mas estes países perdem a soberania e a independência políticas. Já a integração desses 4 Grandes Espaços, ou Impérios, em uma unidade eurasiática se dá por meio da unificação militar e estratégica. Esta é a garantia maior da unidade de ação e da integração dos quatro grandes espaços em uma grande confederação liderada pela Rússia.

 

O Novo Império deve ser construído com um claro entendimento de sua inevitabilidade geopolítica. Neste Império, são os russos que terão naturalmente a função chave, já que controlam as terras que são axiais na massa continental eurasiática. O Novo Império não pode ser senão um Império russo, já que tanto territorialmente, civilizacional e culturalmente, sócio-economicamente, e estrategicamente, os russos naturalmente correspondem organicamente a esta missão planetária e buscaram sua realização durante toda a sua história estatal e nacional.[...] A Eurásia está predeterminada para a unificação geográfica e estratégica. Este é um fato geopolítico estritamente científico. A Rússia deve estar, inevitavelmente, no centro desta associação. A força dirigente da unificação deve ser o povo russo. [...] O novo Império Eurasiático está inscrito na predeterminação histórica e geográfica da história e da geopolítica mundial.” [Parte 4 – Capítulo 4]

 

A construção de cada um destes Grandes Espaços, e dos eixos que garantem sua ligação com Moscou, envolve muitos detalhes que não importam tanto assim para este pequeno texto. Cito apenas uma possível “curiosidade”. Dugin se sente em dúvida em relação ao papel da China, mas ao longo do livro tende a considera-la um campo de ação “atlantista”. Na verdade, o sociólogo considera a China um dos maiores perigos para a Rússia.

 

Ainda que a China se associe algum dia com o continentalismo, naquele que Dugin considera o melhor dos cenários, e venha a fazer parte, no futuro, do Império Eurasiático, o autor prefere que ela caminhe geopoliticamente para o sul, rumo a Taiwan, deixando a Manchúria e o Cazaquistão como áreas de influência russa. Isto se deve à existência óbvia de áreas de fricção geoeconômicas e geopolíticas entre ambos os Estados, que dificilmente vão sumir mesmo diante da atual aliança. 


O importante, no entanto, é frisar que, para Dugin, a lógica geopolítica estrita leva a uma aliança entre Rússia e Japão, unificando o Norte Geopolítico Eurasiático [a China, afinal, é um país do Sul Global, desprovioa daquilo que Dugin chama de “dinamismo geopolítico”], principal temor de MacKinder e Spykman. Caso a China se tornasse, como
Dugin desconfiava, um inimigo da Eurásia, o caminho seria torná-la bode expiatório da aproximação da Rússia com o Japão e a Índia. E, inclusive, agir para que ela perdesse as províncias de Xinjiang [velho sonho da CIA, diga-se de passagem] e a Mongólia.

 

“É o Japão, como símbolo do espaço Pacífico inteiro, que é de importância primordial nestes projetos anti-atlantistas, já que a posição estratégica do país, a dinâmica de seu desenvolvimento, e as especificidades de seu sistema de valores o tornam um parceiro ideal em uma luta planetária contra a civilização Ocidental. A China, por sua vez, não tem um papel especial neste cenário geopolítico, tendo sido privada, em primeiro lugar, de independência política (colonização inglesa), e então de dinamismo geopolítico. [...] Além disto, de um ponto de vista puramente pragmático, uma aliança estratégica da Rússia com a China para criar um bloco único imediatamente afastaria o Japão do russos e, dessa maneira, hostilizaria de novo esta região chave do Pacífico e de cuja participação depende o sucesso geopolítico final na confrontação contra o Mar. No Novo Império, o eixo oriental deve ser Moscou-Tóquio. Este é um imperativo categórico do Leste, o componente asiático do eurasianismo. É em torno deste eixo que os princípios básicos da política da Eurásia para a Ásia devem tomar forma. O Japão, sendo o ponto mais setentrional entre as ilhas do Pacífico, está localizado em um ponto geográfico excepcionalmente vantajoso para a implementação de uma expansão política, estratégica e econômica rumo ao sul. A Federação do Pacífico ao redor do Japão foi a ideia principal do assim chamado “projeto pan-Asiático”, que começou a ser implementado nos anos 1930 e 1940, e foi interrompido apenas por causa da derrota dos países do Eixo na Guerra. [...] O projeto Pan-Asiático é o centro da orientação oriental do Novo Império. Uma aliança com o Japão é vital. O eixo Moscou-Tóquio, ao contrário do eixo Moscou-Pequim, é uma prioridade e uma promessa que abre o horizonte para a construção imperial que finalmente torna a Eurasia geopoliticamente completa, e que vai enfraquecer, e possivelmente destruir por completo, o Império do Ocidente. [...] Falando de modo geral, a China tem a chance de se tornar o “bode expiatório” geopolítico do projeto Pan-Asiático. Isto pode ser alcançado tanto com a provocação de separatismo interno na China (tibetanos, mongóis, a população muçulmana de Xinjiang), jogando com as contradições regionais, como também com o apoio ativo a forças anti-atlantistas e puramente continentais do potencial lobby budista (e taoísta) dentro da própria China, que no futuro podem levar ao estabelecimento de um regime politicamente leal ao Império Eurasiático. Em acréscimo, a China deveria oferecer um vetor de geopolítica regional dirigido estritamente para o sul, rumo a Taiwan e Hong Kong. A expansão meridional parcialmente compensa a perda de influência política da China no Norte e no Leste.” [Parte 4 – Capítulo 4]


Evidente que, dada esta retórica, voltada para a expansão geopolítica Norte-Sul -- típica da geopolítica de Haushoffer mas também de Spykman --, e para a necessidade de cerco estratégico aos EUA, os acordos atuais entre Moscou e Pequim talvez sejam vistos como insatisfatórios por Dugin, pelo menos a médio e longo prazo, não só pelo perigo representado pela próprio Estado chinês, como também pelo afastamento da Rússia em relação ao Japão. 


De todo modo, e retornando à linha de raciocínio principal, a aliança atual entre Moscou e Pequim parece se assentar, fundamentalmente, no princípio do inimigo comum, que Dugin elege como cimento unificador do Novo Império Eurasiático. A grande aliança continental só se manteria integrada diante da missão, ou da necessidade, de se opor aos EUA, segundo as linhas da oposição geopolítica fundamental que tracei logo no princípio deste texto. A estratégia da Terra espelha à do Mar, ao precisar de um adversário fundamental que legitime, justifique, e dê sentido à sua ação global. “Cartago deve ser destruída” é o motto do Novo Império.


O Novo Império, cuja construção atenderia à missão civilizatória global e planetária do povo russo, é um superprojeto com muitos subníveis. Este Novo Império, o Império Eurasiático, terá uma estrutura complexa e diferenciada, dentro da qual haverá vários graus de interdependência e integração das partes individuais. É óbvio que o Novo Império não será o Império Russo nem o Império Soviético. O principal elemento integrador deste Novo Império será a luta contra o Atlantismo e a dura repulsa a essa civilização de mercado liberal, "marinha", cartaginesa, que os EUA e as estruturas políticas, econômicas e militares planetárias que servem ao Atlantismo encarnam hoje. A criação de um bloco geopolítico continental gigante, estrategicamente unido. É a unidade das fronteiras continentais estratégicas que será o fator integrador principal do Novo Império. Este Império terá unidade e organicidade em um sentido estratégico-militar, e isto vai impor restrições políticas a todas as formações internas sub-imperiais. Segurança Continental. Neste e somente neste nível o Novo Império será uma entidade geopolítica integral. No nível seguinte, e inferior, o Novo Império será uma ''Confederação de Grande Espaços" ou Impérios secundários. Destes, deve ser destacados os quatro principais: no Ocidente (em torno da Alemanha e Europa Central), o Império do Pacífico no Oriente (em torno do Japão), o Império da Ásia Central no Sul (em torno do Irã) e o Império Russo no centro (em torno da Rússia). É completamente lógico que a posição central seja a principal em tal projeto, já que a coerência e homogeneidade territorial de todos os componentes deste gigantesco bloco continental dependem dela. Além disso, vão existir Grandes Espaços independentes, além dos indicados: a Índia, o mundo pan-árabe, a União Pan-Africana, e também, possivelmente, uma região especial da China, cujo status é difícil de determinar mesmo de forma aproximada. Cada um destes Impérios secundários vai se basear em um elemento racial, cultural, religioso ou político particular, que em cada caso pode ser diferente. [...] Ao mesmo tempo, em um nível global, a construção deste Novo Império planetário terá como principal bode expiatório os EUA, cujo poder (até a completa destruição desta estrutura geopolítica) será conquistado sistemática e intransigentemente por todos os participantes no Novo Império. Neste sentido, o projeto envolve a expansão eurasiana nas Américas Central e do Sul, com o objetivo de removê-las do controle da América do Norte (o elemento espanhol pode ser usado como alternativa tradicional ao anglo-saxão), como também provocando todos os tipos de instabilidade e separatismo no interior dos EUA (é possível contar com as forças políticas dos racistas afro-americanos). A antiga fórmula romana "Cartago deve ser destruída" se tornará o slogan absoluto do Império Eurasiático, já que vai incorporar a essência da estratégia geopolítica planetária do despertar continental para sua missão. '' [Parte 4 – Capítulo 4]

 


É notável que no trecho acima já esteja colocada a necessidade da "Quarta Teoria Política", embora ela ainda não tenha nome nem seja uma preocupação direta do texto. 


O cimento do Novo Império [a busca pela destruição dos EUA] é tão fundamental e imprescindível que Dugin considera sua consecução um perigo para a sobrevivência do Novo Império Eurasiático. O grande perigo, por paradoxal que pareça, é a possibilidade de um Mundo Multipolar. Isto nos leva ao próximo ponto.

 


4.      4. Apóstolo da BIPOLARIDADE

 


Para Dugin, a multipolaridade só é alcançada de fato quando existem diversos polos de poder no sistema internacional atuando segundo suas próprias cosmovisões. Se existem diversos polos em disputa, mas todos são liberais, por exemplo, não temos um mundo verdadeiramente multipolar. Daí, inclusive, a defesa da necessidade da elaboração de uma Quarta Teoria Política a fim de chegar ao objetivo final vislumbrado pelo pensador.


O grande paradoxo no discurso duginiano, no entanto, é que o Novo Império Eurasiático depende, para a sua unidade e exercício de poder, da presença constante do inimigo atlantista, ou seja, dos EUA. Daí que Dugin defenda em “Foundations of Geopolitics” que os passos para a multipolaridade só devem ser dados em um incerto momento futuro, quando o Atlantismo estiver destruído como “ideia universal” concorrente à Terra.

 

“A unipolaridade (o domínio do Atlantismo em qualquer forma, seja ela pura ou através do ‘mundialismo’) condena a Eurásia como Heartland a uma não-existência histórica. O Neo-Eurasianismo insiste que devemos resistir à unipolaridade. E isto só pode ser feito por meio da bipolaridade. É necessário algum esclarecimento. Há um ponto de vista que diz que depois do confronto entre EUA E URSS, o mundo se ajustaria a um modelo multipolar: a China ascenderia, os processos demográficos levariam os países muçulmanos a uma categoria de centralidade geopolítica, a região do Pacífico afirmaria sua competitividade diante da Europa e da América etc. Tudo isto é possível, mas há de se levar em conta que esta multipolaridade se daria sob o signo do “sistema atlantista de valores”, isto é, seria apenas um conjunto de variações territoriais do sistema talassocrático, e de nenhuma maneira uma real alternativa geopolítica[...] O Neo-Eurasianismo, baseado nos interesses do “eixo geográfico da História”, afirma o exato oposto do Ocidente. A única maneira de escapar desta situação é através de uma nova bipolaridade[...] Esta teoria da nova bipolaridade é suficientemente desenvolvida nos projetos neo-Eurasianos, sendo uma justificação teórica para todas as teorias geopolíticas não conformistas da Europa e do Terceiro Mundo. Assim como a heartland é objetivamente o único ponto que pode servir de trampolim para uma alternativa planetária para a talassocracia, o Novo-eurasianismo é a única plataforma a partir da qual um conjunto de estratégias planetárias podem ser desenvolvidas ao negar a dominação do Atlantismo e seu sistema de valores civilizacionais: o mercado, a democracia liberal, a cultura secular, a filosofia do individualismo etc.” (Parte 2 – Capítulo 6)

 

Não é qualquer multipolaridade que interessa a Dugin, portanto. Mas uma que se dê sob o guarda chuva do sistema de valores do qual ele entende que a Rússia é a principal porta-voz. Mas esta asserção tampouco reflete com acuidade o pensamento expresso em “Foundations of Geopolitics”. A multipolaridade é um sonho distante, que não deve ser afirmado nunca enquanto o Atlantismo permanecer como “ideia”. Até lá, impera o modelo bipolar, e portanto a liderança estratégica e militar do Norte Geopolítico, da Eurásia e da Rússia:

 

“Deve-se enfatizar que a derrota geopolítica dos EUA vai colocar muitos problemas para o próprio Império Eurasiático. Neste momento, o principal fator que subjaz ao projeto de unificação das nações e povos em um Novo Império vai desaparecer. O princípio do “inimigo comum” vai desaparecer. A energia de consolidação vai perder seu significado, e até mesmo o sentido da existência continuada do Império Eurasiático será colocado em questão. Nesta situação, a transição de uma ordem bipolar mundial da Eurasia contra o Atlântico para um modelo multipolar pode se iniciar. Neste caso, é necessário enfatizar o fato que um modelo multipolar só se tornará possível após a vitória sobre o Atlantismo, não antes. Enquanto o Atlantismo existir como uma forma que se declara universal, não pode haver conversa sobre uma estrutura multipolar. Apenas dentro da estrutura do Novo Império, dentro da estrutura do projeto eurasiano global e durante o confronto estratégico contra o Atlantismo, os pré-requisitos para a existência objetiva da multipolaridade podem surgir, não antes disto. [Parte 4 – Capítulo 5]

 

5.5. Conclusão

 

Este texto se estendeu demais, apesar da minha tentativa de ser sucinto. Resumindo muito o que tenho a dizer: Dugin é um dos pensadores mais poderosos do século XXI. Muitos de seus conceitos e formulações ecoam verdades em diversos terrenos, sem que, no entanto, possam ser considerados a única elaboração possível sobre cada um destes temas. Mas o que cabe perguntar é se o conjunto integral de ideias acima serve a um brasileiro. Se serve a um latino-americano. Se serve a um país do Sul Global. Se serve, no fim das contas, a qualquer um que não seja russo.

 

Não considero tão estranho que um russo entenda a própria civilização como a “realização estatal da Ideia Absoluta”, como um povo messiânico cujo destino é lutar até o fim pela “dominação mundial”. Ou que, de modo menos delirante, busque furar o cerco estratégico à Eurásia, sustentar seu entorno geoestratégico, se defender de seus inimigos geopolíticos. A questão é entender o que leva um brasileiro a repetir, de cabo a rabo [se me permitem a vulgaridade], a mesma linha de raciocínio, como se russo fosse. Algumas possíveis respostas:

 

)   A) Ignorância: O brasileiro em questão ignora o cerne da maior parte das ideias desse livro, ou conhece apenas recortes e memes. Ou ainda, as interpreta segundo certos filtros disponibilizados por terceiros.


    B) Vira-latismo: O brasileiro se vê como Dugin vê o Sul Global. Membro de uma civilização sem “dinamismo geopolítico”, passiva, como uma matéria inerte a ser modelada por forças masculinas do Norte. [todas as civilizações são meio femininas diante da russa, segundo esta linha de pensamento, o que não teria nada demais não fosse a subordinação insuperável do feminino ao masculino com que Dugin parece ler a polaridade sexual, pelo menos para todos os propósitos políticos relevantes]. 


   C) Falta de identificação com o Brasil: Por alguma razão desconhecida, o brasileiro conhece as ideias duginianas, não sofre pessoalmente de vira-latismo, mas se considera uma exceção portentosa em meio a uma civilização passiva e cujo destino é a submissão. Nesse caso, por algum poder espiritual, étnico, racial, cósmico, ele se identifica com os russos e seu destino, e não com o destino dos brasileiros comuns.

 

Claro que há alternativas. Uma delas seria alegar que Dugin mudou de ideia em relação a alguns pontos de “Foundations of Geopolitics”. Mas, como eu disse no início, não há nenhuma obra abrangente de sua autoria que retifique substancialmente estas ideias. A Quarta Teoria Política apenas tangencia estes assuntos, e em larga escala reafirma os pontos da metafísica que subjaz a interpretação geopolítica de Dugin ou sequer adentra detalhes e especificidades estratégicas. Já a Noomaquia traz outra ordem de elementos e será tema de postagens futuras.

 

Nada do que foi exposto aqui implica uma minoração da importância de Dugin, de sua geopolítica, de suas ideias metafísicas, nem muito menos de seu valor como interlocutor e possível aliado. O Brasil pode ter na Rússia uma aliada, mesmo que a Rússia um dia se torne duginiana, o que não parece ser ainda o caso. 


O que se contesta é a validade da maior parte destas diretrizes para o Brasil. Diferente do que diz Dugin, o Neo-Eurasianismo não fornece as bases para uma Geopolítica brasileira. Os brasileiros não estamos interessados em um "Novo Império Eurasiático" que unifique o Norte Geopolítico em torno da Rússia. Particularmente, eu gosto muito do país, de sua cultura, de sua história, de seu significado politico. Mas não sou russófilo ao ponto de advogar a submissão ''natural'' do meu próprio país a outro qualquer.

 

 

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