terça-feira, 17 de maio de 2022

DUGIN DEPOIS DE "FOUNDATIONS", ou: a Geopolítica de Dugin -- parte II

 

"[A] seguinte afirmação deve se tornar um axioma: no presente, o destino da ordem mundial é somente decidido na Rússia, pela Rússia e via Rússia. A assunção do papel de líder natural pela Rússia na construção do mundo multipolar é uma condição necessária (mas não significa que seja suficiente) de existência do Multipolarismo."

Alexander Dugin, "Geopolítica do Mundo Multipolar"





Como esperado, meu texto sobre a estratégia geopolítica de “Foundations of Geopolitics”, de autoria de Alexander Dugin e lançado em 1997, suscitou comentários diversos. Resumindo-os: entre muito interesse e elogios, surgiram também contestações. Não exatamente à exposição das ideias do livro, mas à possibilidade de que o russo ainda mantivesse aquela perspectiva. 

Ora, na própria postagem me adiantei à alegação de que Dugin teria mudado substancialmente de perspectiva geopolítica ao acrescentar que ele não havia lançado nenhuma obra desde então que tivesse a mesma abrangência e escopo, e que negasse as principais estruturas de “Foundations”. Não surpreende, portanto, que ninguém tenha citado uma obra sequer deste teor e que corrigisse as linhas gerais sustentadas nos anos 1990. A única citada foi “Teoria do Mundo Multipolar” [lançado pela IAEG em Lisboa, em 2012], o que me causou certo espanto.

Explico: o livro em questão não trata de Geopolítica. É, na verdade, um preâmbulo de uma teoria de Relações Internacionais adequada à multipolaridade defendida por Dugin. Mais ainda, é publicada como a primeira parte de um estudo sobre o mundo multipolar, cujos temas geopolíticos seriam abordados no volume seguinte, como diz o próprio autor na conclusão.


Nesta primeira parte foi importante constituir um primeiro glossário de termos empregues na TMM, relacionando-o no contexto das RI como ciência específica e já bem estabelecida. [...] Na segunda parte a teoria do multipolarismo e os seus principais pontos lidarão com a geopolítica, cujas referências nos abstivemos, deliberadamente, de efetuar neste primeiro volume, de modo a preservar a pureza terminológica e cingir-nos às delimitações das RI como disciplina independente. O emprego da metodologia geopolítica irá auxiliar a uma compreensão mais ampla e profunda do multipolarismo como fenômeno e como projeto.


Não que “Teoria do Mundo Multipolar” conteste de maneira essencial os pontos que abordei no texto. É que simplesmente não trata diretamente do assunto, se limitando a contribuir para a teorização do Mundo Mutipolar, mas sem apontar a estratégia que nos levaria até ele e que forma tomaria. Para isto, temos de nos reportar à obra seguinte, “Geopolítica do Mundo Multipolar”, cuja 1ª edição no Brasil é também de 2012.

Antes de continuar, ressalto que alguns dos que criticaram o meu texto não tinham como não saber disto. O que levanta algumas questões. A tentativa de barrar qualquer avaliação crítica ao pensamento de Dugin com o argumento de que “ele lança um artigo por dia” parece cópia da tática usada por alguns discípulos de Olavo de Carvalho, que repetiam a invectiva de que a filosofia do guru só será “compreendida” quando forem publicadas todas as apostilas e textos que estão dispersos entre os alunos do "filósofo da Virgínia". Mas também nisto Dugin difere de Olavo. Suas posições não são nenhum “segredo de Estado” ou ensinamento esotérico só destinado aos iniciados. Há 15 anos, quando comecei os estudos sobre este autor, a maior parte de sua obra não tinha ainda tradução para línguas ocidentais. Não é a situação atual. Se há alguma intenção, e espero sinceramente estar enganado quanto a isto, de criar uma nuvem de mistério e confusão sobre a obra de Dugin, alerto que será esforço fadado ao mais retumbante fracasso.

Vamos explorar então obras mais recentes do filósofo e geopolítico russo para averiguar se ele mudou a substância de seu pensamento em relação a “Foundations of Geopolitics” e, em caso afirmativo, o quanto o fez. A exposição foi desenhada da seguinte maneira: na primeira parte, trato de temas esotéricos e tradicionalistas sem os quais não compreende a geopolítica do autor; na segunda, descrevo, em linhas bastante gerais, como Dugin aplica sua versão especial de tradicionalismo à esfera propriamente geopolítica, e a função da Quarta Teoria Política quanto a este empreendimento específico; a terceira parte destaca o papel da Rússia no pensamento geopolítico do filósofo e do movimento eurasiano; a quarta é uma exposição muito breve de algumas das estratégias elaboradas para a conquista do objetivo, bem como a apresentação de um modelo concreto de mundo multipolar proposto pelo autor; por fim, minhas considerações finais sobre as questões levantadas.

Além de "Foundations of Geopolitics", de 1997, e de "Filosofia do Tradicionalismo", de 2002, nenhum dos dois publicado no Brasil, vou citar trechos das seguintes obras de Dugin:


  • "Teoria do Mundo Multipolar", Lisboa, 2012
  • "Geopolítica do Mundo Multipolar", Curitiba, 2012
  • "Eurasian Mission", Londres, 2014
  • "The Last War of the World Island. The Geopolitics of Contemporary Russia", Londres, 2015
  • "The Rise of the Fourth Political Theory", Londres, 2017

 

 

 1. A BIPOLARIDADE É METAFÍSICA E GEOPOLÍTICA

 

Parece provocação chamar de Apóstolo da Bipolaridade um autor que se diz comprometido com a criação de um mundo multipolar. E, no entanto, este é o significado mais profundo das exposições de Dugin. Ele vê a Geopolítica com os olhos de um esoterista talhado pelos ensinamentos de Guénon e Evola, e por décadas de debates e práticas no Círculo de Yuzhinsky. A Geopolítica seria uma forma de expor verdades tradicionais, permitindo transmitir ao homem moderno alguns princípios de ordem simbólica e ontológica.

Logo após a invasão à Ucrânia, em fevereiro deste ano, Dugin concedeu entrevista em que praticamente reafirmou ideias de seu livro “Filosofia do Tradicionalismo”, de 2002: a Tradição é antes de tudo uma estrutura de linguagem, uma gramática, não somente um discurso. Como tal, ela se torna incompreensível para outros que percebem, pensam e discursam em outra linguagem, a moderna. Mas como a linguagem moderna contém resquícios da linguagem da Tradição, é possível mobilizá-los para iniciar um tipo de comunicação que subverta a própria mentalidade moderna. Em “Foundations”, ele explica que a Geopolítica faria parte do conjunto principal destes “resquícios”, e assim, ainda segundo ele, uma ponte direta entre o mundo atual e o da Tradição,  dada sua proximidade com a Geografia Sagrada.

Quando Dugin declara que a lei básica, estrutural e inescapável da Geopolítica é a dicotomia Terra vs Mar, devemos ver nisto não só uma descrição do confronto entre poderes continentais e marítimos, entre talassocracias e telurocracias, nem ter em mente apenas a “filosofia da História” de Schmitt e Mackinder. É tudo isto, mas também uma suposta dicotomia de raiz metafísica entre dois poderes e tendências espirituais, que se refletem não só na Geopolítica mas em todas as áreas fundamentais do mundo criado. Terra contra Mar é o confronto também entre energia masculina e feminina, forma e substância, espírito e matéria, sol e lua, deuses olímpicos e ctônicos, holismo e individualismo, agência e passividade, linguagem tradicional e moderna; e, de modo mais geral, entre Tradição e Anti-Tradição. 

Este dualismo, manifesto em  todos os níveis da existência, se resolve sempre com a predominância de um dos pólos em disputa [A vida é uma guerra, concepção da "varna" Ksatryia, segundo o tradicionalismo]: o domínio do pólo ativo ou masculino, identificado ao Espírito, leva a uma direção ascendente, rumo à transcendência e à Ideia [em um sentido neoplatônico]; o domínio do pólo passivo, identificado com a substância, a uma direção descendente, rumo à dissolução na matéria [as forças do Caos].

Olhando a Geografia Sagrada por estas lentes, e mobilizando conceitos presentes na obra de René Guénon, Dugin aplica a mesma dualidade ao mito da Hiperbórea, suposto continente perdido da Tradição Primordial, e representada pelo Pólo Norte; e ao mito da Atlântida, representada pelo Oeste. E desse modo, dá novo salto ao transpor estes temas para a análise geopolítica. A “Tradição Primordial” [Hiperbórea] estaria inscrita física, étnica e culturalmente na Heartland [Coração Continental] da Ilha-Mundo [Eurásia]. Já a Atlântida estaria inscrita fisicamente do “outro lado do Oceano”, terra que era vetada aos europeus por fazer referência a um infra-mundo, como veremos mais para frente. 

O continente americano, que “emerge” com as Grandes Navegações, processo que segundo MacKinder e Schmitt estabelece uma mudança capital na História e permite a formação de uma Talassocracia completa e global – que Dugin associa à Idade das Trevas e ao tempo final da batalha contra o Anticristo --, seria esfera de ação de forças caóticas e satânicas; ou ainda, uma tentativa de reviver a “tradição atlante” e fazer guerra à Terra e a tudo o que ela representa. Desnecessário apontar que a Rússia é, para Dugin, a manifestação atual da Hiperbórea e da Tradição, enquanto os EUA são a Nova Atlântida. E assim, da bipolaridade metafísica chegamos a uma bipolaridade geopolítica.

Antes de continuar, um pequeno comentário. Toda esta ordem de ideias, que para muitos pode parecer simplesmente delirante, está explícita nas obras de Dugin. Ele as proclama do alto dos telhados. Seria cansativo citar as inúmeras passagens em que o filósofo se refere a este esquema. Basta reportar uma passagem de “Rise of the Fourth Political Theory”, publicado em Londres em 2017 como segundo volume ou continuação da obra capital “A Quarta Teoria Política”. Depois de elencar aspectos da Geografia Sagrada do Metafísico Persa Yahia ibn Habash Suhrawardi, o russo os usa para explicar sua visão geopolítica. A Europa é considerada o Oeste, o “lugar da entropia total”, que só pode ser inteiramente conhecido por meio da demonologia. A possibilidade da Europa ser integrada ao Leste [símbolo da Tradição nos tempos atuais] estaria num ato de amor que só pode ser realizado pela Rússia, e que seria comparável à etapa iniciática da descida aos Infernos para a salvação das almas perdidas. [um tema mítico presente no Cristianismo.] Ora, nesta aplicação geopolítica duginiana, o continente americano não é comparável sequer ao inferno. Está “além do Oeste”, fora do Mapa Ontológico do Universo, tal como este é descrito por Suhrawardi.

Em seu tempo, a civilização antiga construiu duas colunas no Estreito de Gibraltar, em que estava inscrito Nec plus ultra, que significa “nada há além”. “Não há necessidade de prosseguir” estava inscrito nestes pilares. Quem tentasse, se arrependeria. E enquanto estas colunas protegeram a humanidade, os portões do Oeste ontológica permaneceram selados; fechados pelas inscrições, pelas duas colunas, todas as coisas iam mais ou menos bem. No entanto, alguém desprezível rastejou através delas. E quando o fez, quebrou o selo ontológico fundamental. Vocês sabem o que o cifrão [do dólar] significa? As duas colunas de Hércules, que nas representações antigas eram circundadas por uma fita na forma da letra ‘S’, com o subscrito “proibido ir além destas colunas”. Mas no dólar está escrito não Nec Plus Ultra e sim plus ultra. “Mais Além” está escrito ali, é permitido, e hoje o dólar significa um movimento para além destas colunas, para o interior da zona proibida, para o Oeste Distante [‘Far West’], para o Atlântico. Isto significa que Leviatã, o Monstro do Oceano, que foi mantido preso por um longo tempo, está livre das redes antigas. E quando os navios de Colombo e outros aventureiros europeus rumaram na direção do Oceano Atlântico, com este gesto ritual demoliram os grilhões que prendiam Leviatã, e Leviatã iniciou sua rebelião.” [Capítulo 6]

 

A terminologia é muito óbvia: As Grandes Navegações violam um interdito, e a Descoberta da América tem o sentido da libertação de Satanás de sua prisão milenar para o confronto escatológico final dos últimos dias. Esta linha de raciocínio vai permitir a Dugin remontar a bipolaridade geopolítica.

 


 2. A QUARTA TEORIA POLÍTICA É GUARDA-CHUVA DA BIPOLARIDADE

 

A aplicação duginiana da bipolaridade metafísica conduz a uma estrita bipolaridade geopolítica. A afirmação pode parecer estranha, já que em “Teoria do Mundo Multipolar” o filósofo afirma a impossibilidade de um sistema internacional bipolar a esta altura da História. Alguns podem se confundir com esta declaração, e imaginar uma mudança brusca de perspectiva em relação a “Foundations”. Mas, na verdade, Dugin está repetindo a explicação do fim dos anos 1990, embora de maneira mais sutil e detalhada. Ele falava da necessidade de uma NOVA bipolaridade, diferente daquela da Guerra Fria, que julga ser impossível após o colapso soviético. O sistema internacional se sustentava então a partir de um confronto de ideologias vencedoras da Segunda Guerra Mundial, o liberalismo e o marxismo. Com a derrota do Marxismo no fim dos anos 1980, o confronto ideológico contemporâneo se esvaneceu. O mundo vive sob hegemonia liberal, que se entranhou de tal maneira a se tornar o senso comum fora do qual nada mais pode ser dito. 

Ao falar de “hegemonia liberal”, Dugin pretende, no fundo, se referir à “hegemonia do Mar” ou da Modernidade. Eis o sentido principal da denúncia à Unipolaridade. Caso o sistema internacional fosse construído em torno de múltiplos pólos decisórios estatais sem que esta hegemonia liberal fosse rompida, ele continuaria unipolar segundo o livro “Teoria do Mundo Multipolar”. Para Dugin, derrubar a unipolaridade é destruir também a dominação intelectual, cultural e filosófica do Ocidente:


“O mundo multipolar é uma alternativa radical ao mundo unipolar (que existe de facto na actual situação) dado que insiste na presença de uns quantos centros decisores independentes a nível global. [...] Estes centros decisores não devem aceitar 'sine qua non' o universalismo dos padrões, normas e valores ocidentais (democracia, liberalismo, livre mercado, parlamentarismo, direitos humanos, individualismo, cosmopolitismo etc.) e devem ser totalmente independentes da hegemonia espiritual do Ocidente.” [Preâmbulo]

 

Não é qualquer multipolaridade que interessa a Dugin, mas aquela que afirme o poder da Terra contra o Mar. 

Ora, aqui surge um problema. Para o filósofo russo, a Terra é naturalmente “múltipla” em termos ideológicos, culturais e civilizacionais. Embora mobilize conceitos de Samuel Huntington, Dugin está, na verdade, aplicando mais uma vez, e à sua maneira, ideias de René Guénon. Em obras como “A Crise do Mundo Moderno”,  Oriente e Ocidente”, e “Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus”, Guénon aponta que a Tradição Primordial se expressa em uma multiplicidade de formas tradicionais, e estas, por sua vez, nutrem diferentes civilizações, que podem se consideradas como tais justamente por se vincularem aos “princípios metafísicos”. Já o Ocidente, como pseudo-universalismo anti-tradicional desconectado destes mesmos princípios, se declara como a única civilização existente, a realização teleológica da história humana, para a qual todas as demais culturas e povos devem convergir, e segundo a qual todos os demais povos devem ser avaliados e julgados. Usando a terminologia duginiana, o Mar é a liquefação do mundo, sua homogeneização, o igualitarismo absoluto, bem diferente da afirmação das formas ideais possibilitadas pela Terra.

O Mar, o Ocidente, o Liberalismo, é dissolução na matéria e na uniformidade. A Terra é a conquista de uma forma particular que reflita uma Ideia Transcendente e, portanto, verdadeiramente Universal. Daí a necessidade premente de propor uma estratégia que unifique os poderes telurocráticos ou continentais para uma guerra contra o Mar. 

Dugin nega a antiga bipolaridade porque pensa que a guerra dos continentes [Hiperbórea vs Atlântida] não tem como continuar através de um conflito ideológico [que, no fundo, é uma linguagem moderna] nem de embates entre Estados Nacionais [que também fazem parte da Modernidade, e por isto devem ser deixados para trás]. O único terreno que pode fornecer unidade aos poderes telurocráticos para se oporem à hegemonia do Mar é o da Geopolítica. Aquela ciência, recordemos, que está fundada na lei férrea do confronto entre Terra e Mar, e na qual Dugin projeta suas noções sobre a Geografia Sagrada. Ele afirma em “Geopolítica do Mundo Multipolar”:


“O Multipolarismo não se opõe à monopolaridade da posição de uma ideologia única, que poderia pretender ser um segundo polo, mas ele o faz da posição de muitas ideologias, de uma plenitude de culturas, visões-de-mundo e religiões que (cada uma por suas próprias razões), não têm nada em comum com o capitalismo liberal do Ocidente. Numa situação onde o Mar possui um aspecto ideológico unificado (apesar de sempre se voltar para ideias implícitas, declarações não explícitas) e a Terra em si não o tem, representando em si mesma, várias visões-de-mundo e organizações civilizacionais, o Multipolarismo sugere a criação de uma frente unida da Terra contra o Mar. [...] Sendo o Multipolarismo a oposição à monopolaridade, não significa uma reivindicação para que o mundo retorne à bipolaridade baseada em ideologias, ou firmar a ordem dos estados nacionais, ou meramente preservar o status quo. [...] No momento, nenhuma ideologia religiosa, econômica, política, social ou cultural é capaz de juntar a massa crítica de países para formar o “Poder da Terra” em uma frente planetária única, necessária para formar uma antítese séria e efetiva ao globalismo e ao mundo unipolar. Esta é a especificidade do momento histórico (“O Momento Unipolar”): a ideologia dominante (o liberalismo global/pós-liberalismo) não possui uma oposição simétrica no seu próprio nível. Por isso, é necessário apelar diretamente para a geopolítica, tomando o princípio da Terra, o Poder da Terra, ao invés da ideologia oposta. Só é possível, neste caso, se as dimensões sociológicas, filosóficas e civilizacionais da geopolítica forem realizadas em sua máxima potência. [...] O princípio geopolítico da Terra não perde nada na sua estrutura paradigmática. É este princípio que deve ser tomado como fundação para a construção da Teoria Multipolar. Esta teoria deve ser endereçada diretamente à geopolítica, rascunhar seus princípios, ideias, métodos e termos. Isso irá possibilitá-la de tomar ambos os leques de ideologias, religiões, culturas e tendências sociais não globalistas e contraglobalistas existentes hoje. É absolutamente desnecessário moldá-las sem algo unificado e sistematizado. Elas podem muito bem continuar como locais ou regionais, mas estarão integradas em uma frente comum de luta contra a globalização e o domínio da “Civilização Ocidental” a nível meta-ideológico, no nível paradigmático da Geopolítica-2 e esse momento de “pluralidade de ideologias” já está instalado dentro do próprio termo “Multipolaridade” (não apenas dentro do espaço estratégico, mas também nos campos ideológicos, culturais, religiosos, sociais e econômicos). O Multipolarismo não é nada além de uma extensão da Geopolítica-2 (Geopolítica da Terra) em um novo ambiente caracterizado pelo avanço do globalismo (como atlantismo) e em nível qualitativamente novo e em proporções qualitativamente novas. O Multipolarismo não possui outro sentido. A Geopolítica da Terra e seus vetores gerais projetados sobre as condições modernas são o eixo da Teoria da Multipolaridade, no qual todos os outros aspectos desta teoria estão emaranhados.” (Capítulo 1)

 

Em “Foundations of Geopolitics”, Dugin já afirmava que a estratégia contra-hegemônica tinha de se basear em novo arcabouço teórico, que ele identificava com o Neo-Eurasianismo. Queinze anos depois, ele diz o mesmo em “Geopolítica do Mundo Multipolar”. E volta a repeti-lo em outras obras, como “The Rise of the Fourth Political Theory”. Na verdade, o russo é explícito em apresentar o projeto de uma Quarta Teoria Politica nesta chave. A QTP se trata não só de esforço de teorização, mas da elaboração de uma “estratégia guarda-chuva” para a guerra contra a hegemonia do Mar. Cada civilização vai integrar seus Grandes Espaços/Impérios [vide Carl Schmitt] segundo princípios culturais, ideológicos e políticos internos, tendo total autonomia neste campo. Mas só será capaz desta realização em meio a uma aliança ampla e inter-civilizacional que forneça os parâmetros da construção civilizacional dentro do paradigma da “Geopolítica da Terra”, que nada mais é do que a face acadêmica de uma Geografia Sagrada para a qual Dugin oferece uma determinada interpretação tradicionalista. Assim, a bipolaridade se dá em um segundo nível de elaboração geopolítica. Ainda que cada civilização elabore sua própria versão da Quarta Teoria Política, ela sempre será desenhada sob a égide da Geopolítica da Terra, que ele identifica com a Linguagem da Tradição.

Alguns podem imaginar que estas considerações meta-ideológicas não são suficientes para falar de uma bipolaridade geopolítica em sentido estrito, se tratando apenas de detalhes exóticos de uma classificação toda especial a Dugin. Mas é aí que a cobra morde o próprio rabo, pois o filósofo não esconde, em momento nenhum que, se os EUA são o grande bode expiatório desta “frente geopolítica global”, já que encarnação da Nova Atlântida; a Rússia é, por sua vez, o principal centro decisório, geoestratégico e militar dos poderes continentais que serão construído em cima do “paradigma geopolítico da Terra”.

 


3. A RÚSSIA TEM DE SER VISTA COMO LÍDER ESTRATÉGICO

 

Dugin tampouco mudou de ideia quanto a identidade e o papel russo na estratégia da multipolaridade. A mesma linha de raciocínio presente em “Foundations” é repetida consistentemente, insistentemente, exaustivamente nas obras da última década. A identidade russa seria indissociável da expansão das fronteiras do Estado Russo de modo imperial. E o uso do termo é o mais banal possível: os russos devem buscar influência e se possível dominação em escala planetária. Lutar pela sobrevivência da identidade russa é lutar pela realização deste projeto. Em mais de uma ocasião, Dugin defende que o Eurasianismo é não apenas uma teoria, mas uma estratégia para a consecução deste escopo imperial nas condições atuais. Ele encara o momento pós-Guerra Fria como de crise, e de desvio do país, que deveria retomar os vetores fundamentais que se depreendem de sua História política. Podemos ler em  “The Last War of the World Island. The Geopolitics of Contemporary Russia”, publicado em Londres, em 2015:

 

“Para completar nosso resumo da história geopolítica da Rússia, podemos apresentar seus resultados gerais. Primeiro, a lógica espacial da história do Estado russo é revelado sem ambiguidades. Esta lógica pode ser sintetizada como a expansão das fronteiras naturais do Nordeste da Eurásia, Turan, com o objetivo de estender sua zona de influência para além de suas fronteiras, talvez em escala planetária. Esta é a conclusão principal que podemos retirar de uma análise de todos os períodos da história política russa, da emergência da Rus de Kiev até a Federação Russa hodierna e o espaço pós-soviético [...]. Em todos esses estágios, desde o século XV, a Rússia continuou sua expansão em espiral através das fronteiras naturais do continente. Às vezes o território da Rus se contraía por um curto período de tempo, mas só para se expandir de novo na fase seguinte. Assim bate o coração geopolítico da Heartland, empurrando seu poder, sua população, suas tropas e outras formas de influência para os limites externos da Eurásia, rumo à zona costeira (Rimland). O coração vivificante, pulsante e crescente do Império continental predetermina o caminho da Rus/Rússia em direção ao estabelecimento de um poder mundial e um dos dois pólos globais do mundo. Sob várias ideologias e sistemas políticos, a Rússia se moveu em direção à dominação mundial, firmemente embarcando no caminho rumo ao controle da Eurásia a partir de dentro, e a partir da posição de centro do continente interior. [...] No período soviético, a grande guerra dos continentes atingiu seu apogeu: a influência da Civilização da Terra como URSS se estendeu para além das fronteiras do Império Russo e além das fronteiras do continente eurasiático, e chegou à África, América Latina e Ásia. Este vetor continental, e depois global, uma expansão levada em nome da telurocracia da Heartland e da Civilização da Terra, é precisamente o “sentido espacial” (Raumsinn) da história Russa. Todos os estágios intermediários e todas as flutuações históricas e oscilações ao longo desta via não são nada além de rotações de eventos históricos reais ao redor de um eixo geopolítico central; os recuos, manobras diversionistas, e atrasos não mudam o vetor principal da história russa. [...] A duração da atual e profunda crise geopolítica, que se prolonga muito mais que as anteriores, e que ainda não foi superada, indica que a construção geopolítica do Heartland está hoje em um estado de confusão, refletido não só na sua estratégia e política externa, mas também na qualidade da elite e nas condições gerais da sociedade. Consequentemente, esforços sérios e talvez extraordinários tem de ser feitos para que saiamos desta situação, incluindo uma mobilização social e ideológica. Mas isto requer uma personalidade voluntariosa e enérgica no comando do governo, um novo tipo de elite dirigente e uma nova forma de ideologia. Somente neste caso o vetor geopolítico da história russa se estenderá até o futuro. Se garantirmos isto no presente, podemos apostar que a Rússia tomará a liderança na construção de um mundo multipolar e embarcará na criação de um sistema versátil de alianças globais. Estas terão por fim minar a hegemonia americana, e a Rússia vai emergir renovada como um poder planetário na organização de um modelo concreto de multipolaridade sobre novas fundações, propondo um amplo pluralismo de civilizações, valores, estruturas econômicas e daí por diante. Neste caso, a influência da Rússia vai crescer rapidamente, e o vetor básico de seu desenvolvimento rumo a um poder mundial será renovado. Este cenário pode ser precisamente colocado na base de uma doutrina geopolítica russa não contraditória, que pode dotá-la de um plano para permanecer fiel às suas ambições históricas e civilizacionais no futuro e ao seu “sentido espacial”. [Capítulo 5]

 

Assim como em “Foundations”, Dugin reafirma o papel central da Rússia na aliança contra-hegemônica. Em “Geopolítica do Mundo Multipolar”, o filósofo declara que a própria possibilidade atual da multipolaridade se dá pelo despertar do “Coração Continental” no governo de Putin. Ainda que levante a possibilidade de que outros países ou blocos iniciem a revolução global contra os EUA, o filósofo ressalta que a missão primordial destas iniciativas é “despertar” a Rússia para sua missão histórica de liderar a “Frente Ampla” contra a Talassocracia. Sem esta liderança russa, cedo ou tarde os demais países e blocos vão cair diante da unipolaridade da Nova Atlântida. Em meio a estas considerações, faz uma afirmação capital, que ele considera axiomática, e que servirá de ponte para nosso próximo ponto.


“Para todos aqueles que pretendem seriamente enfrentar a hegemonia americana, a globalização e a dominação planetária do Ocidente (o atlantismo), a seguinte afirmação deve se tornar um axioma: no presente, o destino da ordem mundial é somente decidido na Rússia, pela Rússia e via Rússia. A assunção do papel de líder natural pela Rússia na construção do mundo multipolar é uma condição necessária (mas não significa que seja suficiente) de existência do Multipolarismo. Quaisquer que sejam os processos que se passem em todos os outros países e sociedades, eles permanecem com perturbações técnicas locais, com as quais a globalização lidará mais cedo ou mais tarde. A única chance de realizar os interesses de todos os países, sociedades e de todos os movimentos políticos e religiosos, que não podem ver seu futuro de outra maneira a não ser em um mundo multipolar, está na Rússia e na sua política. Pelo que, é absolutamente irrelevante como umas e outras forças consideram a Rússia, sua cultura, suas tradições e seu modelo social, sua política, etc. Isso não é de importância alguma. A parte central da Rússia é estipulada pela estrutura da geografia política.[Capítulo 3]

 


 4. A ESTRATÉGIA E OS GRANDES ESPAÇOS CIVILIZACIONAIS

 

De modo cada vez mais intenso na última década, o geopolítico russo propõe a formação de uma ampla “Rede Revolucionária Global”, formada por uma miríade de formas de organização [think-tanks, movimentos políticos etc.], comprometida com a multipolaridade. Esta rede de alianças tem um Manifesto, e funciona em uma lógica dicotômica: tudo aquilo que mina o poder norte-americano é bom em algum nível, e tudo aquilo que o fortalece é ruim. Embora mirem na “Oligarquia Global”, os EUA são descritos como o “País do Mal Absoluto”. O que os une, portanto, é o princípio do inimigo comum. Assim, de acordo com a situação, esta rede pode apoiar tanto supremacistas brancos quanto o racismo afro-americano, tanto insurreição latino-americanas quanto a Doutrina Monroe, dependendo da avaliação de se fortalecem ou não os interesses e os posicionamentos táticos “contra-hegemônicos”. A necessidade desta Rede está exposta em “Geopolítica do Mundo Multipolar” e em “Eurasian Mission”. Não vou me deter muito no assunto, apenas peço ao leitor que tenha em mente o axioma que citei no fim do ponto anterior. Mas gostaria de chamar a atenção para um ponto particular do Manifesto desta Aliança Revolucionária Global. Em uma das críticas à sociedade americana, entendida como o mal encarnado, é dito que ela:


“foi baseada principalmente na mistura de culturas, nações e grupos étnicos, sobre o princípio do "melting pot". A ausência de laços étnicos orgânicos era sua especialidade. Espalhando a sua influência para todo o resto do mundo, os EUA também estão promovendo esse princípio cosmopolita, tornando isso uma norma universal.” [Manifesto]

 

O Brasil é um país em que mais de 90% da população não tem qualquer identificação étnica, que dirá “laços étnicos orgânicos”. É um país diverso, com inúmeras formas comunitárias, e culturas e identidade regionais, mas as etnias são minorias bem pequenas em nosso território. Se identificações raciais já consistem num imenso problema no Brasil, dado o caráter mestiço de nossa formação, como deveríamos receber essa crítica a uma sociedade sem “laços étnicos orgânicos”?

Voltando à linha principal, cabe ressaltar que Dugin não abandonou o ideal de um Império Eurasiático unificado de Vladivostok a Lisboa. A unificação da Eurásia, que estaria “geopoliticamente predeterminada”, continua no horizonte do russo na forma de uma integração estratégica. No entanto, não é este o ponto predominante em suas obras mais recentes. Nelas, o filósofo fornece um modelo concreto do que seria um mundo multipolar futuro segundo a aplicação dos seus princípios quarto-teóricos e neo-eurasianos. Vou me focar neste modelo, não sem antes ressaltar que os eixos anteriormente descritos, e centrados na Rússia, com políticas específicas para cada região do mundo, são novamente apresentados em obras mais recentes, ainda que com especificidades que podem apresentar algumas divergências.

Dugin absorveu a obra “Conflito de Civilizações”, de Huntington, publicada em 1996, e a associou ao modelo de Grandes Espaços/Impérios de Carl Schmitt. O quadro abaixo, fornecido em obra do próprio filósofo, ajuda a compreender esta questão.





Obviamente, Dugin não “naturaliza” de modo simplista a ideia de Civilização, dizendo explicitamente que elas são “construções” [vide “Teoria do Mundo Multipolar”]. Trata-se, obviamente, dos mesmos conceitos gerais de Schmitt, apresentados sob nova ótica. Existiria uma multiplicidade de civilizações existentes e potenciais. Cada uma delas deveria se integrar de forma autônoma, baseada em seus próprios princípios internos, e salvaguardando os interesses dos povos, etnias e culturais em seu interior. Os Estados-Nacionais seriam dissolvidos, ou seja, perderiam a soberania, se tornando, no máximo, regiões autônomas no interior destes “Impérios/Civilizações/Grandes Espaços”. Nesse sentido, e é vital que se diga, Dugin é anti-nacionalista por definição, associando todo e qualquer nacionalismo ao fascismo. Em “The Rise of the Fourth Political Theory” há um quadro explicativo em que se afirma que a “nação é uma aberração que deve ser dissolvida”.

As promessas de liberdade e autonomia de Dugin são dadas a comunidades orgânicas e étnicas basilares. E também a populações com cultura identificável. E a povos que compartilham de uma mesma civilização/grande espaço. Cada uma destas realidades gozaria de larga autonomia política em seu próprio âmbito. Cada “Império/Civilização/Grande Espaço” é, em certo sentido, um polo regional livre para se gerir de acordo com os próprios princípios econômicos, valores e organização social e política. No entanto, isso não significa que todos estes Grandes Espaços/Civilizações/Impérios tenham soberania geoestratégica e geopolítica, e se constituam em Polos Mundiais de Poder. Apenas alguns destes Grandes Espaços se elevam a este nível de poder e dominância. Todos os demais gozam apenas de uma soberania relativa. Assim, podemos ler em “Geopolítica do Mundo Multipolar”:

 

“As instâncias que denotamos como “polos” possuirão soberania estratégica valiosa no mundo multipolar. Há grandes formações estratégicas, cujo número será certamente limitado – mais que dois, mas muito menos que “Grandes Espaços” potenciais. Isso significa que cada polo deve possuir controle prioritário sobre as forças militares unidas e esta instância deve estar sob o comando do governo estratégico de um polo. Somente as questões mais penetrantes estarão dentro do conhecimento dessa instância estratégica maior – tal como guerra e paz, o uso ou não uso de força, imposição de sanções, etc. As decisões estratégicas de caráter macroeconômico, energético e de transporte, afetando todo espaço sob a jurisdição do polo, estarão também dentro da competência desta instância. [...] Centros responsáveis pela integração de “Grandes Espaços” estarão no próximo nível. Sua estrutura será similar a um governo de Estados confederados, onde todas as decisões são feitas no princípio da Subsidiariedade – isto é, quanto mais localizado um problema, mais poderes para sua solução são concentrados em instâncias inferiores da autoadministração.” [Capítulo 3]

 

Portanto, se é verdade que cada Civilização/Grande Espaço é pensado como um “Império Regional” usufruindo quase todos os atributos da soberania, eles não são o cume do centro decisório concernentes às questões mais importantes. A imagem abaixa, retirada do mesmo livro, ajuda na compreensão do que Dugin tem em mente.





 

O filósofo russo chama este modelo de “Mundo quadripolar”. Ele é baseado em quatro polos geopolíticos e geoestratégicos mundiais, todos eles localizados no Norte Global, e separados por uma divisão de meridianos. É uma figuração que lembra as propostas de Haushoffer, e também os projetos iniciais de Roosevelt, e que debati nesta postagem: Os erros de Dugin e de Putin

É fácil notar que, para Dugin, todos as civilizações do Sul estão sob domínio geopolítico das civilizações do Norte. O que entre nós significa a “América para os americanos” em seu sentido imperialista clássico. Vejamos a explicação da proposta:


“É inteiramente possível aplicar a todas as considerações teóricas mencionadas acima com respeito à organização estratégica do mundo multipolar em relação à existente situação e oferecer – como uma das possíveis versões – um modelo para a futura ordem do mundo multipolar correspondendo com todas as condições específicas. Nós chamamos esse modelo de “quadripolaridade” [...] O potencial mundo multipolar em sua versão dos quatro polos (a quadripolaridade) representa quatro zonas globais dividindo o globo no meridiano. O mapa de K. Haushofer considerando a realização das pan-ideias se parece aproximadamente com isto. Dois continentes americanos estão na primeira região. Este é o primeiro polo. Seu centro é no hemisfério norte e coincide com os EUA. Esse modelo reproduz a doutrina de Monroe ou então o status dos EUA de um grande poder regional, um pico alcançado nos finais do século XIX, tendo liberado a si mesmo do controle europeu e, pelo contrário, tendo estabelecido controle (econômico e político) sobre a maioria dos países latino-americanos. [...]A quadripolaridade difere principalmente do cenário da unipolaridade atlantista na estrutura dos seus eixos estratégicos. Eles estão ao longo do meridiano, do Norte ao Sul; os polos de integração estão no hemisfério norte e sua influência se expande profundamente na área do Sul e ao hemisfério sul, enquanto que o modelo atlantista é construído no princípio de assediar a Eurásia (Heartland) a partir do Ocidente (dominação da Europa de identidade atlantista) e do Leste (os países aliados aos EUA da região do Pacífico – em primeiro lugar, o Japão).” [Capítulo 3]

 

Esta ideia é repetida por Dugin em outras obras. Em "Eurasian Mission", ele afirma:


“Se considerarmos a aliança dos EUA com a Europa Ocidental como o vetor atlantista de desenvolvimento europeu, a ideia de uma integração europeia sob a égide de países continentais (Alemanha e França) pode ser chamada de Eurasianismo europeu. Isto se torna cada vez mais óbvio se levarmos em consideração a ideia de uma Europa se alongando do Oceano Atlântico até os Urais (concepção de Charles de Gaulle) ou mesmo até Vladivostok. Em outras palavras, a integração do Velho Mundo deveria incluir o vasto território da Federação Russa. Assim, o Eurasianismo neste contexto pode ser definido como um projeto para integração econômica, geopolítica e estratégica da região norte do continente eurasiático, que é o berço da história europeia e a matrix dos povos europeus. [...] O vetor horizontal da integração é seguido por um vetor vertical. Os planos eurasianos para o futuro presumem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos verticais, ou zonas meridianas, do Norte ao Sul. Ambos os continentes americanos vão formar um espaço comum orientado e controlado pelos EUA segundo a arquitetura da Doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana Atlântica. Em adição, três outras zonas estão planejadas. Elas são as seguintes: Euro-África, com a União Europeia em seu centro; a zona Rússia-Ásia Central; a zona do Pacífico. É no interior destas zonas que se darão a divisão do trabalho e a criação de áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Cada um destes cinturões (zonas meridianas) contrabalança a outra, e todas elas justam contrabalançam a zona meridiana. No futuro, estes cinturões serão o fundamento sobre o qual vai ser construído um modelo multipolar de mundo: vão existir mais de dois pólos, mas seu número será muito menor do que o número de Estados-Nações. O modelo eurasiano propõe que sejam quatro.” [Parte 1, Capítulo 3]

 

Em linhas gerais, a ideia de união estratégica dos três “pólos eurasiáticos” para contrabalançar os EUA está exposta acima, bem como o modelo mais “palatável” [para os possíveis aliados da Rússia na Eurásia] de zonas meridianas. Dugin reitera o modelo em “The Rise of Fourth Political Theory”:

 

“Schmitt previu um mundo formado por “Impérios”, “Grandes Espaços” e “Reichs”. Aplicando sua visão à atualidade, podemos distinguir no futuro um “Império” Atlântico (com seu centro nos EUA), um “Império” Asiático (China e Japão), um “Império” europeu (correspondendo à ideia de Schmitt), e, finalmente, um “Império” eurasiático. Schmitt se via como um observador do Império europeu e olhava o mundo a partir da perspectiva de um Reich europeu. Os eurasianistas elaboram os fundamentos de uma visão de mundo similar, mas o fazem olhando o mundo a partir da Rússia. [...] Se três “Grandes Espaços” estão aptos para uma expansão, de modo a se tornarem “Impérios”, “Reichs”, então a expansão americana, que clama atualmente um escopo universal e global, terá de se contrair. Para que os EUA retornem à versão original da “Doutrina Monroe”, para que se torne de novo um “Grande Espaço” e um “Império”, é sua influência deve ser apreciavelmente diminuída. Esta análise demonstra que a teoria dos “Grandes Espaços”, de Carl Schmitt, como expressão gráfica de todas as construções da Quarta Teoria Política, é a plataforma mais segura para um mundo multipolar, o anti-globalismo, o anti-americanismo e a luta de libertação nacional da dominação global americana.” (Capítulo 4)

 

No mínimo do mínimo, a proposta demonstra que a multipolaridade que interessa ao eurasianismo duginiano e à Quarta Teoria Política não é a multipolaridade que importa ao Brasil. 


Além disso, as considerações de Dugin não deveriam causar maiores surpresas. Sua Geopolítica é o invólucro exterior, a embalagem, de uma versão específica do Tradicionalismo; ou melhor dizendo, de uma interpretação pessoal de Dugin sobre o esoterismo, segundo suas experiências no Círculo de Yuzhinsky. Nesta versão, que chamei em outros textos de “Nordicismo esotericista”, o Norte Geopolítico é expressão geográfica, histórica e civilizacional direta do Norte Simbólico, e portanto superior e dominante sobre o Sul. O eixo de confrontação Leste e Oeste é considerado para Dugin secundário, um sintoma da Idade das Trevas. Uma vez que esta aberração possa ser corrigida, e o mundo volte ao curso "normal", predomina novamente o eixo Norte-Sul, que tem também um tipo de relacionamento hierárquico, conforme o filósofo explica em “Foundations of Geopolitics”:


“O par Norte-Sul na Geografia Sagrada não se resume ao contraste abstrato entre Bem e Mal. Antes, é uma confrontação entre a Ideia Espiritual e seu estado grosseiro, a corporificação material. No caso normal, com a primazia do Norte reconhecida pelo Sul, existem relações harmoniosas entre estas partes do mundo. O norte “espiritualiza” o Sul, os enviados do Norte transmitem a Tradição aos sulistas para que estabeleça as fundações das civilizações sagradas. Se o Sul se recusa a reconhecer a primazia do Norte, começa então uma confrontação sagrada, uma “guerra dos continentes”, e, do ponto de vista tradicional, o Sul é o responsável por este conflito por conta de seu crime contra as normas sagradas. [...] O homem austral [do sul], o tipo gondvanico, é o exato oposto do tipo “nórdico”. O homem do sul vive rodeado pelos efeitos, manifestações secundárias; ele permanece no cosmos, que ele reverencia mas não compreende. Ele adora o exterior, mas não o interior. Ele preserva cuidadosamente traços de espiritualidade, a corporificação dela no ambiente material, mas não é capaz de se mover do símbolo para o simbolizado. O homem austral [do sul] vive em paixões e impulso, e coloca o material acima do espiritual (que ele simplesmente não conhece), e honra a vida como a autoridade suprema. O homem austral [do sul] se caracteriza pelo culto à Grande Mãe, a matéria que gera uma variedade de formas. A Civilização do Sul é a Civilização da Lua, recebendo sua luz do Sol (o Norte), preservando-a e transmitindo-a por algum tempo, mas periodicamente perdendo contato com ela (lua nova). Quando os povos do sul estão em harmonia com os povos do norte, isto é, reconhecem sua autoridade e superioridade tipológica (e não racial), a harmonia civilizacional reina. Quando clama a primazia de sua atitude arquetípica sobre a realidade, o tipo cultural distorcido surge, que pode ser definido coletivamente como idolatria, fetichismo ou paganismo (em um sentido negativo e pejorativo do termo).” [Capítulo 6]


A esta altura, é desnecessário apontar que esta tipologia simbólica é aplicada por Dugin à Geopolítica. Na verdade, ela é também a chave para o entendimento de sua Noomaquia, que mobiliza conceitos de Gilbert Durant para compor uma hierarquia noética que, no fim das contas, é também uma hierarquia civilizacional [e também, em uma linha de raciocínio bem estranha, uma “hierarquia de humanidades”]. A Noomaquia de Dugin é, em muitos aspectos, uma reatualização do conceito evoliano de “racismo espiritual”. Mas desenvolver esta apreciação me tomaria ainda mais espaço, e é melhor deixá-la para outro momento.

Vou me abster também de tratar da questão da China. Nos escritos mais recentes, Dugin a percebe como parceira na luta contra o inimigo comum, os EUA, e enxerga nela uma caminho mais telurocrático [uma possibilidade que estava colocada em "Foundations", diga-se de passagem]. No entanto, permanece tratando o Japão como um possível polo, e até mesmo como o parceiro ideal da Rússia no Pacífico. Como eu disse no texto anterior, a lógica geopolítica duginiana, ou melhor, a lógica da interpretação tradicionalista que ele faz da Geografia Sagrada, o leva a considerar o Japão um representante do Norte Simbólico. Para Dugin, a civilização chinesa pertence ao Sul [embora fundada sob a “luz do Norte”, e daí seu aspecto “dionisíaco”, como ele diria hoje em dia], e não ao Norte. Não acrescentarei mais a este respeito para evitar me estender demasiadamente.


 

5.      QUIA BONO?


Não vou repetir todos os elogios que fiz a Dugin na postagem anterior. Foram sinceros, embora eu discorde de muitos dos fundamentos, dos meios e das consequências de seu conjunto teórico e de sua abordagem tradicionalista e geopolítica. Uma crítica mais ampla será realizada no futuro. Reitero que há apenas três formas de explicar que um brasileiro, um latino-americano e, de modo mais geral, uma pessoa do Sul Global aceite a totalidade das ideias duginianas e a liderança eurasiana para se posicionar política e geopoliticamente:


A)    Ignorância à Eles não entendem bem a questão, só conhecem Dugin de modo fragmentário e pela mediação de terceiros, e portanto estão iludidos, servindo de pau pra toda obra de movimentos que enxergam o mundo por via russa, e lutam, sempre e em cada ocasião, pelo engrandecimento do poder russo em primeiro lugar;

B)    Vira-latismo -> Odiando o mundo e o país em que nasceu, a pessoa advoga a submissão de sua sociedade aos ditames do Norte Geopolítico, que ele vê como seu senhor, na atitude feminina que os eurasianistas esperam da relação entre os sexos;

C)    A ilusão de ser "nórdico” -> Crença tola em um algum poder cósmico, racial ou espiritual que a faça imaginar pertencer ao destino civilizacional russo, nórdico ou eurasiático, e não ao brasileiro. Provavelmente, fruto de um Platonismo distorcido, que faz alguém acreditar que é partícipe de uma “Pátria ideal”, em vez de formado pelo mesmo barro que molda o Sul Global e, de modo mais específico, o Brasil.


Seja como for, todo aquele que adere ao conjunto destas ideias e aplica todos os pronunciamentos de Dugin, sem distinguir o que é bom ou não segundo uma perspectiva centrada no nosso país, não passa de um entreguista. O amor pela cultura brasileira tem de ser orientado pela busca por nossa Independência em todos os âmbitos, nem que tenhamos de morrer pela liberdade da Pátria. Não uma suposta “pátria ideal”, fruto de uma distorção de perspectiva e de uma incapacidade pra se assumir inteiramente como brasileiro. Mas desta Pátria que nos nutre e na qual Deus nos fez nascer. Outro Reino, só o de Cristo, não a “Eurásia”.

Nem Washington, nem Moscou. Brasil em primeiro lugar.

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