"Você fica pasmo em ver o Olavo de Carvalho, de lá dos EUA, influenciando o governo brasileiro, sendo chamado de "guru" e discutindo com terraplanistas nas redes sociais? Quem frequentava a Dubê não está nem um pouco surpreso."
Uriel Araujo, em 2019, sobre a Comunidade Olavo de Carvalho do B
Antes de focar no impacto de Olavo de Carvalho
para o nosso tema, vou dar exemplos de
recepção do Tradicionalismo que passam
ao largo de qualquer militância política em sentido estrito. E assim aproveito
para repetir a ressalva: a escola de que tratamos é ramo do esoterismo. Apenas
parte dos que a estudam se envolveu com política, processo similar a
diversas outras linhagens esotéricas e ocultistas. Há martinistas e hermetistas
e rosacrucianos fazendo política, mas são minoria entre os que se envolvem com
estas ideias e práticas.
Muitos personagens que conviveram nos grupos e
círculos em que se formou a Dissidência Tradicionalista o fizeram não por militância ideológica, embora temas políticos sempre estivessem
presentes. E sim por desejo de compartilhar conhecimento sobre metafísica,
simbologia religiosa, vias iniciáticas, e suas próprias experiências espirituais.
A imaginação e a propaganda de certa esquerda vende o “Tradicionalismo
político”, como o chama Teitelbaum, como um paradigma impulsionado por gangues
neofascistas e racistas. Mas isto não
passa de tentativa de adaptar ao Brasil um cenário que é, na verdade, o da alt-right norte-americana.
Mesmo nos EUA a abordagem seria parcial, e
caberia antes na história do “trumpismo” que na do Tradicionalismo.
Recentemente, uma ativista antifascista declarou em um canal de esquerda que “a tariqa de [Frithjof] Schuon era de
extrema-direita”. A declaração não faz sentido e repete os equívocos que o senso comum comete quando se depara com o tema.
A organização de Schuon não era política, não se pretendia política e não fazia
política. Era uma ordem sufi, marcada por certo inclusivismo religioso, estudos
em metafísica e arte sacra [o próprio Schuon era pintor e poeta], práticas esotéricas;
e cujas polêmicas giravam em torno de assuntos como “O Batismo cristão é ou não
iniciático?”
Aliás, a Maryamiyya era pouco rigorosa com a Shari’a, tinha ritos algo sincréticos [como as “Danças do Sol”], e pesquisava aas tradições indígenas em uma época em que a defesa dos
nativos norte-americanos era definitivamente uma “sensibilidade de esquerda”.
Uma descrição mais, digamos, “sociológica” dos integrantes da tariqa a aproximaria muito mais de
comunidades hippies do que qualquer coisa parecida com a “extrema-direita”
ianque.
Outro exemplo, este sim voltado para a atuação política, é o de Hakim Bey; ou melhor, Peter Lamborn Wilson, militante anarquista, também poeta, e historiador, criador do conceito de “Zona Autônoma Temporária”. Bey dialogou com o sufismo e com as obras Tradicionalistas, principalmente as de Guénon, no fim dos anos 1970 e na primeira metade da década de 1980. Assim como grande parte dos envolvidos com o Tradicionalismo, percorreu caminhos próprios, e se afastou de muitos elementos dos autores desta escola. Mas as influências exercidas nele pela metafísica e pelas críticas de Guénon ao Ocidente são notáveis e inegáveis. É preciso muita criatividade para defini-lo como de “extrema-direita” por carregar influências Tradicionalistas. [Claro que, sendo as classificações do espectro ideológico permeadas de arbitrariedade e idiossincrasias, é sempre possível chegar lá, ainda que a custo de boa parte da própria honestidade intelectual.]
Hakim Bey, filósofo anarquista que é um dos exemplos do largo espectro de influência do Tradicionalismo |
3.1
Alguns grupos Tradicionalistas brasileiros
Um exemplo de recepção do Tradicionalismo no
Brasil aconteceu no Rio de Janeiro e no Recife dos anos 1980. Um grupo de
esoteristas entrou em contato com um português que veio ao país realizar uma palestra sobre Astrologia. No caso, a palestra era permeada por
uma perspectiva Tradicionalista, e o intelectual se revelou cristão ortodoxo. Nove
brasileiros viajaram então para Portugal, conheceram a Igreja Ortodoxa liderada pelo
Arcebispo Gabriel, e foram batizados. Alguns passaram pela tonsura monástica. Parte deles retornou ao Brasil e fundaram a Missão que se tornaria a Eparquia Brasileira sob
jurisdição da Igreja Ortodoxa da Polônia.
A maioria dos integrantes do grupo abandonou o Tradicionalismo, que
lhes serviu de portal para a via religiosa que passaram a considerar portadora
da Verdade, em movimento semelhante ao do já citado São Serafim de Platina.
Outros continuaram envolvidos, como é o caso do
astrólogo Eduardo Maia, da Academia
Castor & Pólux, no Recife, dedicada à Astrologia ‘tradicional’.
Outro exemplo é Mateus Soares de Azevedo, mineiro criado em Ouro Preto, formado na USP e na PUC de São Paulo, e estudante de Relações Internacionais em Washington D.C. Publicou dezenas de obras com temas Perenialistas e tem peso fundamental nesta história por causa da ligação que construiu com Dídimo Matos, que, como veremos mais adiante, foi o grande aglutinador e organizador dos Encontros Evolianos. Soares Azevedo palestrou em mais de uma edição dos Congressos Evolianos, que, embora tenham sido marcantes para a articulação da Dissidência Tradicionalista, eram eventos de teor acadêmico, e não político. [1]
Nove brasileiros visitam o Mosteiro de Mafra, em Portugal. Do esoterismo à Igreja Ortodoxa. |
Por fim, o Instituto
René Guénon de Estudos Tradicionais [IRGET]
foi fundado em meados de 1980 e era liderado por Luiz Pontual. Seu objetivo era
divulgar a obra de René Guénon em uma perspectiva bastante “ortodoxa”, isto é, supostamente “fiel” aos escritos do metafísico
francês, e crítico à abordagem ‘schuoniana’ que predominava nos meios
Tradicionalistas nas décadas de 1960 e 1970. O Instituto não tem vínculo direto algum
com a Dissidência Tradicionalista, mas muitos dos nomes que mais tarde se
envolveriam com ela frequentavam a comunidade do IRGET no Orkut entre 2005 e
2010.
A recepção que mais importa para a nossa
História, porém, é a do astrólogo e filósofo Olavo de Carvalho. Foram as
discordâncias com os caminhos percorridos pelo “Olavismo” que tornaram possíveis os ambientes em que vicejou a Dissidência Tradicionalista atual.
3.2
Olavo de Carvalho, do Tradicionalismo ao Neoconservadorismo
Não vou compor uma biografia do Olavo de
Carvalho, e sim tratar, de maneira rápida, de sua relevância na criação
dos grupos mais decisivos para a nossa História. Olavo tem um
caminho sinuoso, repleto de pontos obscuros, alguns dos quais só vieram a público nos últimos dez, doze anos.
Em certo sentido, foi um grande camaleão, cujas intenções reais
estiveram parcialmente ocultas de pessoas próximas a ele. Ex-militante do PCB, que parece ter ajudado em um sequestro com cárcere privado, era conhecido como
astrólogo nos anos 1980, publicava na Revista Planeta e tinha contato com círculos
esotéricos. Frequentou durante algum tempo, inclusive, paróquias ortodoxas
ligadas à Jurisdição Polonesa, movimento citado acima. Não é surpresa que, como
era comum entre Tradicionalistas, tivesse um discurso anti-imperialista e
anti-americano naqueles tempos, e que tenha votado no PT em 1989, como declara,
inclusive, em um dos livros que publicou na década seguinte, quase que em tom
de ‘desculpa’.
Olavo participou de grupos ligados em algum grau aos irmãos Idries Shah e, alguns alegam, com seitas secretas romenas que faziam parte do milieu direitista de onde saiu a TFP e a seita do Reverendo Moon, personagem polêmico defendido mais de uma vez pelo filósofo. Na “mitologia” criada em torno dele, no entanto, só se enfatiza a tariqa Maryamiyya, com quem teve breve contato nos EUA. Ainda assim, Olavo gostava de apagar boa parte desta história, como a sua ‘reversão’ ao Islã, que ele negou durante muitos anos mas foi confirmada recentemente por uma de suas filhas, Heloísa de Carvalho.
Seja como for, a “encarnação” pela qual é mais
lembrado é a do filósofo e escritor conservador, consolidada ao longo dos anos
1990. Data dessa época o livro mais influente para a formação de seu primeiro
grande círculo de discípulos, O Jardim
das Aflições, publicado em 1995. Ele continuava crítico do projeto por
trás do Estado norte-americano, embora já mostrasse a tendência que se tornaria
sua marca registrada, o embate com as raízes filosóficas do PT e com a Universidade
brasileira. Além de citações e até plágios de argumentos inteiros de René
Guénon – Olavo faria o mesmo com o conceito de “marxismo cultural”, chupado de
escritores neoconservadores dos EUA --, já se podia perceber, pelo menos para “olhos”
mais treinados, a tentativa de conciliar os princípios Tradicionalistas com o individualismo, uma particularidade do “Olavismo”.
Olavo se adaptou às linguagens da Internet, e veiculava ideias, textos e até livros em um site oficial. Adotando retórica anti-comunista, se apresentando como liberal e conservador, se tornou herdeiro de um público órfão após o desaparecimento de Plínio Correa de Oliveira e Gustavo Corção; atraente para os que se sentiam deslocados com a polarização entre PSDB e PT; ideal para os que temiam a ascensão de Luís Inácio Lula da Silva ao poder; e capaz de dialogar com reacionários saudosistas do regime civil-militar. Mas chamava a atenção também de Tradicionalistas, que reconheciam elementos da escola em diversos escritos da estrela ascendente do conservadorismo.
A
presença de Olavo na mídia cresceu bastante no início dos anos 2000, quando
assinava artigos para a Revista
Época, e para os jornais O GLOBO,
Zero Hora, Jornal da Tarde etc. Na mesma medida, subia o tom nas críticas
ao PT, ao Foro de São Paulo, e ao suposto “marxismo cultural”.
Fundou o Mídia Sem Máscara em 2002, com a intenção de dar acesso a notícias e análises políticas que não tinham espaço nos principais veículos de imprensa. O
site se tornou difusor de ideias conservadoras e liberais, mas também de conspiracionismos
delirantes retirados de fontes tendenciosas do direitismo norte-americano.
Rapidamente, Olavo angariou uma profusão de
discípulos desejosos de seguir os conselhos de um alegado autodidata que se dizia
livre das influências perniciosas de uma Academia que, jurava ele, era dominada
por um ambicioso plano de dominação cultural comunista que seguia a estratégia
de construção de hegemonia elaborada por Antônio Gramsci. Mal sabiam que
os próprios cursos do filósofo adotavam estratagemas copiados da interpretação
que Olavo fazia de Gramsci, e se baseavam na elaboração de um contracânon de
“obras malditas”. O filósofo desejava formar uma nova “elite conservadora”
capaz de mudar os rumos intelectuais do Brasil. Explicam Uriel Araujo e Alex
Sugamosto sobre o “cânon olavético”:
Dentre tais livros, chama a atenção
o fato de serem, implicitamente, igualados em importância obras panfletárias
como A mente esquerdista, do
psiquiatra Lyle Rossiter (2016) e também autores já reconhecidos no meio
acadêmico, porém timidamente discutidos no Brasil – e que foram, de fato,
publicados por incentivo de Carvalho. Tal igualamento subverte noções de
prestígio acadêmico e configura-se como uma espécie de “populismo intelectual”
- ainda que em nome da alta cultura. Assim,
pretende-se incluir na bibliografia supostamente “censurada” pela
esquerda hegemônica na intelectualidade brasileira, obras do pensador Eric
Voegelin lado a lado de obras por vezes esdrúxulas como Leftism - From De Sade and Marx to Hitler and Marcus de Erik von
Kuenhelt-Leddin (1974) ou ainda ao lado de
Marx and Satan de Richard
Wurmbrand (1986). A primeira traça a história do pensamento de esquerda do
Marquês de Sade a Hitler e a segunda identifica as origens do pensamento de
Marx no satanismo. São obras polêmicas, com argumentação duvidosa, em edições
esgotadas. [...] Eric Voegelin, Otto Maria Carpeaux e Mário Ferreira dos Santos
são nomes que no Brasil já eram vagamente conhecidos e até mesmo publicados.
Mário Ferreira dos Santos foi editor de suas próprias obras, inclusive. Em
razão disso, Olavo se apresenta como o intérprete autorizado do filósofo
brasileiro, supostamente o único capaz de compreendê-lo e organizar sua
reedição competentemente. [...] Ironicamente, dos autores acima citados,
Voegelin, embora crítico da utopia marxista como tentativa de “imanentizar o
eschaton”, não se considerava a si próprio um conservador e, na verdade,
simpatizava com posições progressistas (WISER, 2010, p. 40-43). Mais marcante
ainda é o caso de Mário Ferreira dos Santos, que era basicamente um cristão
anarquista gnóstico nietzscheano e socialista proudhoniano – não marxista. É interessante
como, em texto de 2009, Carvalho já tentava minimizar esse dado [...]. Afirmar
que Voegelin não era um conservador ou que Mário Ferreira dos Santos era um
anarquista ou um socialista causaria escândalo nos meios olavistas, o que
indica como alguns autores do contracânon olavista são apropriados e lidos de
forma seletiva. [2]
Além de Gramsci, é possível
notar o aprendizado na tariqa de Schuon e o envolvimento com ordens ocultistas ao longo das
décadas anteriores. O projeto de “formar uma elite conservadora” repercute a
intenção guenoniana de “retificar o Ocidente” com a reconstrução da varna
brâmane, capaz de compreender o esoterismo das formas tradicionais europeias e
americanas. Mas os discípulos de Olavo não eram treinados nos
ensinamentos transmitidos pelo Oriente, como defendia
Guénon; mas em um recorte enviesado de autores lidos sob ótica conservadora e misturados com polemismo de segunda e terceira categoria copiados das guerras culturais norte-americanas.
Mais ainda: por trás do círculo liberal,
propagador de um anticomunismo cada vez mais caricato, Olavo parecia construir
corrilhos "fechado", que aprendiam sua visão particular de
“Tradicionalismo individualista”. Esta arquitetura de seguidores e
colaboradores, separadas de modo concêntrico segundo a maior ou menor
proximidade com o líder, foi se
consolidando aos poucos e na medida mesmo em que Olavo se tornava um autor
proscrito da grande mídia e dos debates acadêmicos. Condenado ao ostracismo
pelo establishment e por parte dos
liberais que o acompanhavam até 2004 -- desejosos por se diferenciarem da
imagem de polemista radical e algo picareta que ele construiu para si --, o
filósofo parecia condenado ao subsolo da
vida intelectual, não fosse o movimento algo sectário que construiu e à rede de colaboradores que instrumentalizou muito bem o fenômeno das
redes sociais.
Os acadêmicos e os veículos da mídia “oficial”
criaram uma cortina de silêncio com o propósito de “cancelar” Olavo, ou, segundo
muitos, não bater palmas para maluco dançar. Mas isto era impossível diante do
crescimento exponencial da Internet. Em grupos de e-mails do Yahoo, sites, seminários e cursos
on-line, programas de rádio via streaming,
vídeos no Youtube, grupos de
aplicativos de mensagens [MSN, por exemplo], o projeto
olavético sobreviveu, ainda que à margem do “Brasil Oficial”, se desenvolvendo
até que explodisse à luz do dia para surpresa dos que subestimaram seu alcance.
Uma destas ilhas afastadas da superfície das
discussões políticas e acadêmicas mainstream era o antigo Orkut, primeira rede a conquistar o público brasileiro, que passou a ser majoritário no site por volta de 2005. Olavo se fazia presente por
meio de duas comunidades. A maior delas era a Olavo de Carvalho, moderada por colaboradores e parentes, com
milhares de membros, e que reunia a fina flor do conservadorismo liberal
brasileiro. A segunda era a Filosofia em
Olavo de Carvalho, um pouco mais restrita.
Depois de se mudar para Virgínia, nos Estados
Unidos, a transição de Olavo para o neoconservadorismo atingiu um ponto crítico.
Adotando postura cada vez mais vulgar [vide o programa True Outspeak], uma americanofilia exacerbada – a ponto de
proclamar o projeto de “Novo Século Americano”, de George W. Bush, como a ponta
de lança da defesa do “Ocidente judaico-cristão” --, declarando em entrevistas
que o Brasil estava dominado inteiramente pelo comunismo e que a América do
Sul caminhava a largos passos para virar uma “nova União Soviética”, decretando
que do nosso país não sairia mais nada de relevante na ordem cultural e que até
seria melhor se fôssemos governados por estrangeiros, o agora “filósofo da
Virgínia” completou sua adesão a alguns dos setores mais desatinados do
discurso conservador norte-americano. Da ótica de sua vertente Tradicionalista, parecia
acreditar que o Ocidente seria salvo por uma união entre a Maçonaria e as
igrejas cristãs dentro dos EUA, em uma contradição flagrante com o que
escrevera n’O Jardim das Aflições.
A solidificação de sua nova versão
pública, construída ao longo de anos de polêmica antipetista, o
levou a uma encruzilhada. A “Guerra ao Terror” de George W. Bush se tornava
cada vez mais islamofóbica, sionista, e portadora de um messianismo evangélico patente.
Não pegava bem se apresentar como antigo membro da tariqa de Frithjof Schuon. Olavo começou a se afastar destas
referências, alegando ter descoberto um plano secreto perenialista de “islamização”
do Ocidente, em abordagem muito ao gosto neoconservador e que repercutia
preocupações anti-imigracionistas da direita europeia [3].
Sincera ou não, a afirmação de que tinha abandonado o Perenialismo era acompanhada pela contínua mobilização de conceitos da escola até o fim da vida, como é possível notar no
debate com Alexander Dugin e em entrevistas ainda mais recentes. Perceber isto,
no entanto, estava reservado aos olhares mais atentos de seu círculo “interno” de
seguidores ou aos críticos que dominavam a linguagem do Tradicionalismo.
3.3 Rumo
à Dissidência: as origens da Olavo de Carvalho do B
Nem só de
discípulos era formado o público que acompanhava Olavo, e muitos que eram familiarizados em algum grau com suas ideias anteriores e com o
Tradicionalismo se sentiram desconfortáveis com a nova persona do filósofo. Alguns participavam também de
comunidades de esquerda, e estavam inteirados das críticas deste campo político,
concordando com elas em algum grau.
Em meio a estas insatisfações, e até como uma brincadeira, surgiu o ambiente mais importante para a emergência da Dissidência Tradicionalista, a comunidade do Orkut “Olavo de Carvalho do B”, criada por Uriel Araujo em 2007. O grupo foi planejado como um “território neutro” em que olavetes e anti-olavetes conversariam criticamente e sem tabus sobre tópicos das obras e dos artigos de Olavo sem temor de 'anátemas', ou seja, o próprio ideal de espaço acadêmico, que talvez inexista nas próprias universidades.
A comunidade atraiu socialistas, conservadores, liberais e
integrantes da “nova direita”.
Entre os membros mais frequentes se encontravam
conservadores bastante próximos a Olavo e que acabaram fundando editoras [Renan Martins dos Santos] ou
seguindo a via política, dando apoio ao governo Bolsonaro [Felipe Martins participou de tópicos]. Também participaram
membros que mais tarde ganhariam importância dentro do campo liberal
brasileiro, incluindo aí o MBL [Ricardo Almeida]. Havia militantes petistas históricos,
trotskistas, social-liberais.
As disputas
filosóficas eram intensas, bem como os conflitos em torno do tópico religião:
cristãos ortodoxos, católico-romanos, protestantes, budistas, hinduístas,
muçulmanos, neoplatônicos e gnosticos se digladiavam e ofereciam leitura dos
assuntos cotidianos e sobre tópicos da ”história universal”.
A natureza da sociedade estadunidense, os elementos do neoconservadorismo e o embate entre unilateralismo e multipolaridade estavam entre as conversas mais comuns. Muito se discutia o papel do Islã e do cristianismo no mundo contemporâneo. Além dos intermináveis debates em torno do Tradicionalismo, e inclusive das fontes dos principais autores da escola.
Por causa das discussões geopolíticas, a comunidade ficou atenta aos passos do governo de Vladimir Putin e Medvedev, a reafirmação do poder russo e a contestação da unipolaridade norte-americana. A partir de 2008, os tópicos sobre o filósofo Alexander Dugin se multiplicaram no fórum. A Olavo de Carvalho do B se tornou, provavelmente, o primeiro espaço brasileiro em que se estudou e conversou a sério sobre o acadêmico russo, em época ainda anterior à publicação da Quarta Teoria Política. Frequentavam o fórum os dois organizadores do debate do russo com Olavo, Giuliano Morais e Ricardo Almeida; e na comunidade surgiu a ideia que levou aos Congressos Evolianos. Os membros do fórum estiveram entre os principais organizadores da vinda de Dugin ao Brasil, em 2012, para um ciclo de palestras em Universidades brasileiras [UERJ, USP etc.]. Muitos partícipes e lideranças das organizações mais conhecidas da Dissidência Tradicionalista foram membros ativos da “Dubê”.
Uriel Araujo, seu fundador, se expressou assim sobre a comunidade em postagem pública há três anos, que foi apagada quando um de seus perfis no Facebook foi exposto pelo governo ucraniano em uma lista de “terroristas” [4]:
“Naquele tempo, Olavo de Carvalho parecia ser apenas um guru do submundo da internet (estou falando de 2006 a 2009, mais ou menos, perdurando até 2010/2011) - e ele tinha uma comunidade no Orkut, que não era "oficialmente" dele, mas, todos sabiam, na prática, era dele mesmo (moderada por seus seguidores e familiares) - daí, chamavam-na de a "para-oficial". [...] Pessoas como Rodrigo Constantino e alguns que ocupam cargos no atual governo eram, na época, figuras manjadas da internet, tipos caricatos, que debateram comigo e com meus confrades frequentemente. Eu vi Rodrigo Constantino defendendo, no Orkut, a privatização dos tubarões. Ríamos deles - hoje, estão no poder. O principal canal de difusão das ideias do Olavo, à época, era seu programa na internet, uma espécie de programa de rádio on-line, o True Outspeak (assim, com o nome em inglês errado mesmo). Ali, ele denunciava o Foro de São Paulo e coisas do gênero - em meio a muitos palavrões e risadinhas de fundo. Havia, dizia eu, a comunidade das olavetes (no Orkut, os fóruns e grupos se chamavam "comunidades"). E havia uma comunidade que originalmente se chamava "Eu odeio Olavo de Carvalho" - até que, um dia, o próprio Olavo de Carvalho entrou nesse grupo e xingou meio mundo lá. Daí, após esse evento-marco tão importante, mudaram o nome do grupo para "Olavo de Carvalho nos Odeia" (sim, há "prints" de tudo isso). Era um grupo basicamente formado por vários tipos de esquerdistas: social-democratas, ateus lacradores, socialistas de botequim...Eu participava de ambos os grupos do Orkut (como seja, "Olavo de Carvalho" e "Olavo de Carvalho nos Odeia"). Na época, não existia o termo "trollar", mas era precisamente isso o que eu fazia em ambos os grupos. Debochava da histeria anticomunista das olavetes, zombava do elitismo intelectualista dos esquerdista anti-olavistas. Previsivelmente, então, de ambas as comunidades fui expulso. Indignado (ou nem tanto) com tamanha injustiça, criei meu próprio grupo, que se chamava, parodisticamente, "Olavo de Carvalho do B" (assim como há ou havia o PCB e o PC do B). Embora a comunidade tivesse nascido desses debates e "tretas" entre direitistas fãs do Olavo e esquerdistas anti-Olavo e embora a comunidade tivesse o nome "Olavo" no nome, ela se tornou muito mais um "do B" genérico (como o Lado B de um disco) do que "Olavo". Nenhum assunto era tabu ou proibido (mas o humor estava frequentemente presente): ufologia, o homem foi à Lua? Terraplanismo (sim, em 2008 ou por aí)... Tudo era discutido. Nós nos tratávamos lá por "confrades" e chamávamos a comunidade de "dubê" ("do B"). Não era só uma comunidade do Orkut: era um clube, uma confraria. Discutíamos lá geopolítica, História, cinema... Lá ocorreram muitos debates e encontros que normalmente não ocorreriam. [...] Rapidamente, a minha comunidade (que, de meia dúzia, chegou, acho, a quase mil membros) foi se enchendo duns tipos estranhos: variadas espécies de perenialistas e tradicionalistas - guenonianos, schuonianos, evolianos; membros de turuq (o plural de "tariqa" - um tipo de confraria do sufismo, a vertente esotérica e mística do Islam), cristãos ortodoxos investidos duma perspectiva esotérica... [...] Esses autores, "tradicionalistas", embora possam ser descritos, no geral, como "conservadores" ou "reacionários", na verdade desenvolveram uma critica radical ao Ocidente, à razão técnica da modernidade, ao colonialismo, à sociedade de massas e ao próprio capitalismo. [...] Cansei de discutir, no Orkut, com Olavo de Carvalho (inclusive em minha comunidade). Eu e meus confrades. Em um de seus programas (TrueOutspeak) ele me xingou e nomeou histericamente a mim e a alguns confrades meus como suposto membros duma "conspiração" contra ele. Ríamos dele. Hoje ele nomeia ministros e um Chanceler. Você fica pasmo em ver o Olavo de Carvalho, de lá dos EUA, influenciando o governo brasileiro, sendo chamado de "guru" e discutindo com terraplanistas nas redes sociais? Quem frequentava a Dubê não está nem um pouco surpreso. Eu dizia que a proposta da minha comunidade era ser um espaço livre de debates - era também fornecer algum divertimento a mim. Fiz o experimento de não exercer censura. Assim, acabei testemunhando debates (e brigas e até algumas ameaças) entre trotskistas, maoistas, fascistas, membros da TFP, integralistas, muçulmanos sufis, neopagãos e por aí vai. Hoje penso que talvez minha moderação tolerante da comunidade tenha sido anti-ética. Mas foi divertido. Eram outros tempos. Não faz tanto tempo, mas tudo mudou. Alguns dos tipos que frequentavam minha comunidade (radicais - representantes de ideologias então obscuras) hoje tornaram-se mainstream no Brasil e até no mundo: liberais da escola austríaca, "ancaps" (anarcocapitalistas), olavetes, neocons, perenialistas de variados tipos e também seguidores da Quarta Teoria Política (pela qual eu também me interesso, como é sabido). Eis que Olavo de Carvalho, o guru maluco que era objeto de discussão e também zombaria em minha comunidade, de súbito é capa de revistas, juntamente com nomes como Guénon, Evola (autores que também foram distorcidos por Bannon - o ex conselheiro de Donald Trump). Pouco a pouco, eu vi o Brasil se transformar na "Dubê" - para o bem ou para o mal (alguns dos nossos detratores chamavam carinhosamente minha comunidade de "Asilo Arkham"). O Brasil se transformou em um embate estranho de forças obscuras. Eu sinto, um tanto megalomaniacamente, que tive algum papel nisso. Eu e meus confrades. Ideias têm poder, se transformam em discursos, narrativas, moldam atitudes, geram público. É como se tivéssemos aberto uma espécie de caixa de Pandora. Foi divertido. Mas, no fundo dela, estava o Olavo de Carvalho, semi-nu, vestido de odalisca. Estavam também, outras leituras do Brasil e do sujeito político da História e estavam ainda os melhores amigos e camaradas que já fiz. E também desafetos e inimigos.''
Sob a condução quase nada intervencionista de
Uriel Araujo se desenvolveu o círculo essencial para a compreensão do “Tradicionalismo
político” no Brasil, e os debates que levaram aos Congressos Evolianos. A Dubê será tema do meu próximo texto.
Meu olhar....
Conforme expliquei no início, não pretendo transformar esta seção em uma autobiografia ou em juízo sobre a Dissidência. Só providenciar um relato pessoal do que vivenciei nestes grupos, e apresentar fontes ligadas à minha participação.
Sem mais delongas, cresci em bairro
pobre da cidade do Rio de Janeiro. Minha família gravitava entre as classes
populares remediadas e as médias baixas. Fiz parte de um Brasil das “periferias”
[no Rio falamos “subúrbios”] das Grandes Metrópoles que estava começando a morrer:
com ares semi-rurais, ainda católico [toda criança era batizada, todo mundo se
casava na Igreja, quase todo mundo ia à missa] mas que mudava rapidamente.
Meus pais eram indiferentes à religião
institucionalizada, e desde criança fui o membro da casa com maior interesse em
temas espirituais. Passei a frequentar um centro espírita aos 12 anos de idade,
em 1990, época em que meu avô paterno me proporcionava longas conversas sobre esoterismo.
Na adolescência, mergulhei na literatura ocultista e
esotericista que chegava às minhas mãos. Participei de ordens esotéricas, e me tornei um tipo de neo-hippie, amante de música clássica, de metal e de rock progressivo, que vivia
acampando em serras, e cuja literatura de cabeceira eram o Gitá e o Tao-Te-Ching.
Cursei dois anos de Direito na UFRJ, depois mudei de curso para
Filosofia, em um processo permitido pela própria instituição. Abandonei o curso sem completá-lo. Depois
de pensar [a sério] em montar uma comunidade rosacruciana alternativa em Nova
Iguaçu, vivendo da venda de leite das cabras que eu pretendia criar, fiz
vestibular de novo [para Zootecnia e História], passei [para ambos os cursos] e
retornei ao IFCS. Estamos agora em 1999.
Em termos políticos, fui marcado pelo fuzuê dos
anos 1980 e pela redemocratização. Meus pais eram brizolistas, e cresci com
grande desconfiança, que logo se tornou imensa repulsa, tanto da direita liberal
quanto do PT. Fiz questão de tirar meu título de eleitor ainda aos 16 anos para
ter a oportunidade de votar no velho Leonel em 1994. A decadência do PDT e o domínio do debate púbico pela [falsa] polarização entre PT e PSDB, no entanto, me levaram a uma
posição mais próxima a um certo anarquismo. Anulei todos os meus votos daí por diante
até o segundo turno de 2002, única vez em que votei em Lula.
A partir de meados dos anos 2000, me dediquei mais às obras da escola Tradicionalista. Já ouvia falar de Guénon desde 1995, mas nunca tinha me aprofundado até então. De modo similar, lia artigos de Olavo de Carvalho desde fins dos anos 1990, com curiosidade mas sem adesão às suas ideias. Estava me afastando de várias teses ocultistas e de algumas organizações esotéricas. Um livro de Karen Armstrong me aproximou da mística muçulmana, vencendo um preconceito antigo contra a religião institucionalizada. Isto me fez refletir se eu não havia me enganado em relação ao cristianismo. Entre 2005 e 2008, mergulhei no estudo de diversos autores cristãos, novos e antigos. Participava de comunidades do Orkut de discussões religiosas, e de tanto defender teses cristãs para corrigir as besteiras que lia, me senti atraído por esta religião.
Em 2006, li debate entre Caio Rossi e
Rafael Daher na comunidade “Filosofia em
Olavo de Carvalho”. Falarei de ambos mais tarde, mas a obra “Relatos
de um Peregrino Russo” foi citada na conversa. A leitura deste livro me levou à Igreja Ortodoxa. Eu
tinha, e sempre tive a partir de então, uma relação ambígua com a obra
Tradicionalista, marcada por aproximações e afastamentos.
Nesta mesma época [por volta de 2006], eu
participava do maior grupo de Filosofia do Yahoo, o Acropolis [mais tarde se mudou para o Acropolis_ quando chegou ao limite máximo de e-mails permitido pelo
Yahoo]. Há uma razão especial para
que eu cite este grupo: não só eu participava dele, mas também Dídimo Matos, estudante da
Universidade Federal da Paraíba, e futuro organizador dos encontros evolianos;
e Felix Soibelman, advogado carioca que mais tarde se declarou inimigo visceral
do Tradicionalismo, tentou impedir a entrada de Alain Soral no país para
participar do “Congresso Evoliano de São
Paulo”, e fundou uma organização sionista e bolsonarista com influência na
comunidade judaica do Rio de Janeiro. Falarei disso mais tarde.
Em conversa na Acropolis, por volta de 2006, me
convenci que era possível conciliar o conservadorismo-liberal antipetista de
Olavo com a defesa de um Estado de Bem Estar Social e do Keynesianismo, dos
quais eu não abria mão. Meu flerte com o “Olavismo”, evidentemente, estava
destinado a durar pouco: era um Frankenstein que seria demolido quando a
participação na paróquia ortodoxa que eu frequentava, o aprofundamento nas
ideias de René Guénon [possibilitado por esta participação mesma,
como pretendo explicar], e as discussões na Dubê revelaram a
incompatibilidade entre minha religião e o projeto olavético.
Cheguei na Olavo de Carvalho do B em 2007,
ainda no início do fórum, por convite de Sergio Ribeiro Kneipp, então
amigo de Uriel Araujo, muito interessado em Filosofia, e de tendências
social-liberais. Tínhamos debatido em outra comunidade, voltada para a Filosofia, sobre a moralidade do
uso de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki a partir da aplicação de
diferentes abordagens éticas. Ele imaginou que eu tinha o nível de loucura
suficiente para participar do “Asilo Arkham”. O tempo mostraria que ele estava
correto.
______________
ERRATA em 11 de junho: A ideia do debate entre Olavo e Dugin nasceu em uma conversa entre Ricardo Almeida e Giuliano Morais no MSN [e não na Dubê, como dito anterioremente].
[2] "Em nome da "alta cultura": uma análise do contracânon intelectual de Olavo de Carvalho", não publicado.
[3] As menções à tese da "Eurábia" cresceram particularmente nos meios 'olavetes'. Por trás da histeria do filósofo havia uma leitura com fundamento em Guénon. O metafísico francês citou três alternativas para o Ocidente: o retorno à sua própria forma tradicional; a conversão a outra forma tradicional; ou a catástrofe, da qual as possibilidades tradicionais específicas ao Ocidente seriam resguardadas por uma elite intelectual capaz de transmiti-las a novo ciclo. Olavo concluiu, a partir de sua vivência com o perenialismo de Schuon, e com certo grau de oportunismo, que havia um grande projeto para islamizar a elite ocidental diante da impossibilidade de "resgatar" a metafísica propriamente católica-romana.
[4] Uriel visitou a Rússia e o Donbass para seu Doutorado. Tinha uma carta de aceite do Instituto Max Planck de Antropologia, e com ela conseguiu uma bolsa da CAPES para pesquisa de campo. Uriel afirma, no entanto, que sua presença na homenagem também teve um caráter de "militância anti-imperialista", e que participou da Conferência anti-fascista de Lugansk, na semana do primeiro de maio. Teve um encontro pessoal com Alexander Dugin [também para fins de pesquisa]. Mas isto será tratado com mais detalhes em textos futuros.
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