sexta-feira, 22 de abril de 2022

A RAINHA DO MEIO DIA, considerações sobre o Imaginário Brasileiro e a Tradição

 "Sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão."

Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículo 5




O anúncio do Manifesto da Frente Sol da Pátria e do primeiro livro com textos dos ativistas impactou alguns adeptos do Platonismo Distorcido que mencionei aqui. Pior ainda, os cabelos da turma ficaram em pé quando depararam com o título “Rainha do Meio Dia”, expressão que aparece em outros textos e postagens da SdP.

 

Rapidamente, alguns criaram a narrativa de que o epíteto diz respeito a macabras entidades materiais, subterrâneas e caóticas que eles leem sob o signo da Mulher. 

 

É hora então de expor mais alguns equívocos do Platonismo distorcido, cujas críticas são causadas por:


  1. Apego a um dualismo metafísico cuja versão contemporânea está no ocultismo;
  2. O repúdio às forças femininas que se expressam na Possibilidade Universal, na potência, na matéria, na substância e no corpo, gerada por uma disposição gnostikoi que não deve ser confundida com a gnose, e que leva a uma postura anti-tradicional ao rebaixar a mulher no terreno da espiritualidade;
  3. A incapacidade de ler a realidade a partir do próprio imaginário brasileiro.

 

Neste texto, tratarei do terceiro ponto acima.

 

A Rainha do Meio Dia é figura literária de Ariano Suassuna, e tem papel indispensável em sua interpretação da cultura brasileira. Portanto, ao repudiá-la, o Platonismo Distorcido se coloca imediatamente contra o principal nome do Movimento Armorial e um dos pensadores e artistas mais importantes do Brasil Profundo.

 

O afastamento do Platonismo Distorcido em relação a Suassuna não deve surpreender. Como pretendo deixar claro na História da Dissidência Tradicionalista que publicarei em breve neste blog e o no vindouro site da Frente Sol da Pátria, os temas diretamente ligados à Brasilidade foram desenvolvidos com grande esforço por pessoas que se afastaram dos mesmos grupos que agora rejeitam a imagem da Rainha. Nada mais natural que retornem, gradual mas firmemente, a um dualismo ligado ao “nordicismo esotericista” que apontei ser um dos maiores problemas metafísicos e políticos neste meio.

 

Suassuna se remete à Rainha de Sabá, personagem fundamental da espiritualidade cristã, judaica e islâmica. Segundo a História Sagrada, ela teria vindo de seu Reino repleta de presentes para ouvir e conhecer a Sabedoria de Salomão [em algumas interpretações, seu Reino ficaria na Etiópia. Outros apontam o Sudoeste da Arábia. Outros ainda, a identificam com o Egito. E há aqueles que fazem dela uma princesa chinesa.]  No Cristianismo, a Rainha de Sabá é também chamada de “Rainha do Sul”, e mencionada nos Evangelhos da seguinte forma:

 

βασίλισσα νότου ἐγερθήσεται ἐν τῇ κρίσει μετὰ τῶν ἀνδρῶν τῆς γενεᾶς ταύτης καὶ κατακρινεῖ αὐτούς· ὅτι ἦλθεν ἐκ τῶν περάτων τῆς γῆς ἀκοῦσαι τὴν σοφίαν Σολομῶνος, καὶ ἰδοὺ πλεῖον Σολομῶνος ὧδε.

 

“A rainha do meio-dia se levantará no dia do juízo para condenar os homens desta geração, porque ela veio dos confins da terra ouvir a sabedoria de Salomão! Ora, aqui está quem é mais que Salomão."

[Evangelho de Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo segundo o Glorioso Apóstolo e Evangelista São Lucas, capítulo 11, versículo 31]

 

No texto, a palavra νότου significa, na verdade, “do Sul”.

 

O aviso do Senhor de que a Rainha do Sul se levantaria como Juíza no dia temível não passou  despercebido por Padres da Igreja. Santos viram na Rainha de Sabá um tipo da própria Igreja. [O “tipo” é o personagem ou situação das Sagradas Escrituras que apontam para verdades só desveladas no Novo Testamento, ou ainda para ensinamentos na ordem metafísica]. Assim como a Igreja reúne povos de todas as extremidades da Terra para ouvirem e participarem de Cristo, a Rainha de Sabá fez uma longa viagem para conhecer a Sabedoria de Salomão, ele próprio um tipo de Cristo. Ora, isto a conecta simbolicamente também aos Reis Magos, que levaram presentes e dons para Deus recém-nascido.

 

Como disse Santo Isidoro de Sevilha, sendo a Rainha de Sabá analogia da Igreja, é também tipo da Theotokos [‘Mãe de Deus’] e Eternamente Virgem Maria. Estamos diante de vínculos simbólicos fundamentais na Santa Tradição.

 

Ariano Suassuna sabia que, segundo as tradições, a Rainha de Sabá não apenas ouviu palavras de conhecimento da boca do Santo e Justo Rei Salomão, mas foi sua amante. Ou seja, a transmissão de conhecimento se deu por meio do Eros Sagrado – e não à toa o ato sexual é, nas Sagradas Escrituras, analogia da gnose. A implicação é que o conhecimento adentra o próprio ser do discípulo, toma forma em seu sangue e modela sua existência por inteiro, inclusive a corporal. O que, obviamente, é incompatível com o Platonismo Distorcido e seu repúdio à matéria e à substância.

 

Não à toa, as tradições indicam também que o “Cântico dos Cânticos”, atribuído a Salomão, faz referência à Rainha do Sul:

 

Μέλαινά εἰμι καὶ καλή, θυγατέρες Ἰσραήλ, ὡς σκηνώματα Κηδάρ, ὡς δέρρις Σαλωμών.

"Sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão."

Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículo 5.

 

Onde “morena” significa “queimada pelo Sol”.

 

Suassuna se interessava não só pelo caráter erótico e dionisíaco do tema, mas também pelo elemento “moreno”, que ele chamava de “Castanho”. A Rainha do Meio Dia seria assim a mãe de todas as populações do Sul, ou mais especificamente, das que existem ao redor do Equador. Mais uma vez, o símbolo da Maternidade e o Tipo da Mãe de Deus se fazem presentes no imaginário mobilizado pelo artista e filósofo.

 

Theotokos de São Teodoro, Ícone Padroeiro da Família Romanov

Esse tipo liga diretamente a figura da Rainha do Sul às “Virgens Negras”, conjunto de representações da Mãe de Deus como uma mulher “acastanhada”, como diria Suassuna. A Virgem Negra é representação da Matéria Primordial, matriz e geradora de todos os seres viventes, a mãe do Universo. Mas em Suassuna toma a forma também de uma “matéria segunda”, de onde saem os “povos castanhos do mundo”. Não vou esticar demasiadamente a explicação, mas ele via no Brasil a realização mais radical e acastanhada de todos os filhos da Rainha do Meio Dia, e portanto a expressão mais nítida daquele equilíbrio de antagonismos e União Erótica dos Contrários que é tão importante na Grande Obra.

 

Se mergulharmos ainda mais no imaginário, é fácil perceber que o Brasil é também regido pelo signo de uma Virgem Negra, Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do País e  Generalíssima do Exército.

 

Estas considerações não são exatamente “teológicas”, mas associações simbólicas no Imaginário do povo brasileiro. Para entender a profundidade e o caráter imprescindível da Rainha do Meio Dia, é necessário saber mergulhar neste conjunto de imagens entrelaçadas na Utopia Brasil. Evidentemente, o Platonismo Distorcido não é capaz de fazer isto, dentre outras coisas, porque nega a Brasilidade. 

 

Em textos futuros vou deixar claro que há outros impedimentos para que o Platonismo Distorcido compreenda a Rainha do Meio Dia, mencionados nos dois primeiros pontos que listei acima, e que se apresentam na absolutização do motivo tradicional da luta contra o Caos, entendido a partir de uma dualismo metafísico que associa as forças caóticas com a Mulher, o Feminino, e a Matéria.


Este dualismo e “misoginia espiritual” são incompatíveis com o Cristianismo e o Hermetismo, e também com toda Tradição plena e verdadeira. Em termos metafísicos, o caos dos Mitos de Origem cristãos, egípcios e outros não é independente da Divindade, simbolizada em seu caráter solar, vivificador e criador. E não pode ser identificado com um “Mal Absoluto” ou “Anti-Sol Metafísico”.

 

Estas abordagens surgem não da Tradição, muito menos de uma Gnose. São, na verdade, adaptações contemporâneas de temas dualistas, feitas a partir de literatura ocultista novecentista.

 

Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil e Generalíssima do Exército

Mais ainda, estas perspectivas são incompatíveis com o Eros Sagrado e o Casamento Místico que é tema fundamental da via espiritual, principalmente a cristã e hermética. [Mas não só.] Como veremos, a História Sagrada no Cristianismo não chega ao fim em nenhum “paraíso de ideias descarnadas”, típico do Platonismo Distorcido. Mas na elevação da Mulher, da Matéria, da Substância e do Corpo a um patamar maior que o dos próprios Anjos.

 

Evidentemente, esta é uma mensagem incompreensível para o Platonismo Distorcido.

 

Aguardem.

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