sexta-feira, 22 de novembro de 2019

ALIANÇA PELO BRASIL, ou: O Pinochetismo olavético-udenista

Com Carlos Lacerda era ''Aliança para o Progresso", que a UDN via como o "Plano Marshall'' para a América Latina.  Na época, o então Governador da Guanabara removeu favelas da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As populações foram deslocadas para o então distante bairro de Bangu -- hoje um dos mais populoso do município, contando quase 300 mil habitantes --, onde formaram as atuais favelas de Vila Kennedy e Vila Aliança, ambas adornadas pela Estátua da Liberdade em sua praça principal
Bozó está tentando criar um movimento e institucionalizá-lo na forma de um partido. Não se sabe se a legenda vai mesmo sair e quando é que cumprirá os requisitos necessários para que seja legalizada. Mas o programa já foi lançado. O nome é significativo: "Aliança pelo Brasil'' recorda muito a velha "Aliança para o Progresso'', com a qual Kennedy queria espantar o fantasma do socialismo da América Latina e foi muito bem recebida pela UDN no Brasil.
O programa da reedição da Aliança é quase que um manifesto do que significa o bolsonarismo. Vamos destrinchar o Frankenstein:

1) O bolsonarismo apresentou sua certidão de nascimento, se declarando filho da crise de representatividade no sistema político brasileiro. Ele oferece uma interpretação sobre a vitória do 'Não' no referendo sobre o desarmamento, em 2005, e, principalmente, nas jornadas que se iniciaram em junho de 2013 e desembocaram, nos anos seguintes, na consolidação do discurso udenista/lavajatista/anti-corrupção [1].
A crise de representatividade seria causada pelo domínio de um "estamento burocrático", os verdadeiros ''donos do poder'' no país. Os bozós se apropriam, dessa forma, do conceito de patrimonialismo de Raymundo Faoro.
Os ''donos do poder'', o estamento que comanda o Estado patrimonialista, seria uma mistura de velhas oligarquias políticas que se tornaram cúmplices de um movimento comunista internacional cujo escopo é revolucionar o país por meio do globalismo.
Jair Messias teria chegado para ''dar voz ao povo'' e impedir essa revolução. O movimento se assume como reacionário e conservador.
Assim, o programa do "Aliança pelo Brasil'' confirma parte das análises de Jessé Souza, que desde o impeachment de Dilma, em 2016, denuncia a função que o conceito de "patrimonialismo'' exerce como meio de mobilização da direita liberal-conservadora brasileira. Há pitadas aqui e ali do discurso de Olavo de Carvalho, mas ele se torna mais forte nos próximos pontos.


Vila Kennedy, inaugurada em 1964 com a remoção de comunidades da Favela do Pinto e do Morro do Pasmado -- respectivamente na Lagoa e em Botafogo -- é hoje uma das comunidades mais violentas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Possui 45 mil habitantes. Segundo o IBGE, mais de 62% deles vivem como até um salário mínimo [contra 37% da média da cidade]. Do lado da comunidade existe o Complexo do Gericinó, maior conjunto de presídios do Estado do Rio

2) Depois de estabelecer sua origem e propósito em uma reação ao fracasso da representação política na Nova República, contra o patrimonialismo e contra o comunismo internacional, o programa do partido assume a defesa da ''identidade, tradição e cultura'' do Brasil.
A Nação possuiria uma unidade histórica, religiosa, de valores e de língua cujo fio condutor é a ''tradição judaico-ocidental'', uma abordagem nitidamente neoconservadora, ainda que use jargões levemente integralistas -- numa tentativa de atrair ''bois de piranhas'' ou de fazer concessões aos que já se encontram gravitando em torno da titica --, e que estão em flagrante contradição com outras passagens do programa.
Não há qualquer discussão sobre pluralidade étnica, regional e cultural dentro do país. A religião é identificada genericamente com o cristianismo, ''patrimônio comum de nosso povo''. As ''origens lusitanas'' são citadas em um contexto maior de adesão ao Ocidente, e não de um possível mundo ibérico ou iberista. O texto reverbera pronunciamentos de Ernesto Araújo, que por sua vez derivam de Olavo de Carvalho [2].
O programa adota uma perspectiva de guerras de valores que não está preocupada com as raízes das mudanças culturais do ''globalismo''. As ideias subjacentes são, no fundo, importações da noção de ''marxismo cultural'', ainda que o conceito não esteja citado explicitamente. O bolsonarismo ataca o aborto, a pedofilia e a ideologia de gênero. Também há apoio ao porte de armas e ao homeschoolling. Uma plataforma que seria assinada sem estranheza pelo GOP.
Essas formulações vem acompanhadas por uma visão precisa do papel do Estado. Em primeiro lugar, ele existe para manter a ordem e as normas jurídicas que convém a determinado tipo de brasileiro, ''o cidadão empreendedor, gerador de empregos, e o cidadão pagador de impostos, que carrega o custo do Estado nas costas.'' É um Estado voltado para o "homem de bem", que nada mais é do que o burguês.
Para isso, seria necessário valorizar as FFAA e os policiais, com os quais o país teria um "débito". Uma das formas de pagá-lo é assegurando condições para que essas forças desempenhem bem o seu trabalho, dentre os quais o combate à criminalidade urbana e ao narcotráfico. É o lado Witzel do bolsonarismo, com o adendo de que se fala explicitamente em deixar de lado o ''garantismo jurídico'', que só se sustém porque os socialistas e o "estamento burocrático'' já citados estariam impedindo a representação da vontade popular [3].
Por fim, o papo de ''recuperação da unidade linguística'' e das raízes cristãs, além de parágrafos com uma redação pra atrair integralistas, desaguam na defesa da aproximação com movimentos conservadores dos Estados Unidos, Reino Unido e Israel, dentre outros citados. Ora, os maiores partidos conservadores desses países são trincheiras de defesa do atlantismo e do ocidentalismo. Como cita também Itália, Hungria etc, há nessa passagem uma óbvia influência de S. Bannon [4].


3) O telos de toda essa bazófia, óbvio, é o livre mercado. O bolsonarismo é capitalista e neoliberal até a raiz, pelo visto, e ''se empenhará para que sejam reduzidos e, quando possível eliminados, os controles e as interferências estatais sobre a economia''. Desse modo, para combater o comunismo e o tal patrimonialismo oligárquico, o "Aliança pelo Brasil'' entrega o país à Banca.
Apesar de citar, num fim de parágrafo, o papel do pequeno proprietário e do princípio da subsidiariedade, bem como da visão católica-romana do valor do trabalho [pra atrair os buchas de canhão de sempre, já que não há qualquer análise do caráter deletério do capitalismo, da financeirização da economia e do liberalismo], o foco é a livre empresa e o Estado Mínimo -- desregulado, sem papel na economia, que é deixada para a ''livre criatividade'' dos indivíduos e das forças de produção [5].
Junto com a concepção de um Estado Militar voltado pra proteção do burguês, essas passagens do programa dão um ar ''pinochetista'' ao programa bozó, bem apropriado à sua adesão à tal ''civilização judaico-cristã'' do neoconservadorismo ianque-sionista.
O Bolsonarismo é isso: o cerne é um pinochetismo à brasileira, com grande peso de udenismo e uspianismo. Os adornos vem de um verniz religioso para melhor atrair conservadores de diversas vertentes, cujas ideias principais se chocam com o núcleo que citei e entram apenas como base de apoio e pau pra toda essa obra do capiroto [6].
________________________ [1] A crise de representatividade é real. Antes mesmo de junho de 2013, o próprio PT fazia esse diagnóstico, com os mesmos instrumentos uspianos que mais tarde foram brandidos pela direita liberal, e que implicam numa colonização do pensamento da nova esquerda pela mesma matriz intelectual conservadora estrutura e divulgada pela USP. O ponto crucial é a narrativa que o liberal conservadorismo construiu sobre os eventos que expuseram o processo disruptivo, monopolizando cada vez mais a sensibilidade popular diante do imobilismo de uma esquerda que se encontrava acuada nos palácios do poder enquanto aplicava a agenda do cartel de bancos e da FIESP.

[2] A ideia de participação do Brasil em um Ocidente judaico-cristão pode ser melhor vislumbrada nos textos de Ernesto Araújo, para quem Trump seria o ''salvador da civilização ocidental''. Apesar do viés religioso, da busca por legitimação nos patrimônios de Grécia e de Roma, toda a abordagem se amolda a concepções do conservadorismo anglo-saxão. O eventual uso de temas caros a integralistas, católico-romanos e outros nacionalistas ou militantes religiosos são adendos a esse pilar discursivo.

[3] Existe, portanto, uma tentativa de "manipulação'' dos sentimentos anti-comunistas do antigo generalato das Forças Armadas a partir da figura de uma luta perene contra o comunismo internacional. A aproximação com os aparatos policiais também reverberam antigas conexões nascidas nos porões do aparato de repressão do regime civil-militar, que conectaram essas instituições com organizações criminosas que atuavam nos jogos de azar, na prostituição, no contrabando, em esquadrões de morte e, finalmente, no tráfico internacional de drogas. Essas tendências se desenvolveram no atual fenômeno das milícias fluminenses, cadas vez mais poderosas em todo o Brasil. O programa neoliberal, por sua vez, jamais poderia ser instituído sem um forte componente de repressão aos pobres e de criminalização de movimentos sociais.

[4] Bannon, retratado por alguns desavisados como um ideólogo neofascista, nada mais é do que o intelectual orgânico de um movimento conservador devotado à preservação do império dos EUA em sua configuração nacionalista assumida durante a Guerra Fria, e por oposição ao Império globalista, cosmopolita e financeirizado defendida pelas elites mais vinculadas ao Partido Democrata.

[5] Como feito anteriormente, princípios católico-romanos, no caso da Doutrina Social da Igreja, são citados como meros adendos ou concessões discursivas ao cerne do que está sendo proposto e em flagrante contradição com esses próprios princípios. Ou, abordando de outra maneira, é uma maneira imprópria, liberal e capitalista, de ler princípios expostos pela DSI. O eixo do texto está no Estado Mínimo e na atividade econômica desregulada, que é a exigida pelo neoliberalismo financeiro atual e que tem por principal consequência o primado do rentismo sobre a produção e a precarização das relações trabalhistas, além da consolidação de uma nova divisão internacional da produção e do trabalho.

[6]Para o uso de movimentos de terceira teoria política para propósitos vinculados ao imperialismo ianque e a difusão da globalização financeira, veja o seguinte vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=vJrpSaEb1zI ["A Terceira Teoria Política morreu: Rumo à Quarta Teoria"]

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