sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O REINO DOS BOZÓS, OU: O QUE ESPERAR DO GOVERNO BOLSONARO? -- Parte II: o campo neoliberal e a base social conservadora-popular


Segunda parte da comunicação de André Luiz V.B.T. dos Reis, membro da Organização Popular -- Nova Resistência, em evento organizado com a Mobilização Islâmica, no Rio de Janeiro, dia 29 de novembro de 2018


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PARTE II - O CAMPO NEOLIBERAL E A BASE SOCIAL CONSERVADORA-POPULAR





A destruição do sistema de poder dominante permitiu que as forças neoliberais e filo-americanas se reagrupassem em torno de um candidato popular, um político que soube manipular a ojeriza moral que a maior parte da população brasileira sentia pela agenda progressista e cosmopolita incentivada por PT e PSDB.

Jair Bolsonaro vinha construindo sua imagem contra a militância LGBT. Orientado também pelos filhos, ele pôde se aproximar de lideranças liberais, evangélicas e sionistas, se tornando apto para atrair para sua candidatura as organizações interessadas em uma reorientação do Brasil nesse cenário internacional cada vez mais minado.

Para que compreendamos o próximo governo Jair Bolsonaro é fundamental vê-lo em larga medida como uma continuidade da agência internacional e nacional interessada em um realinhamento estratégico da geopolítica brasileira, uma americanização de nossa sociedade e um choque liberal em nossas instituições e economia.

Ressalto, no entanto, que essas forças se aglutinaram em torno da candidatura Jair Bolsonaro, mas não se confundem inteiramente com ela. Se podemos afirmar que o sucesso do próximo governo representaria uma vitória considerável para essa agenda que eu considero anti-nacional, não podemos, no entanto, afirmar que o fracasso do governo redundaria em sua derrota.

Os grupos em torno de Bolsonaro podem muito bem usar as possíveis falhas do Presidente eleito para fazerem avançar a proposta filo-americana em torno de algum novo nome. Essa é uma possibilidade aberta. Não é impossível supor uma futura candidatura de Sérgio Moro, de João Dória ou outro elemento passível de ser instrumentalizado e capaz de instrumentalizar as mesmas forças.

Na minha leitura, o governo de Bolsonaro é uma fase do projeto anti-nacional pela americanização e liberalização, leia-se: pela ocidentalização da sociedade brasileira. Uma ocidentalização que vinha sendo levada a efeito a passos de formiga pelo PT e pelo PSDB, mas cuja marcha poderá se acelerar no próximo mandato presidencial.

Mas, pela natureza do processo de derrubada do sistema até então vigente, essas forças “ocidentalizantes” não consolidaram sua hegemonia. Elas possuem contradições internas, contradições umas com as outras e também contradições com sua própria base social. Esses pontos de conflito lançam dúvidas sobre sua possibilidade de sucesso, pelo menos a curto ou médio prazo.

Vou falar sobre os riscos dos próximos anos por meio de uma rápida análise das orientações e campos que disputam espaço no novo governo. Esses campos são formados por grupos que interseccionam e se friccionam em alguma medida. Os encontros e desencontros entre os grupos que participam desses campos podem impulsionar a popularidade ou, pelo contrário, paralisar a ação do governo.

Além disso, esses campos são de certa forma mais ou menos essenciais para o sentido final do governo Jair Bolsonaro. Eles representam, de certa maneira, círculos mais ou menos concêntricos em torno do Presidente eleito. Eles estão ligados ao Presidente eleito por laços orgânicos.

Vamos imaginar então que estejamos entrando num palácio, na casa em que vive o nosso futuro governante. Vamos conhecer essa casa, partindo do seu exterior até atingirmos cômodos mais internos, aqueles em que Bolsonaro se sente mais à vontade, em que ele abre seu coração.

O primeiro campo, que representa o círculo mais exterior, é o econômico.  Jair Bolsonaro propôs uma aliança com o mercado financeiro. Essa aliança se tornou factível por causa do peso do nome de Paulo Guedes. A perspectiva econômica de Bolsonaro sempre criou desconfiança nos agentes do sistema financeiro, que a consideravam herdeira do nacionalismo estatista militar.

Paulo Guedes, pelo contrário, é um legítimo representante da escola de Chicago e prometeu, durante a campanha, uma ação ultra-liberal por parte do novo governo. O futuro super-ministro da economia é um dos pilares do governo Bolsonaro. Ele chegou a prometer o inexequível, como a privatização de todas as estatais e de todo imobiliário da União. Era um modo que encontrou de enfatizar o compromisso com o choque neoliberal.


O planejamento econômico de Paulo Guedes passa pela aposta na diminuição do Estado, com venda de estatais, controle de gastos públicos e redução dos cargos comissionados. Existe o objetivo de realizar uma abertura comercial também, com a leitura de que, de alguma maneira, se aumentaria a competitividade da indústria e se diminuiria os preços para a população. Paulo Guedes propõe também uma forte redução da carga tributária, acompanha de reformas institucionais importantes. Para levar adiante esse plano neoliberal, ele montou uma equipe coesa e afinada com seu discurso e unificou ministérios sob seu comando.

Para manter a lua de mel com o “mercado”, o governo Jair Bolsonaro terá de mostrar sua capacidade de executar uma Reforma da Previdência que satisfaça a exigência dos agentes financeiros por ajuste fiscal e por diminuição do Estado. Era desejo de Guedes estabelecer uma Previdência residual e substituir o sistema atual pelo de capitalização, entregando a aposentadoria dos trabalhadores nas mãos dos rentistas. A menina dos olhos do super-ministro da economia a esse respeito é o Chile. Mas a proposta parece impossível de ser adotada.

Para realizar uma Reforma da Previdência ao gosto do choque neoliberal, o governo Jair Bolsonaro teria de gastar uma enorme parte de seu capital político. Teria de demonstrar também imensa capacidade de articulação. E eis aqui um dos motivos de maior desconfiança nas possibilidades do Presidente eleito. O grupo que se encontra no poder é inexperiente nas lidas político-partidárias. Ele ainda tem de encontrar os meios que lhes permitam negociar a contento com o Congresso. Não se sabe até que ponto Jair Bolsonaro é capaz da composição de um arco de alianças sólido.

O próprio Paulo Guedes é um novato na gestão pública. Ele é reconhecidamente um bom estrategista de mercado, mas não parece ter vocação para as operações diárias. Nunca se destacou como executor de planos. Nunca participou da administração de um governo. O acúmulo de áreas da máquina pública nas mãos de Paulo Guedes pode vir a ser menos um sinal de força do super-ministro do que de fragilidade do próximo governo. Se Paulo Guedes não demonstrar competência na gestão da máquina, pode acabar paralisando a área econômica e levando à derrocada do governo.

Outro complicador é o fato de boa parte da base partidária de Bolsonaro ser oriunda do serviço público. Ela possui larga influência de setores do judiciário, das polícias e das forças armadas, que respondem por uma proporção considerável do suposto déficit da Previdência. Para impor uma reforma satisfatória para o “mercado”, Bolsonaro teria de contrariar interesses bastante arraigados em sua própria base política, o que está longe de ser fácil. Contradições como essa foram responsáveis pelo descrédito do governo PT, incapaz de um equilíbrio entre sua agenda neoliberal e as expectativas dos sindicatos e do funcionalismo dos quais dependia eleitoralmente.

Se o campo econômico não apresentar uma Reforma da Previdência convincente para o “mercado”, a lua de mel vai acabar muito rapidamente.  A “confiança” dos investidores vai se esvair, e já no início do segundo semestre do próximo ano teremos uma piora considerável nas expectativas econômicas.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao programa de privatizações que Paulo Guedes prometeu executar. Peças importantes na base política de Bolsonaro, dentre elas alguns generais associados ao novo governo, já manifestaram sua oposição à venda de algumas empresas. Paulo Guedes vai ter grande dificuldade de apaziguar o sistema financeiro nesse terreno.

Poderá extinguir ou vender empresas e agências públicas sem grande lucratividade ou abrir concessões privadas em algumas áreas, mas é improvável que atraia investimentos capazes de apontar para uma redução do déficit público com esse tipo de medida. A redução dos cargos comissionados pode também comprometer a eficiência da máquina pública, gerar forte resistência da burocracia, e afetar a qualidade da gestão.

Existe também um descontentamento de setores econômicos importantes com a retórica de Paulo Guedes. A Fiesp tentou deixar a indústria de fora do super-ministério colocado nas mãos do “Chicago Boy”. Os industriais investiram na candidatura de Bolsonaro por causa das promessas de diminuição dos encargos trabalhistas. Mas já perceberam que essa direção do governo não está lá tão garantida. Eles podem ter caído no canto de uma sereia, que lhes mentiu sobre menores impostos mas que promete abrir violentamente o mercado brasileiro para os importados. A indústria brasileira, que vem sofrendo com a arquitetura neoliberal da economia, depende fortemente do protecionismo econômico e do Mercosul, que responde por boa parte de nossa venda de manufaturados.

Se realizar de fato uma abertura comercial, Paulo Guedes pode vir a dar o tiro de misericórdia nos setores industriais sem, no entanto, gerar benefícios concretos para a população. Benéfica ou não, o Brasil perdeu o barco da abertura comercial. O mundo entrou numa era de guerra comercial e de protecionismo. A abertura comercial pode destruir a indústria, fazendo com a que a Fiesp pague o pato. Mas promete também colocar o Brasil na contramão do que está sendo realizado pelas principais potências, inclusive o governo de Trump, que inspira os sonhos de Bolsonaro.

O segundo campo, um pouco mais próximo das raízes do pensamento de Bolsonaro, reúne os agrupamentos que representam, em algum grau, a base social popular responsável pela vitória do candidato do PSL. A imprensa se refere a eles por meio dos apelidos de “bancadas da bala”, “da Bíblia” etc. Esses setores foram atraídos por causa da militância de Bolsonaro contra as pautas identitárias que chamo de pós-modernas, como é o caso do lobby LGBT, e por sua defesa de pautas consideradas importante pela moralidade do “homem comum”. São evangélicos, anti-feministas, opositores do chamado “gayzismo”, representantes em graus variados do conservadorismo moral da população. Também fazem parte desse campo os agentes de tendência liberal que identificam essas pautas identitárias com uma suposta doutrinação comunista ou esquerdista realizada nas escolas e nas universidades. São também propositores de um endurecimento da legislação penal e do combate incisivo contra a criminalidade nas grandes cidades, além da derrubada do Estatuto do Desarmamento, que restringe fortemente a posse e o porte de armas no país.


Esse vetor é um dos mais importantes para a manutenção da popularidade imediata do Presidente eleito. É provável que Bolsonaro invista imediatamente nessa direção como forma de compensar a pauta impopular da Reforma da Previdência. Seria uma maneira de manter sua militância inflamada nas redes sociais. O confronto contra a comunidade acadêmica, a patrulha de professores no ensino de base, a redução da maioridade penal, mudanças no regime penitenciário, atendimento das reivindicações das lideranças religiosas e outras medidas serão usadas como forma de mobilizar essa base eleitoral.

Existe um grande potencial pra Bolsonaro nesse terreno. Se ele for competente na manutenção de determinadas promessas feitas às classes populares, pode garantir ao governo fôlego mesmo se fracassar em outras áreas. Embora a mobilização desses grupos supra-partidários não garanta a governabilidade do dia a dia, ela é a verdadeira teia de ligação de Bolsonaro com sua massa, quando o encaramos como um líder popular.

Sérgio Moro, que se tornou herói popular por conta de sua agência anti-corrupção, pode ser um grande aliado de Bolsonaro nesse campo. A República de Curitiba chegou ao poder nesse governo, e pode continuar usando o aparato da Polícia Federal e do Ministério Público para preencher as manchetes de notícias de caça a corruptos, principalmente adversários políticos. A oposição petista deve continuar sofrendo e sangrando com Sérgio Moro no Ministério da Justiça, para dar um exemplo.

Se Bolsonaro investir nessa direção, deve gerar conflitos tanto com a comunidade acadêmica quanto com gangues criminosas que dominam os presídios e favelas do país. Esses conflitos podem paralisar o governo, se ele se intimidar ou não demonstrar competência para sustá-los ou no mínimo gerenciá-los; mas podem também aumentar a popularidade do governo, angariando apoio da população para medidas autoritárias. Imaginemos um conjunto de rebeliões do PCC e do CV no sistema penitenciário.  O capital político do governo pode derreter diante das críticas, do medo e da hesitação; mas pode se fortalecer se a população comprar uma narrativa de guerra, de “vai ou racha”, e vislumbrar em Bolsonaro uma disposição de enfrentamento.

É bom repetir, no entanto, que essa mobilização de suas bases sociais e das bancadas que as representam não resolve o problema da governabilidade. Uma das promessas que Bolsonaro parece querer cumprir é a de não lotear os cargos públicos. Ele quer o fim do presidencialismo de coalizão consolidado no país por Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e que consiste no “toma-lá, dá-cá”. Ou seja, troca de votos no Congresso por redes clientelistas na máquina pública. A mudança no relacionamento entre o Executivo e o Legislativo foi vendida durante a campanha como um meio de combate contra o sistema corrupto que teria se apoderado da Nova República.

Falamos aqui de um tema importante para a base social e popular de Jair Bolsonaro, e ao mesmo tempo uma provável fonte de dores de cabeça para o novo governo. Só três presidentes tentaram mudar seriamente o padrão de relacionamento com o Parlamento vigente na Nova República. O primeiro foi Fernando Collor de Mello, que pagou a ousadia com um impeachment. O segundo foi o primeiro governo de Lula, que em vez de cargos estabeleceu uma mesada para congressistas – o famoso Mensalão --, e por isso quase chegou ao fim ainda no segundo ano de seu mandato. O terceiro foi Dilma Roussef, que brigada com Eduardo Cunha e com o “Centrão” não conseguiu sequer um terço de votos na Câmara para colocar fim ao processo de impeachment que vinha sofrendo.

Bolsonaro promete contornar essa questão apelando para uma espécie de “política dos governadores”. Sabendo que os Estados estão falidos, que quase todos eles precisam renegociar dívidas com a União, o Presidente eleito pretende trocar apoio a essas demandas por votos das bancadas estaduais no Congresso. Essa nova política dos governadores pode vir a funcionar no início do próximo ano, quando os novos eleitos vão estar com o pires na mão e o Presidente no ápice de sua popularidade. A partir do segundo semestre, porém, pode se tornar um mecanismo insuficiente para garantir a governabilidade, jogando o governo mais uma vez em uma encruzilhada.


[continua]

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