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PARTE I - A CRISE DA NOVA REPÚBLICA ''PAULISTOCÊNTRICA''
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Caros camaradas,
Muitos
de nós se surpreenderam com a maneira como o processo eleitoral desse ano se
desenrolou. Há pouco mais de um ano, as possibilidades de Bolsonaro vencer o
pleito não pareciam tão grandes. Não que àquela altura ele já não demonstrasse
competitividade ou uma base eleitoral cada vez mais sólida. Mas existiam
obstáculos até então considerados insuperáveis para o sucesso da candidatura de
Bolsonaro ou de qualquer outro pretendente.
Por
exemplo:
As
expressões retóricas algo caricatas e em desacordo com os padrões de moralidade
e costumes veiculados pela grande mídia; a predileção do sistema financeiro –
aquele conjunto de agentes ao qual costumamos nos referir, de maneira um tanto
impessoal, como “o mercado” --, a predileção do sistema financeiro, dizia eu,
por outros candidatos, como era o caso do representante da direita
centro-liberal Geraldo Alckmin, partido preferido dos grandes grupos econômicos
sediados em São Paulo, ou ainda Marina Silva – candidata social-liberal que
apresentava uma equipe econômica recheada de nomes fortes no governo de
Fernando Henrique Cardoso; a ausência de uma máquina partidária poderosa capaz
de angariar palanques e votos nas periferias das grandes metrópoles ou nas
cidades do interior; e a escassez de tempo no rádio e na TV, considerados
essenciais em uma campanha que prometia ser curta.
Todos
esses empecilhos aparentemente intransponíveis foram vencidos de modo
impressionante. Bolsonaro venceu sem precisar nem mesmo fazer campanha,
impossibilitado que estava pela facada recebida em Juiz de Fora.
Como
isso foi possível?
As
condições indicam um afrouxamento dos mecanismos que até então mantinham o
processo democrático sob o controle de grupos que costumo chamar de “paulistocêntricos”.
Durante a existência da Nova República, houve um domínio dos grupos
intelectuais, midiáticos, econômicos e sociais cuja base de difusão é a capital
paulista. Os dois principais representantes dessas forças no sistema partidário
eram o PSDB e o PT, que polarizavam as eleições presidenciais desde 1994.
Essa
polarização e as diferenças entre PT e PSDB em alguns âmbitos não afetavam a
convergência de fundo. Os dois partidos manifestavam um consenso mais amplo cujas
principais forças tinham São Paulo por base. As divergências, por importantes
que pudessem parecer, não pareciam arranhar os fundamentos básicos do sistema
político hegemônico.
Leonel
Brizola, líder trabalhista herdeiro do getulismo, já apontava para a
coincidência do projeto de PT e PSDB ainda em 1994, em um momento em que poucos
de nós enxergavam a semelhança estrutural da perspectiva dos dois partidos. Em
entrevista ao programa Roda Viva naquele ano, Brizola declarou que Lula e
Fernando Henrique estavam se acotovelando para poderem realizar o mesmíssimo
programa neoliberal. Houve quem se assustasse com esse veredito. Afinal,
tratava-se de um partido social democrata com uma ala desenvolvimentista
poderosa, e de um partido trabalhista tido por muitos como socialista. Como
podiam ser chamados de neoliberais? Brizola explicava de maneira sucinta: “Lula vem por baixo, Fernando Henrique vem
por cima”, mas os dois tem o mesmo desenho: “quando chega nos PhDs, todos ficam
iguais”.
O
líder pedetista chamava atenção para a uniformidade básica de pensamento dos
intelectuais que conduziam os dois partidos hegemônicos. Eram acadêmicos da
USP, talhados na sociologia de Sérgio Buarque de Hollanda e em teorias de desenvolvimento
econômico dependente; influenciados pela esquerda social-liberal europeia e com
sua agenda de apoio a identidades pós-modernas [que é como chamo o movimento
feminista radical, a ideologia de gênero, o movimento LGBT, a militância
abortista etc.]; comprometidos com a arquitetura econômica neoliberal
propagandeada pelo consenso de Washington e que implicava na subordinação da
esfera produtiva à rentista; e que possuíam uma intenção clara de
“ocidentalização” do Brasil.
De
fato, os governos do PT e do PSDB, apesar de divergências, não fugiram desse
script. Foram zelosos na manutenção do tripé macroeconômico criado por Armínio
Fraga; zelosos na “financeirização da economia”, que se tornou refém de um
cartel de bancos e atrelada à rolagem de uma dívida pública muito suspeita;
executores de reformas graduais na Previdência Social e de uma flexibilização,
também gradual, dos direitos trabalhistas.
Esse
arcabouço político que dominava a Nova República, e que estou chamando aqui de
“paulistocentrismo”, não estava isento, porém, de graves contradições. As bases
sociais dos dois partidos impossibilitavam qualquer radicalismo na execução do
projeto neoliberal e “ocidentalizante”. Ele tinha de ser, necessariamente,
gradual e repleto de concessões. Em um cenário de acirramento do conflito
geopolítico e de crise econômica internacional, essas contradições e esse
gradualismo deram oportunidade para que forças, de origens diversas,
derrubassem a ordem estabelecida.
Entender
as linhas de forças envolvidas na queda do sistema “paulistocêntrico” vai nos
ajudar a compreender pontos chaves do governo Jair Bolsonaro.
O
cenário internacional mudou muito rapidamente na última década. Uma crise
econômica em 2008 abalou o sistema financeiro global, afetando primeiro os
Estados, depois a Europa e, a partir de 2013, os países “emergentes”, aqueles
que dependiam mais da exportação de commodities.
Houve
também uma intensificação da disputa geopolítica. Os Estados Unidos encontram
os limites de sua ação globalista e passaram a conviver com a expansão de novas
potências. A Rússia reagiu à tentativa da OTAN em invadir o espaço
pós-soviético. E a China projeta cada vez mais seu poder para fora da Ásia, com
investimentos e parcerias econômicas e militares na África e até mesmo na
América do Sul.
A
reação estadunidense levou a uma série de tentativas de mudanças de regimes e
de guerras: A partir de 2011 surgiram as “primaveras árabes”, a guerra na Síria
e a guerra na Ucrânia. Associadas a problemas internos e condições específicas
de cada uma dessas regiões, todos esses movimentos receberam algum grau maior
ou menor de ingerência dos Estados Unidos.
Em
meio ao furor da execução da estratégia nacional americana, o Brasil se tornou
alvo de um imenso esquema de espionagem revelado pelo Wikileaks. Milhões de e-mails brasileiros foram devassados,
políticos, assessores presidenciais, executivos das principais estatais e
inclusive a Presidente da República foram grampeados e monitorados. O Brasil se
tornou um dos principais alvos da espionagem americana em 2013, segundo os
documentos confidenciais vazados pela wikileaks.
No
mesmo ano, passamos por uma série de mobilizações populares, iniciadas com as
“jornadas de junho”. Nascidas de uma manifestação contra o aumento do preço da
passagem de ônibus em São Paulo, logo desembocaram em protestos maciços com reivindicações
difusas. Diante da estupefação do governo, essas manifestações possibilitaram
algumas movimentações importantes dentro do espectro político. Elas estabeleceram uma narrativa
anti-corrupção, de imenso repúdio aos principais partidos. Foi ali também que a
grande mídia se mobilizou para vetar a PEC 37, um projeto que limitava o poder
de investigação à Polícia Federal e à Polícia Civil dos Estados. Procuradores
do Ministério Público e as grandes empresas de informação aproveitaram-se dos
enormes protestos populares para barrar essa emenda de forma definitiva. Em 25
de junho de 2013, a PEC foi rejeitada com 430 votos contrários e apenas nove favoráveis.
Essa aliança entre o Ministério Público e a
grande mídia já prefigurava a República de Curitiba que surgiria pouco tempo
depois. Sem aquela vitória, possibilitada pelas “jornadas de junho”, a Operação
Lava Jato não teria sido possível. Essa Operação, em que pese seus méritos e
deméritos, foi conduzida por procuradores e juízes com grande proximidade
intelectual, ideológica, pessoal e profissional com os Estados Unidos da
América. Parte da operação foi viabilizada por trocas de informações com o
Departamento de Estado americano, o mesmo país que espionou maciçamente o
Brasil no período, espionou e-mails de cidadãos brasileiros, executivos de
estatais, políticos e, vejam vocês, a Petrobras.
Notem
que não estou afirmando aqui que os esquemas de corrupção trazidos à baila pela
Força-Tarefa da Lava Jato não existiam, que os políticos são inocentes ou que a
luta contra a corrupção não é uma necessidade. Tampouco estou afirmando que os
líderes da Força-Tarefa da Lava Jato estão no bolso da CIA. Não há evidências
concretas disso. Mas elas tampouco são necessárias. Basta analisarmos as linhas
de força por trás de todos esses eventos da política nacional para notarmos um
crescente fortalecimento de grupos ligados de diversas maneiras aos Estados
Unidos da América.
Em
2015, matérias jornalísticas noticiavam o apoio do Atlas Network a organizações
brasileiras. O Atlas Network é um think
tank liberal que tem entre seus
financiadores os irmãos Koch, bilionários americanos do setor de petróleo e
gás. O Instituto Millenium foi uma dessas organizações financiadas. Um dos seus
fundadores, o economista Paulo Guedes, treinado na escola de economia de
Chicago, uma das bases do neoliberalismo militante, se tornou peça fundamental
na ascensão de Jair Bolsonaro, como veremos a seguir.
Sem
pretender me tornar cansativo, esses indícios estabelecem uma chave de leitura
fundamental para o nosso tema de hoje. Eles apontam, de maneira muito clara, no
meu entendimento, que a crise econômica e política brasileira levou a um ambiente
propício para uma intervenção de agentes internacionais e nacionais
interessados em realizar um choque neoliberal no Brasil e em realinhar o país
aos Estados Unidos em meio aos conflitos geopolíticos do momento.
Este
é um ponto que considero fundamental: a vitória de Jair Bolsonaro se tornou
possível porque a República “paulistocêntrica” foi abalada. Esses abalos, por
sua vez, se deveram a facções estrangeiras e brasileiras que se uniam em prol
do neoliberalismo e do filo-americanismo em uma época de acirramento do
conflito geopolítico global.
Eis
aí a urdidura que podemos vislumbrar em meio aos golpes que, gradualmente,
solaparam as bases de poder do PT e do PSDB, desacreditaram o sistema
partidário, desmontaram a autoridade das grandes empresas de informação,
criando um clima favorável a uma política voltada para a radicalização da
americanização, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, “ocidentalização”
do Brasil.
[continua]
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