quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

OS 10 MAIORES JOGADORES DA HISTÓRIA, NÚMERO 6: MANÉ GARRINCHA

 A chave para que se conviva bem com o paradoxo de Garrincha está em uma declaração de Tostão. Ao falar dos melhores jogadores brasileiros depois de Pelé, ele confessou que sempre ficava em dúvida entre Zico, Ronaldo e Romário. E depois emendou, ''e Garrincha, mas Garrincha era um caso à parte''. Ele representa uma completude e perfeição diferente da camisa 10 de Pelé: duas perfeições distintas, que quando unidas permaneceram invictas na seleção brasileira




NÚMERO 6: MANÉ GARRINCHA



Uma das características dos grandes gênios é a capacidade de atuarem numa área mais ampla do campo, e daí a profusão de meio campistas ou meia-atacantes entre eles. A qualidade da armação, do passe, da criatividade, da movimentação, do controle do ritmo do jogo e da infiltração mortífera na área são as marcas do craque diferenciado. Como explicar então a presença de Mané nesta posição da lista, um atleta que atuava numa faixa mais restrita, do lado do campo, driblando e cruzando da ponta direita, sem se destacar também pelo número de gols? Há um grande mistério neste caso.

A chave para que se conviva bem com o paradoxo de Garrincha está em uma declaração de Tostão. Ao falar dos melhores jogadores brasileiros depois de Pelé, ele confessou que sempre ficava em dúvida entre Zico, Ronaldo e Romário. E depois emendou, ''e Garrincha, mas Garrincha era um caso à parte''.

A via para o enigma consiste em aceitar que Garrincha é um caso à parte, que não pode ser compreendido por análises, critérios, hierarquias rígidas e calcificadas, assim como um drible não será nunca reduzido à sua eficiência ou funcionalidade para equipe -- ainda que a tenha.

O drible desmonta esquemas: fator de instabilidade, de improviso, abre o rol das possibilidades ordenadas, cercadas e catalogadas por táticos e estrategistas. Mas é também um chamado ao duelo individual, ao confronto direto tendo o sol nos pés, que causa expectativa quando se apresenta e furor e êxtase quando se resolve. Acrescente a isso sua natureza pueril, moleque, de brincadeira, de coisa arteira.

E o drible é orgulho porque também humilha o adversário, sua travessura é marca de desrespeito aos limites e também de superioridade patente. É a magia mais venerada pelo antigo Maracanã -- junto àquela do gol --, e também o espírito mais conhecido do futebol brasileiro.

Foi com essa magia que Garrincha conquistou passagem no Botafogo, e não com um gol ou um passe eficiente: ele meteu a bola pelo meio das pernas de Nílton Santos, que nunca havia tomado um ''ovinho'' em toda sua vida. Aquele que foi chamado de "Enciclopédia do Futebol" na Era de Ouro do futebol brasileiro intercedeu com os dirigentes, garantindo que o mago Garrincha devia ser contratado de qualquer maneira, mesmo que sua evidente deficiência física parecesse, em um primeiro olhar, incapacitá-lo para o esporte.

Foi o drible que o tornou um deus de estirpe diferente da de Pelé, e tão adorado pela população brasileira quanto o Rei. ''Alegria do Povo'', ''Anjo das pernas tortas'', que chamava todo e qualquer marcador de ''João'', que no momento crucial de sua consagração na Copa de 1962, a chamou de ''campeonato mixuruca'', brincando com a rapidez do torneio e dizendo que ''o campeonato carioca era mais difícil''.

É nesse sentido que se entende a posição de Garrincha na lista. Ele representa uma completude e perfeição diferente da camisa 10 de Pelé: duas perfeições distintas, que quando unidas permaneceram invictas na seleção brasileira, que nunca saiu derrotada de campo quando os dois foram escalados juntos.

Mané era uma expressão do malandro e do ingênuo no brasileiro. Criança vitimada por pólio na infância, vinda do interior fluminense para a capital do país, não podemos dizer que era profissional no sentido estrito do termo: gostava de farras, bebidas e garotas de fama dúbia. Assinava contratos em branco, jogava com injeções, faltava aos treinos.

É difícil visualizar o poder e fascínio que essa mistura era capaz de exercer no gramado. Um jornalista francês declarou certa feita que Mané havia sido o jogador mais sensacional que havia visto jogar, que chegou a presenciar um lateral na Copa do Mundo andando pra trás diante dele, de tanto temor do drible -- naquela postura que nós 'peladeiros' descrevemos como "matando barata com os pés'', e que demonstra que o marcador está em dificuldades diante de seu oponente --, até sair pateticamente do gramado. O mesmo temor que fez Gérson brigar com o Flamengo, clube que o formou, depois de ter sido escalado para marcar o ponta do Botafogo em um clássico no Maracanã. ''Estão querendo acabar com minha carreira'', esbravejou o Canhotinha de Ouro.

Era um mágica da qual seus colegas de time possuíam plena consciência. Depois que a seleção tomou o primeiro gol da partida na final contra a Suécia, em 1958, Didi pegou a bola na rede brasileira e foi andando com ela debaixo do braço, dando uma bronca em todo o escrete. O time estava nervoso, intimidado pelos anfitriões e pelo momento histórico. Mas não foi a bronca que resolveu o problema, como o próprio meia e melhor jogador daquela Copa confessou mais tarde. Didi disse que durante o caminho entre a área e o meio campo, em que daria uma nova saída para o jogo, ele só tinha uma ideia na mente para recuperar a confiança da equipe: ''eu só pensava em pegar a bola e lançar o Garrincha na direita''. Vejam as imagens, foi exatamente o que ele fez.


Didi repetia ali a estratégia elaborada pelo técnico Vicente Feola no jogo decisivo na fase de grupos, contra a União Soviética. Diziam que a equipe eurasiática era uma máquina de futebol científico que pararia o Brasil. Feola chamou Didi no canto e explicou que a seleção focaria o jogo em Garrincha nos primeiros minutos. A intenção era óbvia, desmoralizar o adversário, encurralá-lo mentalmente por meio dos dribles de Mané. A exibição de Garrincha nos cinco primeiro minutos do jogo contra os soviéticos é considerada pela imprensa mundial um verdadeiro primor. Um ciclone, uma tsunami se abateu sobre os apavorados soviéticos, que presenciaram em um curto espaço de tempo toda a magia de Garrincha driblando, chutando bola na trave, e fazendo cruzamento para gols de Vavá. André Lerond, lateral esquerdo francês que marcou Garrincha na semifinal de 1958, concedeu entrevista a um jornal brasileiro nos anos 1990 expressando o mesmo sentimento: para um defensor, enfrentar Garrincha inspirado era como descer aos infernos por 90 longos minutos. Ao lado de Didi, Pelé e Nílton Santos, Mané foi eleito para a seleção daquela Copa. Mas o melhor ainda estava por vir.


O mesmo poder mágico se manifestou para o ''English Team'' nas quartas de final da Copa seguinte, no Chile. Mané estraçalhou com o jogo, os ingleses simplesmente não conseguiam encontrá-lo, pará-lo, marcá-lo. Ele driblava um inglês, e outro, e outro; a cobertura chegava, os ingleses voltavam, só para serem driblados de novo e de novo. Ele mostrou que o Brasil era superior aos demais mesmo jogando sem o maior da história em campo, pois Pelé estava machucado. Deu outro significado ao termo 'recital', a tal ponto que o técnico inglês resumiu para a imprensa de seu país a razão da queda da Albion diante do ''escrete de ouro'' brazuca: ''Eles tem Garrincha, nós não''. Aquela exibição de Mané é considerada por muitos como a maior de um atleta em uma partida de Copa do Mundo.


Conclusão semelhante a do próprio Nílton Santos, que certa feita declarou sobre a conquista de 1962: ''essa Copa eu não ganhei, foi o Garrincha que ganhou pra mim." Teríamos de esperar 1986, o ano de Maradona, para ver um atleta jogar mais em um Mundial do que Garrincha no Chile. Sem Garrincha, é provável que o Brasil não tivesse passado sequer pela fase de grupos. Teria sido eliminado pela Espanha.


Expulso na semifinal do Mundial por ter dado um pontapé debochado no traseiro de um jogador da equipe adversária -- um verdadeiro ''pé na bunda'' --, o camisa número 7 acabou jogando a decisão porque dirigentes brasileiros fizeram sumir a súmula do árbitro. A FIFA deixou rolar. Ninguém reclamou. Ninguém queria nem se arriscaria retirar aquela força do outro mundo, aquele sujeito com um sexto sentido, da final de uma Copa. Alegria do Povo, e de todo e qualquer Povo, de fato. Os jornais chilenos não reclamaram, preferiam se perguntar nas manchetes: "De que planeta veio Garrincha?" E assim, Mané se tornou o primeiro a ser, em um mesmo Mundial, campeão, artilheiro e eleito o melhor jogador. Um feito que só foi repetido pelo argentino Mario Kempes, em 1978; e pelo italiano Paolo Rossi, em 1982.


Sua vida não esteve imune à tragédia, exposta de modo doloroso em público. Foi marcado pela separação da primeira mulher e de seu romance com Elza Soares, mulher que a torcida culpou pela decadência do astro, como se ela fosse uma Lilith a se aproveitar da inocência adâmica, levando-a à Queda.

Mas ainda que aparentemente derrotado pelo álcool e pela idade, pela esperteza dos que se aproveitaram de seu auge, pelas ''infiltrações'' de uma interessada medicina esportiva, pela perda de velocidade que tornava cada vez mais inócua a travessura de seu drible, o Anjo das pernas tortas nunca deixou o coração dos brasileiros, e nenhum golpe mundano pôde jamais desvincular sua imagem do sorriso.


Sua carreira em clubes não goza de menos mágica, embora não seja recheada dos grandes troféus por ter enfrentado o Santos de Pelé em seu absoluto auge técnico e atlético. Ainda assim, muito da mística e do perene reconhecimento que o Botafogo tem dentro e, principalmente, fora do Brasil se deve às atuações de seu camisa 7. Tive um conhecido gaúcho, nascido na Argentina, e botafoguense de coração, que me explicou certa feita seu amor pela equipe de General Severiano: "é o time da Estrela Solitária", me disse apontando o escudo, "e essa Estrela Solitária é, ao mesmo tempo, Garrincha".


Eis o mistério e o espírito do Maracanã. Eis a alma do nosso futebol. O futebol moleque. O futebol de Garrincha.

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