terça-feira, 26 de abril de 2016

A queda do PT -- Parte I: A ''Oligarquia Financeirizada'' e o projeto liberal

No post anterior, introdução a uma análise sobre a queda de Dilma Rousseff, enfatizei o ativismo perene da classe média tradicional contra qualquer governo de esquerda que coloque em risco seu status. Pretendo agora incluir no panorama o papel das principais frações das classes industrial e financeira no movimento que clama pelo impeachment da Presidente. Mas é necessário fazer antes um adendo ao texto anterior.


Lula discursa na Avenida Paulista -- luta contra o impeachment ganha as ruas



Pode ser difícil para certos olhares desacostumados ao cenário brasileiro entenderem certas posições da classe média do país, que possui particularidades que a diferenciam e particularizam em relação às suas congêneres europeias. Esse estrato social nasceu primordialmente da decadência de famílias tradicionais [1]. Sua ideologia é formatada por essa origem oligárquica, latifundiária e senhorial. Acostumada ao exercício das chamadas profissões liberais e monopolizando as principais carreiras do alto funcionalismo público, a classe média cresceu e sobreviveu à sombra da elite econômica, da qual sempre se viu, em algum grau, como integrante. Seu ideário e formação consolidou uma auto-representação em torno de certos elementos identitários que a diferenciam das camadas populares, e seus membros lutam ferrenha e continuamente pela reprodução dessas distinções [2]. Daí se entende seu ódio militante a qualquer ameaça a esses traços fundamentais para sua expressão social, e que não são de forma alguma apenas econômicos [3].


A Classe Média ''Senhorial'' em protesto contra o governo Dilma


 Os protestos e discursos da classe média nas ruas, rádios, TVs, Internet e nos novos movimentos de matiz liberal criados nos últimos anos [4] deram suporte à ação de outras camadas sociais importantes. No arco de apoio ao impeachment de Dilma destaca-se a FIESP, principal federação de indústrias do país, que não só se declarou favorável à deposição da presidente como também financiou e participou ativamente da propaganda e mobilização contra o PT [5]. A posição da indústria deve ser entendida tendo como pano de fundo a 'financeirização' da economia brasileira, que se consolidou durante o governo tucano e a gestão de Armínio Fraga no Banco Central; uma expressão da 'mundialização financeira', vinculada por sua vez à globalização impulsionada pelo Consenso de Washington.


A Globalização Financeira diz respeito, grosso modo, a um novo patamar de disseminação e realização do capitalismo, voltado agora para a apropriação rentista-patrimonialista em âmbito mundial, e que se distingue das etapas anteriores pela efetiva dominância de uma oligarquia financeira sobre o processo de valorização, que acaba se sobrepondo, regulando e contaminando a esfera produtiva [6]. Nos países europeus, a financeirização da economia teve, dentre outras consequências, a concentração funcional da renda com prejuízo dos salários, a hegemonia dos agentes rentistas nacionais e internacionais no bloco de poder dominante na sociedade, e a redução estrutural das taxas de crescimento econômico com aumento explosivo do desemprego. As taxas de desemprego e as influências dos grupos rentistas sobre a política econômica possibilitaram o fortalecimento do discurso e da agenda liberal, voltada para a redução do Estado, o corte de investimentos sociais e a flexibilização das leis de proteção ao trabalho [7].


As diferenças brutais nas taxas de lucro impulsionaram a ''financeirização usurária'' no Brasil

No Brasil, o processo de financeirização possuiu particularidades ainda mais deletérias. Ele se inicia com a ''crise da dívida'', na década de 1980, tomando forma em meio a explosão inflacionária e a manutenção de altas taxas de juros pelo Banco Central, vista como imprescindível para a rolagem da dívida pública. Mas só se consolida definitivamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, que adotou em definitivo o receituário neoliberal, implementando uma politica monetária restritiva, larga abertura da economia, e um conjunto de privatizações cujos principais beneficiários foram conglomerados financeiros. A própria adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo uso no impeachment de Dilma adquire configurações ainda mais simbólicas, pode ser vista como elemento do arcabouço de dominância financeira ao obrigar o Estado a uma busca contínua por superávits [8]. O mais significativo, no entanto, é que no Brasil o processo vem se caracterizando não apenas pela ampliação dos negócios do capital bancário na esfera produtiva, modelo básico de formação do capital financeiro; e sim pelo envolvimento cada vez maior dos grupos industriais na esfera financeira, movidos pela rentabilidade gigantesca proporcionada pelos ativos que rendem juros. Desse modo, ocorre um processo de financeirização usurária da indústria brasileira, diferente do processo que predominou na Europa e nos Estados Unidos, centrado antes no mercado de capitais. [9]


Essa mudança ajuda a entender o posicionamento dos grandes industriais diante do governo Dilma. O PT buscou desde o primeiro mandato de Lula diminuir o quanto possível os piores efeitos ou a tendência de dominação do capital financeiro sobre a economia brasileira, dentro dos limites estreitos de seu comprometimento com a arquitetura econômica liberal construída no Brasil e com a ''Carta ao Povo Brasileiro''. Adotando uma estratégia gradualista, o governo Lula reduziu a taxa média da Selic, liquidou a dívida ativa com o FMI e adotou políticas anti-cíclicas nos bancos públicos [10]. Essas medidas eram, no entanto, insuficientes e paliativas, e pouco arranhavam as bases herdada de FHC. O governo Dilma explicitou a intenção de romper com essas bases em um cenário em que o modelo de crescimento apoiado na exportações de commodities e expansão do crédito às classes populares havia se esgotado [11], reorientando o país rumo a uma reindustrialização por meio da adoção de um projeto de tendências desenvolvimentistas: a chamada ''nova matriz econômica'', de Guido Mantega. A nova política estava calcada na oferta de subsídios ao setor produtivo, expansão direta dos financiamentos públicos [principalmente às grandes construtoras e ao agronegócio], controles limitados ao capital estrangeiro, taxas de juros preferenciais às indústrias e, principal cabo de batalha do governo, a redução do spread bancário e dos juros por meio da concorrência dos bancos públicos com o setor financeiro privado [12].

Taxa de financeirização e investimento decrescente na esfera produtiva


Essas medidas, em tese benéficas para a indústria, geraram profunda reação dos agentes financistas e da classe média tradicional, repercutida pela mídia como uma resistência ao ''estatismo'' e ao ''descalabro com as contas públicas''. Na medida em que a crise econômica se alongava no país, a ''nova matriz econômica'' foi gradualmente abandonada até a definitiva capitulação com o aumento brutal da taxa Selic em 2013. A cúpula da indústria e de modo geral do setor produtivo brasileiro estava imbricada o suficiente com o ''capitalismo financeirizado'' para ver no ensaio desenvolvimentista de Dilma Rousseff uma saída para os problemas econômicos. A FIESP centrou seu discurso de combate à crise na exigência cada vez maior de medidas recessivas de corte liberal, redução de gastos governamentais, e, principalmente, de flexibilização da legislação trabalhista [13] -- uma regressão ao discurso predominante nos anos de domínio do PSDB mas agora com um agência politicamente mais agressiva. A ressurreição do neoliberalismo brasileiro é acompanhada também por um plano de redução do número de servidores por meio da restrição ou até mesmo abolição dos concursos públicos, que já vem sendo ensaiada em alguns Estados [14].


O prédio da FIESP enfeitado se torna ''a casa do impeachment'' -- A organização dos empresários chegou a distribuir filé mignon aos manifestantes


Desse modo, as principais organizações do setor produtivo brasileiro se uniram ao coro da classe média tradicional e formaram fileiras com o setor financeiro, do qual se distinguem cada vez menos. O governo demonstrou inapetência política ao confiar até o último momento no apoio dessa fração de classe quando tentou redesenhar o panorama econômico do país, e persistiu no erro até o final, abrindo cada vez mais concessões à demanda da indústria pelo desmonte de direitos trabalhistas, alienando assim aquela que seria sua base natural e histórica de apoio. Mas esses equívocos do PT, muitos mais graves na esfera política do que na econômica, não são os únicos vetores presentes no arco de forças responsável pelo impeachment de Dilma Rousseff. Os jornais que circulavam ontem davam conta da possível entrada de José Serra no Ministério que vem sendo costurado por Michel Temer [15]. Serra, um dos nomes mais fortes do PSDB paulista e um dos articuladores da queda do governo, apresentou no ano passado um projeto de lei que tem por consequência a entrega das reservas brasileiras do Pré-Sal às grandes petroleiras internacionais. No próximo texto vou me dedicar a explorar alguns meandros associados aos escândalos do ''Petrolão'' e alguns dos embates geopolíticos em torno do movimento anti-PT.





[Continua]
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[1] O que não nega de forma alguma que a classe média tradicional visa se espelhar em suas congêneres europeias e norte-americanas. Pelo contrário, o sentimento comum nesse meio é o de fazer parte de uma cultura cosmopolita de teor ocidental vivendo exilada em meio a um povo bárbaro cuja presença suporta estoicamente.

[2] Um exemplo é o discurso elaborado pela classe média tradicional em torno do elemento ''educação''. O monopólio de certo grau de educação em meio a um ideal distorcido de ''República de letrados'' é um dos fios condutores da agência política desse grupo social. Durante boa parte da História da República, a classe média foi fanaticamente contrária ao voto dos analfabetos, e se exacerbava contra as eleições decididas pelo voto de camadas mais populares e proletárias, que deram suporte político ao trabalhismo varguista e agora ao ''lulismo''. Há sinais curiosos de continuidade do apego a esse elemento diacrítico no discursos dos seguidores diretos e indiretos de Olavo de Carvalho -- pensador influente na classe média e entre liberais, e que conferiu certa aparência de respeitabilidade intelectual aos interesses desses grupos quando do início das vitórias eleitorais do PT. Segundo os dito cujos, as universidades brasileiras estão decadentes e são um antro de ignorantes dominados pela esquerda -- um diagnóstico que pode estar ligado à percepção da maior democratização do acesso ao ensino superior a partir dos anos 1990 --, e eles sim são o embrião de uma nova ''elite'' que restauraria a alta cultura nacional. É notória a confusão nesse meio entre ''alta cultura'' e ''pautas sociais liberais''.

[3] Ou seja, não se deve confundir a classe média tradicional com camadas populares enriquecidas ou ''remediadas''.

[4] O 'Movimento Brasil Livre' [MBL], o 'Vem pra Rua', o 'Estudantes pela Liberdade' etc. Esses e outros grupos similares foram auxiliados financeiramente por grandes empresários e por redes de influência que remontam a think tanks conservadores americanos, incluindo aí os Irmãos Koch, que estão entre alguns dos maiores financiadores do Partido Republicano dos Estados Unidos e são grandes especuladores no mercado do petróleo -- fato cujo significado se tornará mais claro no próximo texto dessa série.

[5] ''O sinal mais claro e recente foi dado pela Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) que, em representação de centenas de entidades da indústria, comércio, serviços e agricultura, ocupou nesta terça-feira os principais jornais do país com uma ostensiva campanha publicitária. Os lemas ''Impeachment já'' e “Chega de pagar o pato” imprimiram-se em 14 rodapés de página que chegaram às bancas de todo o país e apareceram no fundo da tela de um jornal brasileiro. A ofensiva de marketing soma-se à onda de campanhas anti-Governo que a federação já vinha patrocinando há meses e simboliza a mudança de postura dos empresários paulistas que apostam hoje, não pela renúncia de Dilma Rousseff, e sim por pressionar deputados e senadores para que priorizem o impeachment da presidenta''[FIESP financia campanha pelo impeachment]. Veja também: ''A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) ofereceu um almoço nesta quinta-feira a manifestantes pró-impeachment que pernoitaram na avenida Paulista. No cardápio estão filé mignon, massa, salada, torta, purê e arroz. A assessoria de imprensa da Fiesp afirmou que o almoço é para lideranças dos grupos pró-impeachment e disse que entidade virou a “casa do impeachment de Dilma” [FIESP distribui filé mignon para manifestantes].

[6] Capitalismo financeiro e estado de emergência no Brasil

[7] Finance-Led Growth Regime no Brasil

[8] A justificativa para o impeachment de Dilma Rousseff gira em torno da quebra da Lei de Responsabilidade Fiscal. O compromisso do PT com uma ''gestão fiscal responsável'' foi um dos pontos mais aplaudidos pela grande mídia e pelos grandes bancos na ''Carta ao Povo Brasileiro'', divulgada por Lula em 2002.

[9] As transformações do regime de acumulação do Brasil

[10] O lobby dos bancos no Brasil

[11] O preço dos principais bens primários exportados pelo Brasil caiu em até dois terços em alguns casos. O empréstimo aos consumidores, por sua vez, atingiu o dobro do nível dos demais países sul-americanos.

[12] Segundo o professor André Singer, ''De 2011 a 2012, em iniciativa de audácia inesperada, os desenvolvimentistas invadiram a cidadela sagrada das decisões monetárias e avançaram aos saltos, pressionando instituições privadas para reduzirem os próprios ganhos, com o apoio das divisões pesadas dos bancos públicos e de ousada mudança nas regras da poupança. [...]Além de enfrentar o núcleo duro do capital, a presidente decidiu politizar o tema, o que estava igualmente fora do script lulista. Em fevereiro de 2012, o boletim do Ministério da Fazenda afirma que o spread no Brasil era “elevado na comparação com outras economias”. Destacava que a expectativa era que caísse “devido ao ciclo de queda dos juros” iniciada em agosto do ano anterior. Duas semanas mais tarde, Tombini aumentaria a carga. Em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, declara que a redução do spread era “prioridade de governo” e “determinação” da presidente da República. Não se tratava mais de expectativa genérica inserida em publicação ordinária de ministério. A diminuição dos ganhos por parte dos bancos tornava-se ordem, emanada do topo do poder Executivo. Transmitido por funcionário de alta gradação, o recado não poderia ser mais claro: o Estado se arrogava o direito de intervir na quintessência do capitalismo, a saber, o lucro ''. Veja mais em Cutucando onças com varas curtas

[13] Em meio a campanha eleitoral de 2014, Benjamin Steinbruch, então presidente da FIESP, defendia uma nova regulação das leis trabalhistas e alterações profundas na CLT com um exemplo inusitado: segundo ele, os empregados não precisavam ter a hora de almoço protegida por lei. Afinal, perguntava ele, e se o trabalhador preferisse chegar uma hora mais cedo em casa em vez de almoçar? [https://www.youtube.com/watch?v=E2zN4eB1iCk] A Revista Exame, da Editora Abril -- um dos grupos de mídia do Brasil mais vinculados ao grande negócio --, lamentava em edição do fim de 2015 que Dilma havia desistido da reforma da CLT por pressão das centrais sindicais [Governo retira apoio à flexibilização da CLT]. O caso ilustra, por um lado, a estratégia equivocada adotada por Dilma Rousseff de realizar concessões para reconquistar o apoio perdido da indústria; por outro, os limites dessa estratégia em um cenário de radicalização da militância liberal e de risco de perder o apoio que lhe restava em sua base política histórica.

[14] O Projeto de Lei Complementar 257/16 estabelece uma série de restrições nesse sentido [PLP 257/16]. Destaco:

''Art. 3º A União poderá celebrar os termos aditivos de que trata o art. 1o desta Lei Complementar, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal sancionar e publicar leis que determinem a adoção, durante os 24 meses seguintes à assinatura do termo aditivo, das seguintes medidas:

I – não conceder vantagem, aumento, reajustes ou adequação de remunerações a qualquer título, ressalvadas as decorrentes de atos derivados de sentença judicial e a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição Federal;

II – limitar o crescimento das outras despesas correntes, exceto transferências a Municípios e Pasep, à variação da inflação, aferida anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA ou por outro que venha a substituí-lo;

III – vedar a edição de novas leis ou a criação de programas que concedam ou ampliem incentivo ou benefício de natureza tributária ou financeira;

IV – suspender admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, inclusive por empresas estatais dependentes, por autarquias e por fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, ressalvadas as reposições decorrentes de vacância, aposentadoria ou falecimento de servidores nas áreas de educação, saúde e segurança, bem como as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa, em qualquer caso sendo consideradas apenas as vacâncias ocorridas a partir da data de assinatura do termo aditivo; e

V – reduzir em 10% (dez por cento) a despesa mensal com cargos de livre provimento, em comparação com a do mês de junho de 2014.''




domingo, 24 de abril de 2016

A queda do PT -- Introdução: O ativismo da Classe Média Tradicional

Desde o meu post  mais recente nesse blog, o Brasil pegou fogo e o governo de Dilma Rousseff chegou à beira do abismo. Muitas análises já foram feitas sobre as causas desse processo; mas não posso deixar de dar uma palhinha rápida sobre os eventos que, ao que tudo indica, vão colocar Michel Temer na Presidência da República.
O Juiz Itagiba C. P. Neto, que impediu a posse de Lula na Casa Civil, posa em ato de protesto contra Dilma. Logo depois de conceder a liminar contra o ex-presidente, o juiz excluiu sua conta na rede social Facebook, que se encontrava repleta de apelos pela derrubada do governo.  

Qualquer observador percebe facilmente que o argumento jurídico que sustenta o impeachment é frágil e cumpre o papel de pretexto conveniente. As chamadas ''pedaladas fiscais'' são lugar comum no país, eram realizadas por Fernando Henrique Cardoso e também foram usadas por diversos governadores sem que se cogitasse que fossem crimes contra a Lei de Responsabilidade Fiscal [1]. Ainda que se construa um novo entendimento em torno dessa prática, punir Dilma Rousseff por ela é de uma seletividade que salta aos olhos, mesmo quando se concede que as ''pedaladas'' se enquadram nos crimes de responsabilidade que possibilitariam a abertura do processo de impeachment, uma polêmica viva entre os juristas [2]. Não há dúvidas de que, por si só, esse argumento jamais sustentaria a derrubada de governante algum no Brasil.

Por outro lado, boa parte dos movimentos que juram que as ''pedaladas'' são suficientes para desencadear o processo já se encontravam clamando pela deposição de Dilma desde a vitória petista nas eleições presidenciais de 2014. Alegavam então fraude nas eleições, depois ''estelionato eleitoral'', acusavam o PT de implementar um projeto comunista cujas etapas eram decididas não pela sociedade brasileira mas em instâncias conspiratórias supra-nacionais, como o Foro de São Paulo [3]. Clamavam por uma intervenção militar que expulsaria os comunistas do poder, e eristicamente tentavam mostrar que tal interferência das FFAA não se constituiria em golpe propriamente dito, mas se encontrava prevista pela Constituição -- mais ou menos como fazem agora com o rito de impeachment diante das acusações de distorção e manipulação do processo [4].

A classe média tradicional protesta contra a reeleição de Dilma Rousseff e pede a intervenção das FFAA, jurando que isso nada tinha a ver com um ''golpe''
A repulsa da classe média tradicional ao PT é facilmente compreensível, e não chega na verdade a ser nova. Trata-se da camada social mais infensa a quaisquer mudanças no padrão de relações sociais e políticas que marcam nossa História, aquela que mais tem a perder com uma transformação radical nesse âmbito, e também a que mais vê seu papel na sociedade e o país como um todo por meio de olhos ocidentalizantes. Sua retórica contra o PT é a repaginação de velhos jargões usados durante toda a República para conter os movimentos sociais e paralisar qualquer democratização real, entendida aqui como avanço da participação popular, nas esferas econômica e política. É o grupo que deu sustentação à criminalização dos movimentos operários nas duas primeiras décadas do século passado, ao movimento anti-getulista, à antiga UDN, ao golpe de 1964 e ao governo Castelo Branco, à eleição de Collor e ao período FHC. Foi também um dos setores cujo sentimento anti-comunista foi manipulado pelo gênio político de Vargas quando do fechamento do sistema partidário e parlamentar na década de 1930. Suas pautas liberais são nada mais que um recorte para a defesa de seus privilégios econômicos e sociais, ainda que isso implique em pedir um Estado Mínimo que não passaria de um aparato burocrático cujas principais esferas permaneceriam dominadas quase que exclusivamente por membros de famílias tradicionais decadentes [o que em parte explica o aparelhamento de boa parte da Polícia Federal e do Judiciário por representantes histéricos dessa classe, e da qual Sérgio Moro se tornou símbolo máximo [5]]. Não é surpresa que esse setor social se levante com organização cada vez maior contra o primeiro período de dominância da esquerda desde a deposição de João Goulart. O surpreendente é que tenha demorado tanto a fazê-lo de forma consciente e eficiente em um modelo político partidário e midiático que sempre foi extremamente permeável às suas demandas [6].

O PT pôde sobreviver a essa permanente oposição ideológica no seio da sociedade organizada por uma combinação de gradualismo na implementação de seu programa, carisma de Lula [adorado por boa parte da população mais pobre], e ambiência econômica favorável. O partido fez imensas concessões às forças que se propunha a combater já na campanha de 2002, em que, para dirimir as dúvidas dos principais agentes econômicos quanto a sua chegada no poder, publicou uma ''Carta ao Povo Brasileiro'' se comprometendo a manter as linhas gerais da política econômica de Fernando Henrique Cardoso [7] -- um movimento similar foi realizado anos depois por Dilma Rousseff quando enfrentou acusações de que sua candidatura legalizaria o aborto [8]. No poder, o PT estabeleceu como pilares da economia do país a exportação de commodities, que se encontravam em alta no mercado internacional, e uma ampliação sem paralelos do crédito às classes populares, a quem vendeu a miragem da ascensão social via consumismo [a ''nova classe média''] [9]. A explosão do consumo via crédito consolidou o setor bancário, que já era favorecido pelos juros extorsivos praticados no país, como um dos mais lucrativos do planeta [10]. Com tranquilidade na economia, Lula pôde aumentar investimentos sociais, dos quais o programa Bolsa Família, destinado às classes mais pobres, se tornou um símbolo [11]; diminuir as disparidades regionais com ênfase em investimentos na estrutura econômica e na ampliação da capacidade de consumo do Nordeste [12]; iniciar uma lenta reestruturação das carreiras e da capacidade do Estado -- que haviam sido comprometidas pela reformulação e minimização do funcionalismo público realizado pelo PSDB [13] --; avançar uma pauta de política identitária ao sabor do social-liberalismo e do pós-modernismo [14]; e esboçar uma política externa mais independente e voltada para pautas multipolares, concretizada através da aproximação dos vizinhos sul-americanos, de países africanos e na conformação dos BRICS [15].

Janaína Paschoal transforma palestra na USP em comício e clama por um país de ''mil janaínas''. A magistrada defendia a derrubada da ''República da cobra''.


Cada uma dessas políticas sofreu críticas ferrenhas dos liberais à direita e à esquerda, e também de outros movimentos ou contrários aos objetivos do PT ou incomodados com o ritmo das mudanças propostas pelo governo e com suas concessões na esfera social, econômica, e, depois do escândalo do Mensalão, também político-partidárias [16]. Mas geraram estabilidade o suficiente para que Lula se tornasse um dos presidentes mais populares e bem sucedidos da História da República, capaz inclusive de eleger sua sucessora, uma desconhecida do grande público, sem grande vocação e experiência política, e que não esteve ligada ao PT durante a maior parte de sua militância política [17]. No entanto, os problemas de Rousseff se tornariam cada vez mais insustentáveis com o esgotamento da costura política feita por Lula, a deterioração da ambiência externa, e na medida em que se buscuo suplantar a camisa de força estabelecida pela ''Carta ao Povo Brasileiro'', mudando a arquitetura econômica e enfrentando os grandes rentistas do país em busca de uma política mais desenvolvimentista. As frágeis relações entre o Executivo e um sistema político-partidário parasitário -- em um momento em que a descoberta do Pré-Sal abria oportunidades singulares tanto para o país quanto para aqueles que se acostumaram a usar cargos públicos como meios de enriquecimento ilícito --, bem como o recrudescimento das disputas geopolíticas cobraria um grande preço à tibieza e ausência de aptidão política de Dilma Rousseff. Esse vai ser o assunto da minha próxima postagem.



[Continua]



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[1] Dois exemplos dentre muitos que poderiam ser citados: As pedaladas fiscais e o impeachment e O Governador Alckmin pedala.

[2] Para uma abordagem contrária á configuração das ''pedaladas'' como crime de responsabilidade: Controvérsias do pedido de impeachment

[3] Em uma das principais revistas de direita do país, a VEJA, era comum se colocar em dúvida o resultado das eleições: Eleitor deve desconfiar das eleições. A classe média tradicional saiu às ruas pedindo impeachment tão logo se confirmou a vitória de Dilma no disputado pleito de 2014 Milhares nas ruas contra golpe comunista. Vejam também: ''O organizador de um dos protestos e líder do grupo Revoltados ON LINE, Marcello Reis, afirma que, no próximo sábado, o movimento lançará um documento pedindo o impeachment da presidente. Segundo ele, os apoiadores da causa deverão preencher o documento e anexar uma imagem do título e do comprovante de votação. Os dados, disse Marcello, serão armazenados em um servidor fora do país para "garantir que não haja interferência" do governo. — Eu acho que quem quer dar o golpe é quem é contra (o impeachment). Pelo menos temos o direito de saber se fomos enganados ou não. Vivemos em uma democracia ditatorial — disse'' Manifestações pelo Impeachment em 23 cidades.

[4] Intervenção militar constitucional e Manifestantes pedem intervenção militar contra Dilma. Duas vozes que adquiriram proeminência na ''nova direita'' defendiam abertamente uma intervenção militar que chamavam de ''constitucional'': Olavo de Carvalho e Lobão e a intervenção militar

[5] O cerco ao governo realizado por juízes de primeira instância que posavam de militantes da ''nova direita'' foi uma das marcas mais vexaminosas de todo fio condutor do impeachment. Um exemplo foi Itagiba Catta Preto Neto [Juiz que barrou posse de Lula foi a ato contra Dilma], que concedeu liminar contra a posse de Lula como Ministro da Casa Civil. Ainda mais caricato foi o papelão proporcionado por Janaína Paschoal, uma das juristas comprometidas com a derrubada do governo PT. Paschoal extravasou em meio ao que deveria ser uma palestra na Faculdade de Direito da USP, e que se tornou, no fim das contas, um comício mambembe: Janaína contra a República da cobra. A Operação Lava Jato e o papel de Sérgio Moro merecem destaque mais detalhado a ser realizado nos próximos textos.

[6] O papel da mídia na derrubada de mais um governo de esquerda é um capítulo à parte e que merece ser tratado com maior atenção em postagem futura.


[8] Carta de Dilma sobre o aborto e a liberdade religiosa. O PT construiu uma aliança com grande parte do movimento evangélico e se afastou um tanto de uma das bases originárias do Partido, o catolicismo mais afinado com o discurso da antiga Teologia da Libertação.

[9] Para uma crítica ao conceito de ''nova classe média'' por uma ótica da própria esquerda: Brasil não tem ''nova classe média''


[11] O Bolsa Família possui muitos problemas, e seu uso político é evidente em um país em que as os mais pobres possuem imensa desconfiança do sistema partidário e se relacionam com o poder político através de um assistencialismo imediatista. No entanto, o impacto positivo do mecanismo de transferência de renda é inegável, e ele contribuiu em grande parte para a queda histórica da desigualdade aferida pelo Índice de Gini. Para mais: Efeitos do Bolsa Família e [O Bolsa Família e a queda da desigualdade. Veja também: A queda da desigualdade no país.

[12] Essa é uma das razões para a clivagem regional das últimas eleições, com vitória acachapante de Dilma Rousseff nos Estados do Nordeste. A divisão do mapa de votos em Norte/Sul gerou uma onda de manifestações preconceituosas contra a população nordestina, particularmente em São Paulo. Nordeste cresce acima da média do país e Nordeste cresce de forma sustentável.

[13] Fernando Henrique Cardoso possuía como uma de suas principais propostas a reforma das estruturas básicas do Estado, colocando, em suas próprias palavras ''um fim na Era Vargas'' A busca por um Estado regulador, mais ágil e focado em demandas sociais, foi fortemente influenciada pela hegemonia do discurso liberal que marcou os anos do PSDB no Palácio do Planalto. O Brasil é historicamente um país com um baixo índice de funcionalismo concursado, mas nos oito anos de governo FHC a máquina federal foi sucateada ao extremo: Lula e a contratação de servidores públicos

[14] A política de cotas implementada pelo PT e a proximidade dos movimentos LGBT são dois dos principais exemplos. Cotas no governo PT

[15] ''Do ponto de vista do conteúdo, a diplomacia do governo Lula apresenta uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de busca de alianças privilegiadas no Sul, com ênfase especial nos processos de integração da América do Sul e do Mercosul, com reforço conseqüente deste no plano político. Tudo isso não deve surpreender os observadores mais argutos, pois que essas propostas figuram nos documentos do PT há praticamente vinte anos, por vezes nos mesmos termos e estilo (até na terminologia) que os atualmente proclamados, coincidindo, portanto, com a política externa praticada pelo governo Lula. No que se refere à agenda diplomática propriamente dita, pode ser ressaltada a postura essencialmente crítica assumida em relação à globalização e à abertura comercial, com um maior empenho na reafirmação das posições tradicionais do Brasil em matéria de negociações comerciais (busca de acesso aos mercados dos países desenvolvidos, com a manutenção dos mecanismos que favorecem países em desenvolvimento, não engajamento em demandas de liberalização que possam representar comprometimento do que foi chamado de capacidade nacional de estabelecer políticas nacionais e setoriais de desenvolvimento e de autonomia tecnológica), bem como uma definição contrária - também tradicional no PT - à conhecida "fragilidade financeira externa", com a implementação conseqüente de políticas que permitam a produção de saldos comerciais e não aprofundem a dependência de capitais estrangeiros na frente econômica externa. No plano político, é evidente o projeto de reforçar a capacidade de "intervenção" do Brasil no mundo, a assunção declarada do desejo de ocupar uma cadeira permanente num Conselho de Segurança reformado e a oposição ao unilateralismo ou unipolaridade, com a defesa ativa do multilateralismo e de um maior equilíbrio nas relações internacionais. No plano econômico, trata-se de buscar maior cooperação e integração com países similares (outras potências médias) e vizinhos regionais.'': A política externa do governo Lula

[16] O Mensalão foi em grande parte uma tentativa de líderes do PT de contornarem a exigência dos principais partidos do Congresso por cargos e sinecuras, padrão de relacionamento estabelecido na Nova República após a queda de Fernando Collor de Mello, o que traria para posições chaves do governo um conjunto de políticos patrimonialistas e afinados com o conservadorismo social. Com o escândalo vindo à tona, o governo Lula concedeu ao PMDB seu lugar ao sol. Esse tema será tratado com mais detalhes em postagens futuras.

[17] Dilma Rousseff é uma das fundadoras do PDT, ao qual esteve ligada até 2001.















terça-feira, 17 de novembro de 2015

O sacerdócio que é também feminino, ou; quando alhos são confundidos com bugalhos

O Logos divino, que nasce de uma vez por todas na carne, quer sempre, em Sua compaixão, nascer no espírito daqueles que O desejam. Ele se torna uma criança e se molda neles através das virtudes. Ele revela tanto de Si quanto aquele que O recebe consegue aceitar; Ele não diminui a manifestação de Sua própria grandeza por falta de generosidade mas estima a capacidade de receptividade daqueles que desejam vê-Lo.

São Máximo o Confessor





Primeira postagem do Diácono Marcelo acusando, ainda que sem o saber, o sacerdócio régio de ''culto à deusa mãe''.


Recentemente, o Diácono Marcelo Paiva publicou no seu perfil pessoal e em outra página que administra no Facebook uma crítica a um vídeo que fazia considerações informais sobre alguns aspectos dos ensinamentos da Ortodoxia sobre as mulheres. As críticas mais fortes incidem sobre a afirmação de que as mulheres seriam ''sacerdotisas naturais'' e com a associação entre esse sacerdócio e a capacidade de parir. Essa alegação foi tida como uma informação errada sobre ''as crenças da Igreja'', alheia ao cristianismo, vinculada a cultos pagãos à deusa mãe, e a uma contemplação do ''sagrado feminino'' que, de alguma maneira, repercutiria a heresia da sofiologia. Por fim, é atacada a ideia de que as vestes sacerdotais possam ser de alguma maneira imagens femininas. Os pequenos textos escritos pelo Diácono Marcelo Paiva com o intuito de ''esclarecer'' os fiéis sobre a correta posição ortodoxa estão repletos de erros. O estranhamento que ele sentiu flagra um certo desconhecimento da Ortodoxia e acabam por espalhar equívocos, ainda que possivelmente repletos de boas intenções. Vamos buscar dirimir essa confusão o máximo quanto possível.




1. Toda mulher é naturalmente sacerdotisa



Diácono Marcelo Paiva: ''A mulher NÃO é para a Igreja Ortodoxa natural sacerdotisa. Este é um conceito pagão, vinculado ao culto ''da Grande Deusa''.

A Igreja Ortodoxa faz distinção entre o Sacerdócio Único de Cristo, a Ordenação Sacerdotal recebida pelo Clero e o Sacerdócio Régio e Universal de todos os fiéis e -- na verdade -- de toda pessoa humana. Todo homem, por ser imagem de Deus, é também imagem do sacerdócio de Cristo. Essa característica que pertence ao homem por natureza -- o sacerdócio régio -- foi embotada pela Queda, mas jamais perdida, pois a imagem de Deus no homem não é apagada em virtude do pecado de nossos pais ancestrais. Ela é revivificada no homem por meio dos mistérios da Igreja, do batismo, da eucaristia e do crisma. [1] Esse sacerdócio, que pertence naturalmente a todo homem e toda mulher enquanto imagens divinas, consiste na capacidade que possuímos em algum grau de [co-]criar e transfigurar o mundo. Consiste também na capacidade humana de entregar todas suas energias em sacrifício amoroso a Deus e ao próximo. [2] É de espantar que o Diácono associe o sacerdócio régio ao paganismo em vez de entendê-lo como intrínseco ao homem enquanto tal, conforme ensina a Santa Tradição.

Reafirmando, portanto: toda mulher é naturalmente sacerdotisa, e tal declaração não está vinculada a nenhum culto à deusa mãe, e sim a um princípio de fé básico e fundamental ao cristianismo, o fato de sermos todos nós imagens de Deus. [3]  As mulheres não podem ser ordenadas sacerdotes, como os homens, mas não precisam dessa ordenação para exercerem elas também o sacerdócio que Deus naturalmente lhes conferiu.


O Diácono sentiu necessidade de uma segunda postagem, em que detalha seu entendimento sobre a questão, confundindo-a com paganismo e sofiologia



2. O sacerdócio régio da mulher está vinculado também à maternidade



Diácono Marcelo Paiva: ''Há sim um sacerdócio comum a todos os cristãos, que dado pelo batismo e pela conversão de vida, que faz de todo homem e mulher, anunciadores da Boa Nova. Nada disso diz respeito à capacidade de gerar crianças.''

Como dito no ponto anterior, o sacerdócio comum a todos homens e mulheres é revivificado pelos mistérios da Igreja, mas já está inscrito na natureza humana por sermos imagens divinas. Não me estenderei sobre esse ponto. O importante aqui é a alegação do Diácono de que a maternidade não tem nada a ver com isso. Ora, homens e mulheres são complementares. Eles expressam em sua dimensão sexual -- que não se reduz somente a um órgão do corpo mas se espraia por toda a individualidade -- operações, energias e qualidades próprias. [4]  O sacerdócio régio de uma mulher terá expressões diferentes daquele exercido por um homem. Ao sacrificar a si mesma a Deus, a mulher fará oferta daquelas operações e qualidades que possui enquanto mulher. O potencial da pessoa humana de participar e transfigurar a criação se exerce também por meio daquelas atividades que a distinguem como indivíduo de um ou de outro sexo. E um dos elementos definidores da mulher enquanto tal é a capacidade para a maternidade, que lhe foi dada pelo próprio Senhor. [5] O exemplo mais perfeito disso está na Toda Santa e Pura Mãe de Deus, que é ela também Mãe da Igreja e de todos os Santos, pois a humanidade do Verbo Encarnado tem sua origem na humanidade da Santíssima Virgem. Nela temos a imagem perfeita da transfiguração de uma potência natural da mulher, que se entrega totalmente, corpo e alma, para colaborar para a obra de deificação do homem. 

Diferente do que pensa o Diácono, o sacerdócio régio da mulher é exercido e expresso também na capacidade de gerar crianças, uma manifestação do poder que Deus deu à humanidade de cooperar com a criação e com sua deificação. Mais uma vez, nada disso tem a ver com paganismo algum, mas decorre de princípios fundamentais da fé e da veneração ortodoxa.



Diácono Marcelo Paiva: ''Sacerdotes geram filhos como PAIS na fé. A IGREJA é a MÃE de todos, e nisso se concilia ao simbolismo a Virgem Maria, mas os sacerdotes nunca são associados à maternidade....''

A diferença entre o sacerdócio régio e o sacerdócio ordenado já foi estabelecida. Assim, ainda que a figura do sacerdócio ordenado esteja vinculada ao exercício da paternidade -- e não poderia ser doutra maneira, pois a Santa Tradição veta a ordenação de mulheres por razões que não são nosso tema aqui --, o sacerdócio régio exercido pelas mulheres  está sim associado também àquela potência criadora e geradora que nelas se expressa no campo físico pela maternidade. No entanto, o Diácono se equivoca ao declarar que a paternidade espiritual não está nunca associada à imagem da maternidade. O Bem Aventurado São Paulo afirma, no capítulo 4 da Epístola aos Gálatas, ''Filhinhos meus, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós''. Ora, temos aí o Santo Apóstolo dos Gentios usando uma imagem maternal para fazer referência à sua atividade de ''formar Cristo'' em seus ''filhos espirituais''. [6]  Mais ainda, a formação de Cristo nos fiéis é ela mesmo uma forte imagem maternal que diz respeito à realização plena do sacerdócio régio em todo homem. Trataremos disso a seguir.


Parte final do arrazoado do Diácono Marcelo Paiva, negando qualquer validade da associação da maternidade com o sacerdócio, seja ele qual for


3. Todo homem tem de desenvolver misticamente em si certas virtudes que são mais características nas mulheres



Diácono Marcelo Paiva: ''A Pia Bastimal é ao mesmo tempo um sepulcro (do homem velho) e UTERO, do qual nasce o homem novo. Utero da Mãe Igreja... [...] Há sim um sacerdócio comum a todos os cristãos. Nada disso diz respeito à capacidade para gerar crianças.''

Na Igreja, não só a Pia Bastimal é um sepulcro e um útero. Na verdade, o mais importante sepulcro e útero na vida mística, segundo os ensinamentos dos Padres, é a alma e o coração de todo homem. Na imagem dos Padres, a alma humana -- note, a alma de todo homem e toda mulher -- deve ser noiva de Deus, e seu coração é a caverna em que Cristo nasce em todos nós, crescendo e nos transfigurando rumo a salvação e à theosis.[7] Desse modo, todo homem deve desenvolver em si uma qualidade eminentemente feminina, a receptividade para a Vontade e a Graça divina.  O sexo feminino possui de modo mais espontâneo essa receptividade, que se expressa no plano físico pela capacidade de gerar filhos, nutri-los em seu corpo e pari-los no mundo. Essa potência feminina deve ser imitada, desenvolvida e buscada no plano espiritual pelos indivíduos do sexo masculino. A Igreja ensina que devemos gerar Cristo dentro de nós de um modo místico, assim como a Santíssima Virgem Maria a gerou em seu corpo de modo físico. [8]  A Santíssima Virgem Maria adequa sua vontade à Vontade de Deus, se torna esposa do Espírito Santo, e recebe em si mesma o Verbo Encarnado. Nesse sentido espiritual, todo homem tem de se fazer mulher, tem de investir em qualidades do sexo feminino, tornando-se receptivo a Deus e formando, a partir da Graça Divina que o fecunda, Cristo em seu coração, e manifestando-o no mundo por meio dos atos de sua vida. [9] Suas qualidades masculinas somente não são capazes de sozinhas realizarem esse objetivo, pois o homem foi criado macho e fêmea. O sacerdócio que é comum a toda pessoa humana é realizado em sua plenitude por meio não só das virtudes masculinas mas também das femininas. Evidentemente não em um sentido corporal, vulgarmente literal, como parece que o Diácono lê essa questão -- embora não faça o mesmo com a pia batismal da Igreja, pelo menos assim espero! Mas no sentido de que as características que se expressam no sexo físico são imagens de atividades possuídas por todo homem, embora mais fortes em uns e outros de acordo com o sexo. [10]


Deus cria Eva do lado de Adão: o homem, que era em certo sentido andrógino, se torna sexualmente dividido mas também complementar. 


4. O Véu como obediência ao Princípio Hierárquico 



Diácono Marcelo Paiva: ''A cobertura dos homens na Igreja (clerigos e monges) de jeito algum são um meio de ''representar o feminino'' [...] Não há uso de saias entre os parâmetros da Igreja!''

Devemos nesse momento tranquilizar o Diácono: ele não usa saias na Igreja. Mas aqui também, movido por essa preocupação algo prosaica, ele está caindo em certa rigidez literalista quanto à imagem proposta de que ''os sacerdotes cobrem a cabeça assim como as mulheres''. O uso de véus pelas mulheres diz respeito ao lugar e as tendências naturais do ser feminino. Elas o fazem em obediência ao princípio hierárquico, que as faz aceitar como cabeça seu marido como aceitam ao Senhor. Essa aceitação de Cristo como cabeça, expressa pelo uso do véu, é uma virtude que deve também ser imitada pelos homens -- que tem por temperamento uma maior independência --, já que é vocação de toda pessoa humana receber Cristo por hipóstase, realizando assim seu telos. [11] É desse ''jeito'' que o véu é tomado como imagem de uma qualidade que os homens também devem adquirir. Desnecessário dizer, nada disso tem a ver com algum travestismo, como parece entender o Diácono.




5. A confusão entre o sacerdócio régio e a expressão da espiritualidade feminina com o ''culto a deusa mãe'', a busca por um ''sagrado feminino'' e a ''sofiologia''

Diácono Marcelo: ''Isso não faz parte dos ensinamentos da Igreja. Faz sim, parte dos ensinamentos de diversos grupos pagãos, que identificam a mulher como ''deusa mãe''. Uma heresia moderna nascida no seio do povo ortodoxo, a Sophiologia, tinha como um das características justamente a identificação desse ''sagrado feminino''. A Igreja refutou esse erro de modo claro.''


O exercício do sacerdócio não torna ninguém divino, como o Diácono deveria saber. O ensinamento da Igreja de que todos os homens possuem um sacerdócio régio -- que é renovado pelos mistérios e realizado na santidade --, não tem absolutamente nada a ver com o culto a uma deusa mãe. Será que o Diácono Marcelo Paiva pensa que sacerdotes devem ser cultuados como deuses? De onde ele retirou essa idéia algo implícita em sua abordagem? Nem homem nem mulher são deuses por serem sacerdotes. Eles são, isto sim, imagens do Deus vivo. Nem homem nem mulher são deuses por serem reis. Mais uma vez, eles são ícones de Deus. Nem homem nem mulher são deuses quando se tornam santos. Eles se fazem semelhantes a Deus. O Diácono confunde um princípio básico de fé com uma ordem de idéias que lhe é toda própria e que não encontra justificativa alguma em relação ao tema. Da mesma maneira, o uso do termo ''sofiologia'' para categorizar o ensinamento da Santa Tradição sobre o sacerdócio de todos os cristãos é totalmente impróprio. A sofiologia foi condenada por defender que a Virgem Maria seria, de alguma forma, uma encarnação do Espírito Santo ou da Divina Sofia [12], o que faria dela uma Quarta Pessoa da Santíssima Trindade e violaria o caráter cristocêntrico da theosis, segundo o qual fomos criados para recebermos a Hipóstase do Verbo. De onde o Diácono retirou essa vinculação torta entre o que foi dito e a Sofiologia é algo ainda a ser respondido. Confundir o sacerdócio régio com o culto a uma deusa mãe é um erro bem mais grosseiro do que aquele que o Diácono Marcelo Paiva pensou enxergar no vídeo que pretendeu ''corrigir''.




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[1] ''Existem três verdades interdependente que tem de ser mantidas em equilíbrio: (1) Um, e somente um, é sacerdote. (2) Todos são sacerdotes. (3) Apenas alguns são sacerdotes. Um, e somente um, é sacerdote: Jesus Cristo, o único Sumo Sacerdote da Nova Aliança, o ''único mediador entre Deus e os homens'' (1 Tim 2:5), é o único verdadeiro celebrante em todo ato sacramental. Todos são sacerdotes: em virtude de nossa criação à imagem e semelhança de Deus, e também em virtude da renovação dessa imagem através do batismo e da unção do crisma (a ''confirmação'' ocidental), somos todos nós, clero e leigos, um ''sacerdócio real, uma nação santa'' (1 Pe 2:9), colocados à parte para serviço a Deus.'' [cf. Metropolita Kallistos Ware, ''Man, Woman and the Priesthood of Christ''].

[2] ''Esse sacerdócio régio consiste acima de tudo no poder possuído por toda pessoa humana, criada de acordo com a imagem divina, de agir como criador à semelhança do Deus Criador''. [cf. Metropolita Kallistos Ware, ''Man, Woman and the Priesthood of Christ''].

[3] São Gregório de Nyssa define magistralmente esse princípio em sua obra ''Sobre a Alma e a Ressurreição'', explicando que todos os atributos divinos estão refletidos no homem, a diferença entre o protótipo original e sua imagem sendo o caráter criado dessa última.

[4] São Clemente de Alexandria deixa claro que a criação de Eva implicou em certa divisão das energias e qualidades do primeiro Adão: ''Toda suavidade e passividade que havia nele foi abstraída por Deus do lado de Adão quando formou a mulher Eva''. Nos escritos dos Santos Ascetas do deserto, a mulher é comparada aos elementos da alma apetitiva, e o homem aos elementos da alma irascível.

[5] ''Tal é a essência do sacerdócio universal inerente em toda natureza humana. Em termos dessa auto-oferta hierática, tanto homem quanto mulher são igualmente sacerdotes do universo criado, em virtude da humanidade comum que eles partilham. Ao mesmo tempo, cada um deles exerce esse sacerdócio de uma maneira distinta, pois as diferenças de sexualidade se estendem profundamente na natureza humana e não são de modo algum limitadas ao ato da procriação''. [cf. Metropolita Kallistos Ware de Diokkleia, ''Man, Woman and the Priesthood of Christ'']


[6] Há outras comparações entre o sacrifício de Deus e o amor materno, como nessa passagem de São Silouan o Athonita: ''Um monge me contou que certa vez, quando se encontrava muito doente, sua mãe disse ao seu pai, 'Como nosso menininho está sofrendo. Eu ficaria feliz de me entregar para ser cortada em pedaços se isso pusesse fim ao seu sofrimento'. Tal é o amor de Deus pelas pessoas. Ele se apieda tanto das pessoas que quer sofrer por elas, como se fosse sua própria mãe, e ainda mais. Mas ninguém pode entender esse grande amor sem a graça do Espírito Santo''. [''Wisdom from Mount Athos: The Writtings of Staretz Silouan, 1866-1938] 

[7]  ''De acordo com a interpretação dos Santos Padres, a palavra de Deus é uma semente, o nous e o coração do homem é um útero. Através da fé a palavra de Deus é semeada no coração do homem e o emprenha com o temor de Deus, o medo de que os homens continuem distantes de Deus. Com esse medo se inicia a luta para purificar o coração e adquirir as virtudes, que é como o trabalho e as dores do parto. Nessa via nasce o espírito da salvação, que é a deificação [theosis] e a santificação. A formação de Cristo em nós ocorre através de trabalhos espirituais. [...] Segundo os Santos Padres, o que ocorreu com a Panagia fisicamente, ocorre espiritualmente com todo aquele cuja alma vive na virgindade, isto é, que está purificada de paixões.'' [cf. Sua Eminência Metropolita Hierotheos de Nafpaktos, ''A Encarnação do Logos''].

[8] "Se examinamos as festas da Igreja Ortodoxa cuidadosamente, percebemos que a Igreja quer associar nossa vida com Cristo. O ano eclesiástico começa em primeiro de setembro e termina no fim de agosto. No início de setembro celebramos o Nascimento de Theotokos. É com o nascimento da Toda Santa Mãe de Deus que se inicia a contagem regressiva para a salvação do homem. O ano eclesiástico prossegue com a Natividade de Cristo e o Pentecostes, que é a festa da deificação do homem, e termina com a gloriosa Dormição da Panagia que revela a glória que um homem pode alcançar quando se une a Cristo. Assim, mantendo a analogia, aquilo que ocorre com a Panagia deve também acontecer conosco, Cristo deve nascer em nosso coração''. [Metropolita Hierotheos de Nafpaktos].

[9] ''De acordo com São Simeão o Novo Teólogo [Discurso ético 1], os santos estão relacionados com Theotokos de três maneiras. Em primeiro lugar, por causa da natureza humana, já que tanto ela quanto eles são do mesmo barro e do mesmo alento. A Panagia é Mãe de Deus, mas ao mesmo tempo é também um ser humano como nós. Em segundo lugar, estão relacionados por meio da carne que foi tomada dela. Quando comungamos os sacramentos, o Corpo e o Sangue de Cristo, comungamos a carne deificada do Verbo que Ele assumiu da Virgem. Portanto, como ensina São Simeão, ao comungar o Corpo e o Sangue de Cristo, comungamos também da carne de Theotokos. E em terceiro lugar, os santos estão relacionados com a Panagia ''porque através da santidade do espírito que adveio a eles graças a ela, cada um deles concebe e também possuem neles o Deus de todos, assim como ela possuiu o Senhor dentro dela''. [cf. Metropolita Hierotheos de Nafpaktos, ''São Gregório Palamas como hagiorita''].

[10] Da mesma forma que os homens devem adquirir e exercitar certas virtudes que são mais espontâneas na mulher, assim também as mulheres devem adquirir e exercitar certas virtudes que são mais espontâneas no homem. O ser humano deificado é um homem integrado em suas energias masculinas e femininas, como Adão no Éden e como é Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo. São Máximo Confessor ensinou que no caminho da pessoa humana rumo á deificação, ele une em si mesmo as energias que foram separadas pela 'divisão sexual', ou antes, pela criação de Eva a partir do lado de Adão. O casamento, esse ''grande mistério'', como dizia São João Crisóstomo, é um dos meios de refazer essa unidade, pois os dois já não são mais um, mas uma só carne. Mais sobre isso; Casamento como via de união

[11] O véu representa assim não a submissão da mulher ao homem, entendida de forma pejorativa, mas uma união ordenada e amorosa em um todo orgânico. A mulher se coloca, por própria vontade -- pois como São João Crisóstomo ensina em suas homilias, é vetado ao homem obrigá-la -- , sob a autoridade amorosa de seu marido, assim como o homem deve se colocar sob a autoridade amorosa de Cristo. Nesse sentido, todo homem deve ser também feminino -- receptivo -- em relação a Deus. Sem abdicar, claro, de suas qualidades propriamente masculinas, expressas nas imagens do soldado e do atleta de Cristo.

[12] Sofia é, na verdade, um dos nomes de Cristo, uma das atividades por meio da qual a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade cria e governa o cosmos.




domingo, 14 de junho de 2015

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico IV



Quarta postagem da série dedicada a traduções do ''Tratado sobre a Práxis'', do Abba Evágrio Pôntico. A tipologia das paixões de Evágrio -- que acaba por ser também uma demonologia -- está vinculada à sua psicologia e antropologia. A alma possui uma dimensão passional e uma dimensão noética. A dimensão passional é constituída pela parte erótica, também chamada no Ocidente de concupiscível, e pela parte irascível ou tímica. Evágrio chama de paixões as operações das partes erótica e tímica, ou seja, do conjunto passional da alma. Essas operações são, no homem decaído, contrárias à natureza, se conformando a oito vícios gerais [ou paixões, agora em um sentido negativo], também chamados de logismoi [ou pensamentos apaixonados]: a gula, a luxúria, a avareza, a tristeza, a acídia, a ira, a vanglória e o orgulho. A vida prática [praxis] consiste no esvaziamento dessas paixões ou vícios, e sua substituição pelas virtudes, frutos do funcionamento conforme a natureza dessas operações psicossomáticas [1]. A conquista da virtude é chamada por Evágrio de apatheia, ou impassibilidade, conclusão da práxis necessária ao estágio da gnose, quando então o asceta purifica a dimensão intelectiva, o Nous. A vida prática é, portanto, uma preparação para a vida contemplativa ou gnóstica, que terá suas próprias barreiras, tentações e vícios [2]. Nessa série de postagens estamos nos dedicando à práxis, ou seja, à purificação e retificação dos elementos passionais da alma, que são a parte erótica e irascível do homem. Nas passagens abaixo, Abba Evágrio descreve alguns aspectos fundamentais da causação dos logismoi.




34  Daquelas coisas das quais temos memórias apaixonadas, estas mesmas coisas aceitamos como objetos de paixão. E tantos quantos são os objetos que aceitamos com paixão, destes objetos teremos memórias apaixonadas [3]. Assim, aquele que conquistou os demônios que estão operando despreza o que é realizado por eles [4]. Pois a guerra imaterial é mais amarga do que a guerra realizada nos objetos materiais [5].

35  As paixões da alma tem sua ocasião ou pontos de partida nos homens; as paixões do corpo, no corpo. E a continência corta as paixões do corpo, enquanto a caridade espiritual corta aquelas da alma [6].



36  Aqueles [demônios] que governam as paixões da alma persistem até a morte; aqueles que governam as paixões do corpo se retiram mais rapidamente. E em certo sentido os demais demônios são como o sol que se levanta e se põe, agarrando alguma parte da alma; o [demônio] do meio dia [acídia], por outro lado, tem o costume de envolver toda a alma e de sufocar o Nous. [7] Assim, a vida eremítica se torna doce após o esvaziamento das paixões; porque então as memórias são simples memórias, e a luta não mais prepara o monge para a batalha mas para a própria contemplação [8].

37  É necessário observar se são as ideias [ennoia] que colocam as paixões em movimento; ou se as paixões [colocam em movimento] as ideias. Porque, de um lado, alguns tem a primeira opinião; por outro lado, alguns tem a segunda.




38  É da natureza das paixões serem colocadas em movimento pelos sentidos. E se a caridade e a continência estiverem presentes, as paixões não serão movimentadas; se estiverem ausentes, as paixões serão movimentadas. Mais do que a parte apetitiva [erótica ou desejante] da alma, o temperamento [parte irascível da alma] requer remédios, e, por causa disso, a caridade é chamada de ''grande'' [1 Cor 13:13], pois é a rédea do temperamento. Ela mesma [a caridade] é chamada por aquele santo, Moisés, de ''guerreiro que combate a serpente'', em sua Física [Lev 11:22]. [9]






39  A alma tem o hábito de se incendiar em direção a logismoi como consequência do mau odor que existe entre os demônios; quando da aproximação deles a alma é capturada, tendo sido conformada pela paixão que corresponde ao demônio que a perturba [10].






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[1] A Impassibilidade, portanto, não é considerada como o simples esvaziamento ou abandono dessas operações da alma, confundidas com as paixões em um sentido negativo. Ela não é a morte da psique, mas seu redirecionamento, sua cura, seu funcionamento de modo reto com a natureza, entendida aqui como o mundo edênico saído das mãos de Deus e perdido com a Queda. O critério usado por Evágrio para a impassibilidade é o cumprimento dos mandamentos divinos, tanto em pensamentos quanto em atos. Algo que só é possível, explica ele, pela manutenção da verdadeira fé e da sã doutrina.

[2] Noutras passagens, Evágrio deixa claro que essa divisão entre a vida prática e a contemplativa não é esquemática. Ninguém alcança em vida uma impassibilidade absoluta que lhe garanta a 'impecabilidade', para só depois se iniciar na gnose ou contemplação dos logoi dos entes visíveis e invisíveis. A partir de determinado ponto da ascese há uma simultaneidade entre a práxis e a gnose. Quanto mais purificado das paixões, mais o asceta pode contemplar as essências criadas. A própria gnose tem um papel purificador e curativo para o conjunto da alma, de modo que a santidade não pode ser alcançada sem ela. Determinado grau de gnose faz, inclusive, que o asceta volte a se 'nutrir' ou 'alimentar' da própria contemplação, um estado que é vivenciado pelos anjos.

[3] Em outras passagens, Evágrio explica que as paixões se voltam para a consecução do prazer sensorial e que tem sua raiz no 'amor-próprio'. Elas também podem ser movidas pelo ataque dos demônios ou, como se deixa claro nesse trecho, por memórias apaixonadas. Quando estas lembranças retornam à mente, a paixão correspondente é acionada. De forma semelhante, ao aceitarmos na mente a ideia de um objeto percebido de modo apaixonado, vamos gerar sobre ele memórias passionais, que, mais tarde e em outras ocasiões, voltarão à mente e reiniciarão a excitação da paixão correspondente.

[4] Os demônios excitam as paixões segundo o explicado no trecho 39, exposto mais adiante. A maneira de conquistar os demônios e vencer a guerra imaterial é o esvaziamento dos vícios ou logismoi das operações da alma e sua substituição pelas virtudes correspondentes. Uma reorientação, enfim, das atividades psicossomáticas.

[5] A guerra 'material' é o cumprimento dos mandamentos divinos no comportamento exterior. Essa guerra não inclui a disposição interior e mental do cristão, e, desse modo, apesar de muito difícil, não é tão amarga ou pesada quanto a guerra imaterial, que envolve o controle dos pensamentos, a batalha contra os demônios e a luta pela retificação do ordenamento da psique. 

[6] Temos aqui outro aspecto da tipologia das paixões de Abba Evágrio, a divisão entre paixões do corpo e paixões da alma. As paixões com raízes no corpo são a gula e a luxúria, dizem respeito à parte erótica da psique, e devem ser tratadas pelo jejum e pela castidade. As paixões com raízes na alma, ou no homem enquanto homem, são a avareza, a tristeza, a acídia, a ira, a vanglória e o orgulho, e estão associadas com a parte irascível [tímica] da psique. Elas devem ser tratadas por meio da caridade espiritual, que assume o sentido de humildade nos escritos de Evágrio e também no dos Santos Padres. Santo Antão vai ensinar que o diabo é derrotado pela humildade. 

[7] Os demônios se relacionam de forma específica com uma paixão, se associando exclusivamente a essa esfera de atuação. A exceção é o demônio da acídia, que age sobre o conjunto da alma.

[8] Após a relativa impassibilidade -- aquela possível de ser alcançada pelo homem ainda em vida e que consiste não só no esvaziamento das paixões mas na sua retificação em operações conforme a natureza, ou seja, na passagem do vício e do pecado para a virtude -- a praxis se une à vida contemplativa, e o cristão se torna um gnóstico. Nesse estágio, as batalhas  com os demônios prosseguem. Não somente porque os demônios que combatem a alma persistem até a morte como também a gnose tem seus próprios perigos que, embora não sejam vícios morais, são 'vícios intelectuais', provocados pela delusão e a ignorância. O estágio da gnose não é abordado diretamente no ''Tratado sobre a Práxis'', mas em outras obras. Basta dizer que o cristão gnóstico adentra a contemplação dos logoi das coisas criadas. Em um grau ainda mais elevado de contemplação, ele vem a conhecer os poderes incorpóreos, ou anjos, e inclusive os logoi angélicos. O mais elevado nível de contemplação é chamado por Evágrio de Teologia, e diz respeito à 'gnose essencial', a gnose do próprio Deus.

[9] Dessa maneira Evágrio responde a questão 37. Mesmo quando excitada pelos demônios ou por memórias apaixonadas, as paixões são movimentadas por um chamado pelo prazer dos sentidos, entendidos aqui em um sentido amplo -- como prazer carnal e mundano. Isso é verdadeiro inclusive com relação às paixões da alma. Esse chamado rumo ao prazer dos sentidos, ou à satisfação da carne por oposição à do espírito, não exclui a ideia de que o amor próprio está na raiz das paixões da alma. Daí porque a humildade e a caridade espiritual, ao reorientarem a pessoa para o amor ao Outro, se tornam o remédio eficaz contra as doenças da parte tímica da psique. No caso das paixões do corpo, o remédio é o jejum e a castidade, que levam o homem da auto-indulgência para o auto-controle.

[10] Cada demônio possui uma energia ou função [ergon] que lhe é específica, considerada um 'mau odor' de ordem espiritual. É uma operação associada a uma paixão, e que a 'incendeia' ou 'excita' quando dela se aproxima. Nesse momento, o demônio 'semeia' ideias, conceitos e representações mentais no Nous que, ao fazerem uso das memórias apaixonadas do homem, vão intoxicá-lo rumo ao pecado. Daí porque o estágio superior e mais interno da guerra imaterial diz respeito ao combate aos logismoi, às idéias que chegam ao Nous. O campo de batalha é inclusive anterior à faculdade da imaginação, está na própria origem da formação das representações mentais [ennoia]. 

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A Era que chega ao fim e o Mito que persiste

Unfathomable Sea! whose waves are years,
      Ocean of Time, whose waters of deep woe
Are brackish with the salt of human tears!
      Thou shoreless flood, which in thy ebb and flow
Claspest the limits of mortality!

   And sick of prey, yet howling on for more,
Vomitest thy wrecks on its inhospitable shore;
      Treacherous in calm, and terrible in storm,
         Who shall put forth on thee,
            Unfathomable Sea?
(Time, by Percy Bysshe Shelley)
Depois de seis derrotas para Rafa em Roland Garros, o dia de Novak Djokovic


Ontem eu falava sobre Nole e o Monstro da Philippe Chatrier, chamando a atenção para o ponto crucial que impediu até aqui que Djokovic reclamasse o destino que desde 2011 parecia ser seu.


Há quatro anos Djokovic é um jogador melhor do que Nadal e destinado a superá-lo tecnicamente e, talvez, até em números; mas falhava em momentos chave de sua carreira quando tinha de se defrontar com o mito de Rafa. Não é verdade que ele seja hoje um melhor tenista que Nadal no saibro. Ele é melhor desde pelo menos 2013. Mas sua cabeça era sempre engolida pelo dragão da Philippe Chatrier


A diferença abissal que existe hoje entre os dois jogadores nesse ponto da carreira ficou nítido no grande palco das glórias do espanhol. O jogo foi fácil, é necessário que seja dito. Nadal engrossou o primeiro set, que perdia por 4 a zero, mas depois não ameaçou mais a vitória de Nole. O sérvio poderia ter dado um pneu na última parcial causo não relaxasse a mão em respeito ao grande campeão que havia do outro lado da quadra e passasse a arriscar bolas que não tentaria em pelejas mais disputadas. A vitória foi completa, porque no aniversário de Rafa. Foi completa porque com dupla falta de seu rival, que respeitou seus winners de devolução e retribuiu os mesmos presentes que Novak lhe havia dado em 2012 e 2014. Foi o sinal definitivo de que o domínio mental e emocional mudou de lado.

Rafa completamente dominado no palco de suas maiores glórias


E assim uma era termina. De uma maneira um tanto melancólica, sem emoção, quase que de modo burocrático. Termina sem grande reações de Rafa. Não houve um jogo épico e que mantivesse todos em suspenso, como na final de Wimbledon de 2008, quando Nadal teve de superar seu dragão particular na figura de Roger Federer. Djokovic já havia assassinado o monstro e enterrado seu cadáver fundo, embora ainda ao seu alcance para que pudesse moldar a história. Na quadra central se encontraram apenas dois indivíduos de carne e osso, e a diferença física e técnica entre ambos se expressou de forma natural e previsível no placar. 


Todo respeito a Rafa. Ele não deixou de ser o dono da Philippe Chatrier. Isso é impossível a essa altura. O esporte dos reis é assim, coroa e destrona seus grandes campeões. Ele está em uma grande lista, digna e memorável e olímpica. Não voltará a ser o que era. Ele não tem físico nem tempo. Mas tampouco precisa, porque já possui a imortalidade reservada aos maiores. O fim de uma era não é de modo algum o fim de uma lenda; o caráter corruptor do tempo derrota a humanidade mas se quebra diante do nome dos heróis que escalaram a montanha da glória.

O mais temido jogador da história do saibro cumpre seu ciclo


Quanto a Novak, lhe falta algo muito importante: o título. E ele será muito tolo se pensar que o conquistou hoje. Embora tenha matado seu dragão pessoal, derrotou um tenista que não era o adversário mais difícil dessa edição atual do major francês. É bom que tenha consciência de que o pior ainda está por vir. Essa percepção é fundamental para que Novak não deixe de novo que a história lhe escape por entre os dedos.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Nole e o Monstro da Philippe Chatrier





O dono da Philippe Chatrier


Difícil superestimar a batalha de logo mais entre Novak Djokovic e Rafael Nadal pelas quartas de final de Roland Garros. Pode não ser a ''melhor quartas de final da história dos Grand Slams'', como alguns tentam vendê-la, mas é um embate tão importante quanto qualquer final épica. Muita coisa estará em jogo. Na verdade, toda uma lenda do esporte estará em disputa. Nadal venceu nada menos do que nove de cada dez Roland Garros que disputou. Em mais de noventa jogos de cinco sets no saibro só perdeu, em toda sua vida, uma única peleja. No entanto, sua performance na superfície que dominou como ninguém foi a mais fraca de todas as temporadas desde 2004, e ele enfrenta o atual número um do mundo em seu apogeu físico, mental e técnico.

Nole vem entrando gradual mas firmemente no olimpo do esporte dos reis. Já é detentor de oito majors e quatro masters cup, e terminou três temporadas na ponta do ranking da ATP. É o sexto tenista com maior número de semanas como número 1 do mundo, na frente, inclusive, do próprio Rafa. Mas lhe falta o título em Paris para completar o career grand slam, feito só realizado por quatro homens na era profissional [Rod Laver, André Agassi, Roger Federer e Rafael Nadal]. Pior ainda, ele já chegou ao torneio na posição de favorito antes: nos últimos três anos foi barrado na conquista pelo adversário que terá pela frente daqui a algumas horas. Em 2012 havia um equilíbrio entre ambos, e a derrota não foi tão dolorida. Em 2013 Novak liderou o quinto e decisivo set com uma quebra na frente, mas foi traído pelos próprios nervos. Ano passado muitos davam como certa sua vitória; e ele passou mal durante o confronto com o Rei do Saibro, perdendo o título com uma dupla falta. O abismo entre o jogo de Nole e o de Nadal nunca foi tão grande a favor do sérvio quanto agora. Se não vencer amanhã, talvez o dia nunca chegue.
Djokovic perde a semifinal de Roland Garros em 2013 para Rafael Nadal: o sérvio liderava o quinto set por quatro a três e uma quebra na frente até que atropelou a rede, perdendo um ponto fácil e mostrando seu nervosismo na hora da onça beber água

E eis aqui o nó górdio: Jogar contra Rafa na Philippe Chatrier significa enfrentar não somente um indivíduo de carne e osso, mas toda a história que ele construiu naquelas linhas. Junto com o Rafa, pessoa de carne e osso, entra na arena o Rafa, lenda dominante e [semi] imbatível da terra batida. Por mais que ele seja atualmente apenas o sétimo do ranking, é o número 1 do mundo quem será o visitante na quadra central de Roland Garros.

Tão grande é a lenda de Nadal sobre a terra batida que, mesmo com as casas de apostas dando favoritismo de quase 3 para um a favor do sérvio, os comentaristas ainda titubeiam. Pela lógica pura e simples não há como Novak perder esse jogo. Ele é atualmente melhor do que Nadal em tudo de relevante no jogo de tennis, inclusive no saibro. Saca melhor, devolve [espetacularmente] melhor, tem um backhand [extremamente] mais sólido, defesa mais impenetrável, contra-ataque mais fulminante, muito mais confiança, velocidade e resistência física. O dia de amanhã promete ser frio e úmido em Paris, o que complica as coisas pra Nadal ao reduzir a velocidade e altura daquela que foi sua principal arma técnica em toda a carreira, o monstruoso topspin de seu forehand. O espanhol vem também de derrotas surpreendentes que lhe retiraram a fortaleza emocional e mental que se tornou mítica entre todos os que apreciam o esporte. Até mesmo sua incrível disciplina tática se encontra mais fragilizada nessa temporada.
Homenagem de fãs a Nadal quando de seu sétimo título em Roland Garros, em 2012, ocasião em que se tornou o maior vencedor do torneio, ultrapassando a lenda Bjorn Borg.

[Conta Rafa que na primeira vez que enfrentou Federer em Roland Garros, na semifinal de 2005, perguntou desconsolado para seu tio e treinador, ''Como posso vencer? Ele é melhor do que eu em tudo!'' Tony lhe disse para se concentrar naquilo que ele, Nadal, tinha de bom, e não nas armas do adversário. Não sei se esse conselho vale tanto assim nos dias de hoje. Aquilo que Rafa tem de melhor está abaixo do nível máximo que seria necessário para ameaçar Novak Djokovic.]

Por que os comentaristas titubeiam, então? Mística? Superstição? Não estariam preparados para vaticinar o fim da hegemonia de Nadal sobre o saibro?

Rafa aponta para Novak em 2013: o espanhol é um metre da batalha mental
Repetindo, Nole já esteve nessa posição. Embora não com tanta vantagem como dessa feita, eram situações similares. E ele perdeu com dupla falta em 2012, atropelou a rede em 2013, e teve ataques de vômito em 2014. Expressões de falta de controle emocional e psicológico para derrotar não o Rafa de carne e osso -- a quem ele vem dominando em outras quadras de barro que não a Chatrier -- mas aquele espectro horripilante e semi-sagrado que adentra a quadra central junto com o espanhol. Djokovic tem de derrotar não só o tenista Nadal, mas também a si mesmo. Para derrotar a si mesmo, porém, deve destruir em sua cabeça o monstro fantasmagórico, o peso histórico, o espectro do Rei do Saibro que paira -- vigilante, vitorioso, conquistador, intocável -- sobre o Complexo de Roland Garros.

Para ser herói, para ser um construtor de um novo mundo e história no Tennis, Nole tem de matar o dragão.