''A América Latina existiu desde sempre sob o signo da utopia. Estou convencido mesmo de que a utopia tem seu sítio e lugar. É aqui. Thomas Morus escreveu a própria Utopia inaugural inspirado nas primeiras notícias certas que chegavam à Europa sobre a nossa inocente selvageria. Antes, todo europeu pensava que seus antepassados primevos eram uns patriarcas barbudos, enrolados em sujas túnicas, fedorentos, chorando feios pecados. Foi a visão da nossa indiada louçã, vestida na inocência de sua nudez emplumada, dançando num jardim tropical idílico, que lavou seus olhos daquela visão de judiaria [...] [M]uitos homens santos afirmaram, com base na sua sabedoria teológica ou astrológica, que as ilhas de Fidel com que Colombo topou eram o Éden. Os próprios navegantes, com fundamento na sua experiência direta e visual, disseram o mesmo. Colombo, visivelmente encantado com a beleza inocente da indiada pelada, confessa sem vexame, em carta ao Santo Papa, que o que tinha encontrado era o Paraíso Perdido. “Cri e creio”, escreve ele, “como creram e creem todos os sábios e santos teólogos, que naquela minha comarca é que está o Paraíso Terrestre.”
Darcy Ribeiro, 1986
Pedra da Gávea, na qual a imaginação de brasileiros captou toda uma mitologia sobre fenícios, vikings e egípcios
A Modernidade é incompreensível sem o Descobrimento da América, tema que durante muito tempo foi tratado pela Historiografia em uma dimensão puramente social e econômica. Mas as pessoas que atravessaram o Atlântico, muito diferentes da figura do homo economicus e da razão instrumental iluminista, eram motivadas por visões míticas que impactavam profundamente suas ações.
A busca pelo Éden perdido na forma de Reinos Orientais ou Ilhas
Místicas, já presente no cristianismo antes do cisma -- vide a Jornada de São
Brandão -- e na mitologia celta -- Hy Brasil --, bem como na tupi -- Terra sem
Mal --, é fundamental para compreender o papel e centralidade da América do Sul
na geopolítica contemporânea, do mesmo modo que o mito da Atlântida é
fundamental para compreender a ''terra prometida'' dos puritanos
anglo-holandeses que desembarcaram no norte do continente.
A Ilha de Bem-Aventurança visitada por São Brandão
Este caráter mitológico não passou desapercebido a pensadores influentes
do nosso século, que justificam muitas de suas abordagens a partir de uma
leitura simbólica do Descobrimento. Um exemplo é o russo Alexander Dugin, que vê a
América como uma catástrofe histórica, a ruptura de um tabu que inaugurou uma
era apocalíptica.
“Em seu tempo, a civilização antiga construiu duas colunas no Estreito de Gibraltar, em que estava inscrito Nec plus ultra, que significa “nada há além”. “Não há necessidade de prosseguir” estava inscrito nestes pilares. Quem tentasse, se arrependeria. E enquanto estas colunas protegeram a humanidade, os portões do Oeste ontológica permaneceram selados; fechados pelas inscrições, pelas duas colunas, todas as coisas iam mais ou menos bem. No entanto, alguém desprezível rastejou através delas. E quando o fez, quebrou o selo ontológico fundamental. Vocês sabem o que o cifrão [do dólar] significa? As duas colunas de Hércules, que nas representações antigas eram circundadas por uma fita na forma da letra ‘S’, com o subscrito “proibido ir além destas colunas”. Mas no dólar está escrito não Nec Plus Ultra e sim plus ultra. “Mais Além” está escrito ali, é permitido, e hoje o dólar significa um movimento para além destas colunas, para o interior da zona proibida, para o Oeste Distante [‘Far West’], para o Atlântico. Isto significa que Leviatã, o Monstro do Oceano, que foi mantido preso por um longo tempo, está livre das redes antigas. E quando os navios de Colombo e outros aventureiros europeus rumaram na direção do Oceano Atlântico, com este gesto ritual demoliram os grilhões que prendiam Leviatã, e Leviatã iniciou sua rebelião.”
[Dugin, 2017]
O russo associa o mito do continente perdido de Atlântida, que teria sucumbido por conta de sua hybris, com uma cosmografia em que o extremo-oeste é a terra dos mortos. A Descoberta da América se torna o transbordamento do 'infra-mundo' na História, com todas suas consequências nefastas. A América seria o ''extremo-Ocidente'', o Ocidente depois do Ocidente [Ibéria], similar aos infernos, algo fora da realidade propriamente humana. Daí que em sua Geopolítica, a América se transforme na civilização contra-iniciática por excelência, o abismo que deve ser contido a todo custo pelas forças da Ilha-Mundo. Se trata de uma leitura singular de um tema considerado de extrema relevância por autores da Escola Tradicionalista, em especial René Guénon, que também via a Modernidade como o encapsulamento da mentalidade humana por influência das realidades inferiores. Mas a análise simbólica do francês sob o descenso das condições humanas não adentrava em considerações de ordem geopolítica. Em Dugin, o Estreito de Gibraltar se torna a Grande Muralha que protegia o mundo da ''invasão das hostes de Gog e Magog".
Gog e Magog em pintura persa. Para Dugin, as Grandes Navegações liberaram liberaram influências diabólicas na Terra
As cosmografias sagradas e os mitos sobre continentes perdidos não foram, evidentemente, criadas por Dugin, pela Escola Tradicionalista ou sequer pelo ocultismo contemporâneo. Em outras leituras, estas sim pré-modernas, o Extremo-Oeste não é visto sob o signo do Mal. Na Europa, as visões sobre o Oceano Atlântico eram alimentadas pelo imaginário sobre o Índico. Apesar de algumas concepções científicas do fim do século XV considerarem o Índico um ''mar fechado'', no onírico o Atlântico era visto em continuidade com o Oriente. As grandes navegações ibéricas eram impulsionadas pela procura do Paraíso Terrenal, guiados pela estrela da manhã, atravessando o grande oceano em uma busca iniciática.
Uma das principais fontes cristãs sobre o mar ao Oeste eram as narrativas de São Brandão, monge considerado um dos Doze Apóstolos da Irlanda, e que diziam ter alcançado o Éden em navegações pelo Atlântico. Suas aventuras oceânicas eram narradas com todo um simbolismo ascético que não distinguia sua consecução ''exterior'' do estado de iluminação interior. A jornada iniciática lidava também com o espectro do ''não regresso'' envolvido na batalha contra o grande mar e o contato com monstros marinhos. Também se ligava à percepção de queda, de necessidade de retorno, que era típica também nas ordens esotéricas da aristocracia europeia na Cristandade Latina [voltarei a este ponto].
São Brandão dando a Eucaristia para uma sereia em suas jornadas oceânicas e iniciáticas
Ora, um dos traços mais importantes nos mitos das Ilhas Místicas, como as da Jornada de São Brandão e da mitologia céltica e fenícia, é
que são locais ou centros de poder que se tornam visíveis ou invisíveis de
acordo com o momento, estado de percepção etc. Eles não somem no passado -- o
passado faz parte de um símbolo de ocultamento, de perda, é uma metonímia do
''tempo mítico''. Na verdade, o ''tempo mítico'' é uma condição encoberta aos
olhos, mas que pode ser recuperada diante de certas chaves. Os escolhidos ou aqueles que adquiriram essas chaves podem não apenas
enxergar, mas também adentrar esses Paraísos, vivendo ou aprendendo segredos
neles, e trazendo de volta poderes e elementos paradisíacos para os que ficaram
de fora da ''Ilha". Imagem similar está presente nas conversas entre
São Serafim de Sarov e Motovilov: a luz edênica está aqui e agora, para todos o
que podem vê-la.
Diferente de tradições em que os eventos históricos se dissolvem no tempo mítico, o Cristianismo sacraliza a História. Não é a única religião ou tradição com esse elemento, alguns povos indo-europeus, como os romanos, faziam o mesmo. Nesse caso, porém, Roma estava no centro da História Sagrada, enquanto no cristianismo a 'protagonista', por assim dizer, é a Igreja, que dá significado inclusive à Roma. Dentro dessa perspectiva, o ensejo nascido no fim da Idade Média por reencontrar o Paraíso Terrenal; a percepção de que a Cristandade Latina se encontrava em rápido processo de degeneração e devia retornar às Origens [busca pela Igreja Primitiva, por Reinos e Ilhas Místicas etc.] não era um mero acaso, nem pode ser avaliado apenas de uma perspectiva sociológica.
"[A]s Navegações são indissociáveis da busca portuguesa pelo Oriente místico e da procura do Reino do Preste João, que segundo as crenças difundidas desde o século XII, proporcionaria recursos e alianças que tornariam os cristãos capazes de vencer os muçulmanos e os mongóis. A insistência portuguesa na conquista de Calicute, considerada meio que insana pelos comerciantes de Antuérpia e Veneza, é incompreensível sem este ponto. Quando chega a Calicute, Vasco da Gama pensava estar chegando no Reino do Preste João, só notando seu erro depois de ser corrido da região. Ele chega a confundir um templo de Shiva com um mosteiro cristão e a estátua da divindade com uma imagem da Virgem Maria. [...] Esta busca mística, associada ao ideal cruzadista, e do qual a Reconquista era expressão, se vincula, certamente, às ordens religiosas de teor iniciático que operavam em meio à Aristocracia lusitana. A proximidade da Coroa Portuguesa com a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo aumentou de tal maneira que a liderança da organização religiosa-militar foi ocupada cada vez mais pelos Monarcas da Dinastia de Avis, de modo que Dom Manuel I se tornou mestre da Ordem ainda quando Duque, antes mesmo de sua Coroação." [O Sentido da Independência, in: Já Raiou a Liberdade, 2022]
A Expansão Marítima Portuguesa está ligada à busca apocalíptica pelo Reino do Prestes João, no Oriente Místico visitado por São Tiago |
O Infante Dom Henrique, o Navegador, era impactado fortemente pelo Mito do Reino de Prestes João, Monarca descendente dos Reis Magos e cujo Império se converteu ao Cristianismo durante as missões apostólicas do Glorioso São Tiago, que pregou no Oriente. As guerras santas e a expansão marítima defendidas por Dom Henrique faziam parte de sua perspectiva apocalíptica e da urgência de encontrar o Reino que, existindo às bordas do Paraíso Terrenal [Éden] -- ou na Índia ou na Etiópia --, forneceria conhecimento e riquezas para que os cristãos superassem o inimigo muçulmano e as forças do anticristo. Ao mesmo tempo, os Reis Portugueses continuavam citando em suas cartas a leais navegadores as Antílias, ou Ilha das Sete Cidades, para as quais sete bispos visigodos teriam navegado no início do século VIII fugindo da conquista muçulmana
O "conflito esotérico" em torno da descoberta prossegue na colonização do atual Brasil, mas ela não é tão simples quanto parece. Um exemplo perfeito disso é o próprio Nicolas Durand de Villegagnon, fundador da França Antártica na Baía de Guanabara. Villegagnon foi colega de Calvino, Francisco Xavier e Inácio de Loyola na Universidade de Paris. Os dois últimos estão na origem dos Jesuítas e de suas técnicas místicas, enquanto Calvino deu início à Reforma propriamente dita.
Já Nicolas saiu da Universidade para as Ilha de Malta, onde adotou o Manto Sagrado dos Cavaleiros Hospitalários. Ele era um "Templário", digamos assim, e sua Ordem de Cavalaria obedecia diretamente a Carlos V, inimigo de seu país natal, a França. Não à toa, Villegagnon lutou ao lado do Imperador contra o famigerado "Barba Ruiva". A aventura da França Antártica foi financiada e apadrinhada por Gapard de Chantillon, o Conde de Coligny, principal conselheiro de Henrique II, e que diziam ser huguenote. Só que Coligny só se converteu ao calvinismo quatro anos depois da expedição de Villegagnon. É verdade que Durand pediu ajuda a Calvino depois que sofreu um motim na Guanabara, ao entender que estava sozinho em um momento de imensas reviravoltas na Corte francesa. Mas os calvinistas não duraram muito no Forte de Coligny, os debates teológicos em torno da Eucaristia, das Liturgias e do casamento explodiram em conflito aberto. O próprio Villegagnon fez questão de se livrar dos reformados antes retornar à França em 1560.
Agora, qual era a relação desse Cruzado com os Cavaleiros da
Ordem de Cristo, que levavam adiante a Colonização portuguesa, e com os
Jesuítas, ordem que também mobilizava o mito tupi da Terra Sem Males e a jornada de Sumé para o Oeste, na direção dos Andes --, Sumé que os freis
associaram ao Glorioso Apóstolo São Tomé, que evangelizou a Índia [mais uma vez
o Oriente Místico], segundo a Tradição Cristã?
A Nova Atlântica, de Francis Bacon, utopia que pode ser comparada à da Babel/Babilônia de Gênesis |
É um mistério. Mas os Reformadores calvinistas tiveram mais sucesso na América do Norte, que nasce sob outro signo utópico poderoso, a Nova Atlântida, de Bacon, descrita com o nome hebraico de Bensalem. A Ilha teria se convertido ao cristianismo, mas era governado por um conselho todo poderoso chamado "Casa de Salomão", com ritos próprios, capacidade de forjar milagres e iludir a todos com truques com a luz, e autoridade para decidir que segredos revela ou não à sociedade e ao Estado. O objetivo último de Bensalem era "o conhecimento das causas e o segredo dos movimentos de todas as coisas; a expansão dos limites do Império humano até a conquista de tudo que é possível."
Enquanto alguns atravessaram oceanos seguindo o mito da Nova Atlântida, outros sacrificaram tudo pela redescoberta do Éden. No campo do mito, o Brasil é desde as origens uma terra santa, e que está sempre pronta a ser redescoberta, como a Ilha no meio do Mar que aparece e desaparece e cuja utopia permanece viva porque incrustada no imaginário.
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