terça-feira, 12 de abril de 2022

TRADIÇÃO E CULTURA POPULAR NA FRENTE SOL DA PÁTRIA, ou: alguns mistérios da dissidência tradicionalista

 ''Sigamos estas deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras.
Isto dito, veloces mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando."

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IX, Estrofe 70




A Sol da Pátria, cujo lançamento oficial se aproxima, é uma frente ao mesmo tempo política, tradicionalista e cultural. Estes três aspectos estão mesclados de forma indissociável no movimento, que leva em alta conta a defesa das culturas populares e do folclore do Brasil.


Ora, é justamente esta defesa que levantou algumas críticas, parte delas de desavisados sobre a relação do folclore e da cultura popular com a Tradição. Certos muxoxos não são novos, como vou esclarecer na breve História da Dissidência Tradicionalista que vou tornar pública nos próximos dias. Fazem parte, na verdade, de uma perspectiva calcada em um conservadorismo elitista de natureza burguesa e em um dualismo oriundo de um Platonismo distorcido.

Tratemos então de uma das chaves da nossa Frente. Serei sucinto, prometendo voltar a estes pontos no futuro.



1. O BRASIL COMO IDÉIA, MAS QUE IDÉIA É O BRASIL?

Há um tipo de militante, com traços pequeno burgueses e cosmopolitas, comum em todos os lados do espectro político, e que tem muita dificuldade de se comprometer com o Brasil real, aquele vivenciado no dia a dia. Este tipo de militante costuma se refugiar em jargões, como o de que o "Brasil é uma Ideia". Assim, declaram seu amor a um projeto, a uma miragem, e não ao país que tem diante de si, com o qual raramente se identificam.

Como costumo dizer, amar a humanidade é moleza. [afinal, ela é alta ou baixa? gorda ou magra? introvertida ou extrovertida?] Difícil é amar o próximo. Mas qual deles foi o Mandamento do Senhor?

Não há problema em criticar a sociedade em que se vive, nem em ver no Brasil uma ideia, desde que não se caia em diferentes formas de "vira-latismo". A "Suécia Tropical" é uma ideia de Brasil, por exemplo; o Brasil como imitação dos EUA é outra ideia também. E em nome destas duas ideias é possível fazer tabula rasa do país, criticando suas raízes, sua história e sua cultura, como fazem os pós-modernos ou os liberais da linha de Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. É possível até, a partir destas ideias, dificultar a atualização da Utopia que chamamos Brasil.

Pois o Brasil como Utopia, ou o Brasil-Utopia, é a Ideia que nos importa, e ela não é uma abstração teórica descrita em livros que servem de instrumento de um Platonismo distorcido [voltaremos a este tema mais adiante]. Ela é realidade viva e operante, que preenche o imaginário do povo brasileiro e de seus heróis civilizadores.






2. O UNIVERSAL E O PARTICULAR

A Utopia-Brasil é uma rede e uma ''linguagem'' formada por símbolos, tipos e imagens míticas que mesclam, de forma indissociável, temas universais em dada conformação particular, unindo em uma via de mão dupla o que está no alto e o que está embaixo.

Não se trata, assim, de uma "Ideia descarnada", existindo em um mundo totalmente à parte, e indistinguível das cores e sabores proporcionados pelo cotidiano. O Brasil não é "Roma" nem precisa ser. Somos uma NOVA Roma, MESTIÇA, TROPICAL e LATINA.

Como diz o professor Uriel Araujo, "Minha Pátria não está onde estejam meus ideais: está é na paisagem sonora, afetiva e olfativa onde cresci e me fiz homem, no som da minha língua e no sabor da comida, no mosaico de rostos e sotaques da nossa gente, no calendário de nossas festas, nas melodias tristes ou alegres que cresci ouvindo, nesta terra, nestes ares, no nosso sofrimento - em tudo aquilo, cruel ou doce, que me formou. Minha pátria é esta paisagem, esta terra onde me enterrarão."

O Imaginário é o âmbito em que se estabelece esta comunhão, este primeiro casamento entre o Universal e o Particular; ou, dizendo de uma maneira ao mesmo tempo hermética e cristã, em que se dá, em primeiro lugar, esta encarnação de um Universal, a que damos o nome de Brasil.



3. A TRADIÇÃO E O FOLCLORE

Se a Utopia encontra sua primeira encarnação no Imaginário, é a Cultura Popular e o Folclore que constituem o ponto de reflexão mais seguro e estável da Tradição. As raízes populares tomam o aspecto então de "substância" em que as verdades mais elevadas se estabelecem em potência, o verdadeiro depositário e fiel guardião da Ordem quando tudo o mais soçobra. Segundo René Guénon, esta é uma aplicação direta de um princípio tradicional, por meio do qual o ponto mais elevado, que neste caso se refere a uma "elite espiritual" [e não social, erudita, econômica, étnica etc.] encontra seu espelho justamente nos homens mais comuns e até mesmo "vulgares", e não em um dos pontos intermediários da escala [como a classe média]: ''é a esse mesmo povo (e certamente a aproximação não se dá por acaso) a quem se confia sempre a conservação das verdades de ordem esotérica que de outro modo correriam o risco de se perder, verdades que o povo é incapaz de compreender, certamente, mas que nem por isso deixa de transmitir fielmente, inclusive se para tanto sejam recobertas, elas também, de uma máscara mais ou menos grosseira. E é essa, em suma, a verdadeira razão de existir do ''folclore'', e concretamente de todos os pretensos contos populares''.

Esta "elite" se mistura e busca refúgio no povo, do qual não se distingue exteriormente, porque ali se encontra na presença do divino resguardado na cultura popular.

Diz o professor Luiz Campos se referindo a Vicente Ferreira da Silva: "O aspecto mais interessante e profundo de sua obra, na minha opinião, é o conceito de que a consciência dos povos é formada por uma espécie de possessão coletiva pelo divino. Os deuses de um povo estruturam toda a sua cosmovisão, incluindo a interpretação que o mesmo povo faz de si mesmo. Tal auto-interpretação tem sua manifestação mais perceptível na cultura popular e no folclore. Portanto, sendo o povo condicionado pelo seu divino particular, é um erro terrível considerar a cultura como mera manifestação material ou social. Ela é a irrupção imediata do sagrado."

Dizendo de outro modo, a Tradição se desdobra em diversas camadas, afetando a vida inteira das populações. As reminiscências de conteúdos tradicionais, no sentido estrito do termo, se dão no conjunto de costumes e artes, mitos, brincadeiras, formas de sociabilidade partilhados e transmitidos pela comunidade. No fundo, esses elementos são as imagens e referenciais simbólicos que os grupos culturais usam para representar e interpretar o mundo pra si e para comunicá-los aos demais. O imaginário serve assim de rede receptora e transmissora dos elementos tradicionais, ainda que de forma ''não consciente'', ou, dizendo mais propriamente, de maneira lunar.


Ora, sem pretender entrar na querela sobre a sobrevivência de outros meios de transmissão no Brasil, o 'fato' é que os povos e populações raízes cuja interação está no fundamento de nossas identidades foram salvaguardados de algumas das piores influências do mundo ocidental.





4. OS ALQUIMISTAS ESTÃO CHEGANDO

A possibilidade de que gnósticos e iniciados 'extraiam' da matéria prima da base popular as verdades tradicionais que serão mobilizadas em uma 'retificação' tradicional tem de levar em conta dois princípios básicos. Caso contrário, corre-se o risco de cair no Platonismo distorcido já mencionado:

I. O nascimento de uma civilização tradicional a partir da cultura popular não deve deixar para trás nenhum aspecto do imaginário do povo, nem mesmo aqueles encarados como "restos indesejados". Não há nada legitimamente popular a ser deixado para trás, nenhuma "matéria má" no povo, nenhum elemento que não seja passível de amor. Os alquimistas sabem que as cinzas são indispensáveis à Obra. Trata-se de uma via de amor e conhecimento.

II. A purificação não termina em um estado de contemplação de "Ideias descarnadas", como pensa o Platonismo distorcido. O grande mistério não está no albedo puro. A fase em vermelho exige a instanciação de todas as potências em uma nova forma luminosa. Trata-se de espiritualizar a matéria e corporificar o espírito. Em linguagem cristã, é a Encarnação e a deificação do mundo, o Grande Mistério do Amor. E assim, a ''elite espiritual'' que foi ao povo para mobilizá-lo como base toma ela mesma a forma e o corpo do próprio povo. Como diz René Guénon, ''a elite, ao descer de certo modo até o povo, encontra antes de tudo a vantagem da ''incorporação'', enquanto esta é necessária para a constituição de um ser realmente completo em nosso estado de existência. E o povo é para ela um ''suporte'', e uma ''base'', do mesmo modo que o corpo o é para o espírito manifestado na individualidade humana. A identificação aparente da elite com o povo corresponde propriamente, no esoterismo islâmico, ao princípio dos Malâmatiyah, que estipularam a regra de tomar uma aparência tanto mais ordinária e comum, inclusive grosseira, quanto mais perfeito e de uma espiritualidade mais elevada for seu interior, e de não deixar aparecer nunca nada dessa espiritualidade em suas relações com os demais homens. Se poderia dizer que, por essa extrema diferença entre o interior e o exterior, colocam entre esses dois lados de seu ser o máximo de ''intervalo'', se é permissível se expressar assim, o que lhes permite compreender em si mesmos, a maior soma de possibilidades de toda ordem, o que, ao fim de sua realização, deve desembocar logicamente na verdadeira ''totalização'' do ser."



5. DO IMAGINÁRIO DOS POVOS DO SUL


O Platonismo distorcido se desdobra em três erros graves. Primeiro, confunde a capacidade de contemplação ou intuição dos Universais com o ponto superior do processo iniciático e de realização. Mas conforme expus acima, a fase ulterior de Realização se dá na corporificação do espírito. A capacidade de intuição não está acima da conformação de um estado total de possibilidades, que só se dá na Encarnação e Deificação. Como Guénon diz de maneira muito apropriada: "[A realização descendente] se refere também à ideia de totalidade, em virtude mesma do que explicamos um momento atrás: no fundo, é uma aplicação do axioma segundo o qual ''o todo é mais do que as partes'', qualquer que seja ademais essa parte, e ainda que seja a mais eminente de todas. "

O segundo erro está em confundir o símbolo do Norte na Geografia Sagrada, lar meta-histórico dos homens capazes de contemplação dos Universais, com uma suposta superioridade perene do Norte Geopolítico e Global na história. O Norte é signo do Pólo, do locus equidistante em relação a todas as épocas e espaços. É o raio divino, ou o estado edênico, que não se reduz a nenhum local, povo, etnia, e época, pois está acima das contingências do mundo decaído, sendo para sempre no Tempo Mítico. Quando o Platonismo distorcido confunde o estado edênico com o Norte Global cai em um "nordicismo esotericista". Ouve o galo cantar, mas não sabe onde.

O erro-síntese do Platonismo distorcido que descambou para "nordicismo esotericista" é o dualismo metafísico. Ao não entender o grande mistério da matéria, da corporificação do espírito, da realização descendente e da Encarnação, cai em uma ''demonização'' do feminino e da substância. O motivo tradicional do Chaoskampf ['luta contra o Caos'] é absolutizado, quando na verdade não esgota sequer os mitos de Origem, levando à associação do feminino com uma tipo metafísico de ''mal''. O que é incompatível com o Rosacrucianismo, o Hermetismo, o Cristianismo, a Erosofia, e a Tradição de modo geral.

Ora, o Imaginário dos Povos do Sul é regido pelo Eros Sagrado e pelo Amor.



6. DO APOLÍNEO E DO DIONISÍACO





O mesmo dualismo tende a considerar Apolo e Dionísio como deuses imobilizados, cada um deles responsável por uma área da realidade, e sem imbricação possível. Pelo contrário, impõem a estes deuses, e às realidades que denominam, uma oposição férrea, típico da análise dualista. Mas todo dualismo que não deixe um espaço para conciliação e complementaridade é falso no Mundo da Tradição.

O professor Alexandre Sugamosto demonstrou que "Giorgio Colli (1992), por exemplo, defende que o “espírito apolíneo” representa, de fato, a ligação com a palavra viva da sabedoria. Contudo, ele argumenta que Nietzsche achatou as possibilidades de Apolo quando não percebeu que a sabedoria também tem um aspecto “feroz” e “distante”. Em certa medida, o conhecimento leva em seu imo uma faceta destruidora, na medida em que irrompe diante de determinadas ilusões espirituais ou intelectuais. Ademais, Nietzsche trata Apolo e Dioniso como deuses antitéticos. Segundo Colli, no entanto, as origens orientais de Apolo revelariam uma ligação com manifestações “xâmanicas” e “extáticas” e daí sua capacidade de curar, ver o futuro e fazer profecias (COLLI, 1992, p. 15). Como as loucuras proféticas e a loucura dos mistérios são regidas, respectivamente, por Apolo e Dioniso, não haveria oposição entre os dois deuses, mas poderes complementares de caráter mântico.

"Sendo assim, Apolo e Dioniso possuem uma afinidade fundamental, justamente no terreno da “mania”; juntos, eles esgotam a esfera da loucura, e não faltam bases para formular a hipótese-atribuindo a palavra e o conhecimento a Apolo, e a imediatez da vida a Dioniso- de que a loucura poética é a obra do primeiro, e erótica, do segundo (COLLI, 1992, p. 17)''



7. DE VOLTA À UTOPIA BRASIL




E assim, a Ilha Mítica e Encantada se torna de novo presente aos olhos do navegador, e mergulhamos mais uma vez no êxtase da Terra Sem Males. Como ensinava Ariano Suassuna, o cerne da Cultura brasileira é o mistério da Coincidentia Oppositorum, a União dos Contrários. O casamento do Sol e da Lua, e também o Apolo dionisíaco e o Dionísio apolíneo:

"é o choque violento, mas, ao mesmo tempo, a unidade terrificante do ser e da ruína; do universo exterior e real e de seu reflexo na consciência humana: do real, do imaginado e do imaginário; da liberdade e da fatalidade; da intuição e da reflexão; da vida e do amor como fatores e servos da Morte e das ligações da morte com o Amor – inclusive do amor sexual – como fatores de eternidade e de rejuvenescimento; da realidade implacável e severa, por um lado, e do real magnificado da Arte, por outro; da claridade enigmática e da escuridade sombria, lodosa e fascinante da Beleza – que é, ao mesmo tempo, abismo satúrnico e brilho solar – e assim por diante."

Mistério da harmonia dos contrários, de um povo mestiço de corpo e alma, e antropófago por natureza. Da embriaguez do pensamento, que revela e estabelece a verdade da Onça Castanha: o Reino Vegetal de Vênus e o Eldorado regido pelo Sol.



PÃO, TERRA, TRADIÇÃO!


André Luiz V.B.T. dos Reis
12 de abril de 2022

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