terça-feira, 8 de outubro de 2019

Coringa, parte I -- O temor do encontro e da emergência d'O Coringa






1. O temor e tremor de alguns críticos



Os méritos artísticos de Coringa [Joker, 2019], de Todd Phillips, são evidentes. É uma obra prima que não pode ser reduzida à atuação magistral de Joaquin Phoenix, provavelmente o melhor trabalho do ator e que já o coloca como um dos grandes favoritos no circuito de premiações daqui até o próximo Oscar.


E, no entanto, após sair consagrado do Festival de Veneza, o filme dividiu os críticos na América do Norte, que, em geral, buscam reduzi-lo a uma obra mediana levada nas costas por uma interpretação colossal.


Li dezenas de análises sobre Coringa, e aquelas que em algum grau desmereciam o filme podem ser classificadas, por alto, em duas categorias, mas que desaguam ambas no mesmo incômodo, como vou explicar.


Na primeira, estão os que batem na direção por se basear demasiadamente, segundo dizem, em Scorsese, mais especialmente em Taxi Driver e O Rei da Comédia. Nessa linha de raciocínio, Phillips levou pra tela uma versão minorada da cinematografia e dos recursos de seu ídolo, e o melhor é ficar com o original, que trabalharia de forma muito mais inteligente os temas polêmicos que carrega para a tela grande.


Estas considerações são inconsistentes. Fazer de Scorsese uma referência para uma obra escura, violenta, disruptiva e com uma vigorosa crítica social está longe de um equívoco. A homenagem é consciente, sincera e explícita. O próprio Robert De Niro, ator principal de Taxi Drive e o Rei da Comédia, faz o papel de um apresentador e humorista que é um exemplo e um modelo a ser seguido pelo personagem de Phoenix.


E ainda assim, nada há em Coringa que o torne uma mera cópia desses dois filmes. Pelo contrário, a assinatura de Todd Phillips é tonitruante. O estudo de personalidades desajustadas e castradas pelas conveniências sociais, o niilismo latente, e a explosão viril de anarquia já estavam presentes em Se beber, não case [Hangover], pelo menos para  aqueles que conseguiram compreender o filme, uma das melhores comédias dos últimos vinte anos.


Mas é justamente o namoro com a explosão de uma força só temporariamente reprimida, com a insanidade mascarada por uma normalidade ela mesmo doentia, e o apreço ao niilismo anárquico que torna boa parte de Hollywood desgostosa com o diretor. É aqui que esse tipo de crítica que se diz artística revela seu verdadeiro dissabor, que é político.


Essa segunda categoria de crítica se foca no suposto ''perigo'' da película. E ela parte tanto da direita, que sentiu certo apoio a um ódio à riqueza e ao capitalismo, quanto principalmente da esquerda, que percebeu uma defesa do populismo que hoje se tornou campo político importante na Europa, e a glorificação da violência como solução dos conflitos pessoais e sociais.


Nesse sentido, a comparação com a recepção de Laranja Mecânica [A Clockwork Orange] é inevitável. Kubrick também foi acusado de um ''sadismo pornográfico'' e sem sentido, de louvar a psicopatia de Alex, seu protagonista, e acabou censurado nos Estados Unidos e em outros países. Os críticos também avisaram que seu filme poderia inspirar crimes de gangues, assim como hoje dizem que Phillips pode justificar os incel.


Ora, varrê-los para debaixo do tapete, ou para mais fundo ainda na Deep Web, não resolve nem explica a existência dos Incel. Repudiar Coringa por essa ameaça enquanto se aplaude Taxi Driver aponta que o móvel do juízo negativo é a segurança, ou falta dela, proporcionada pelo tempo, ou por uma época em que o consenso liberal nunca foi tão contestado e nunca se sentiu tão ameaçado e frágil. De Niro vestiu o figurino do taxista Travis duas gerações atrás, enquanto Coringa é um fenômeno de massa palpável agora, nesse exato momento. Em ambos os casos, os dois protagonistas tornam-se heróis da sociedade retratada nos filmes.


Coringa consegue mergulhar em estratos mais profundos do que o clássico de Scorsese, o que se torna possível pela complexidade e profundidade do personagem principal, um verdadeiro arquétipo do caos, um profeta do Apocalipse. Esse é o perigo que, instintivamente, parte da crítica sente na obra de Phillips: ela expressa genuinamente todo o temor e tremor que o arquétipo em questão é capaz de causar.



2. O Coringa, a pessoa de Fleck e a cidade de Gotham



Por trás de seu estudo de personagem, do sabor psicológico, do mergulho nos distúrbios mentais, e até do aparente solipsismo, Joker narra um encontro. O desajustado Arthur Fleck, que não se conhecia e que caminha derrotado pelas ruas sem distinguir de todo fantasia e realidade, tem por complemento Gotham, suja, inabitável, marcada pelo completo abandono social, exploração, desigualdade, degeneração e corrupção das relações sociais e pessoais. No início, a cidade detesta o protagonista, e na mesma medida ele não consegue desenvolver nenhum vínculo significativo com a vida ao seu redor.


O primeiro ato nos mergulha em uma atmosfera de depressão. Arthur Fleck trabalha como palhaço para uma empresa pequena de entretenimento, e sonha em construir seu próprio show de comédia stand-up. Ele mora em um prédio caindo aos pedaços, em algum bairro imundo de uma cidade que se decompõe, cuidando da mãe, que é inteiramente dependente e não possui contato com nenhuma outra pessoa.


Penny Fleck, que chama o filho pelo apelido de ''Happy'' [Feliz] passa o tempo assistindo aos noticiários e enviando cartas pedindo ajuda a Thomas Wayne, o miliardário para quem trabalhou na mansão da família trinta anos atrás. O momento mais “terno” entre mãe e filho é quando se unem para ver toda noite o show do apresentador, comediante e entrevistador Murray Franklin [Robet De Niro], que a imaginação super-excitada de Arthur torna um modelo, o pai que ele nunca conheceu mas gostaria de ter tido.


Arthur tem problemas neurológicos, chegou a ser internado por um tempo no sanatório Arkham, e toma mais de sete remédios para doenças mentais. Sua dificuldade de distinguir imaginação e fato se tornam explícitas na pergunta que faz à psiquiatra com quem conversa no serviço social: ''sou eu, ou as coisas estão ficando mais loucas lá fora?'' A médica concorda que o clima está tenso.


Um dos aspectos mais marcantes do vilão das HQ se torna no filme um distúrbio neurológico. Arthur Fleck tem ataques de gargalhadas sempre que se sente agoniado, pressionado, tenso. Ele tenta, mas não consegue controlar o riso, que lhe causa dor, problemas de auto-estima. A risada não é signo de um prazer sádico, mas de trauma, doença e sofrimento. Arthur carrega um cartão explicando aos incomodados com seus surtos de riso que se trata de uma disfunção psicótica.


Esse pária arrasta sua magreza claudicante pelas ruas, como um derrotado. Ele tenta a todo custo se ajustar aos ensinamentos de sua mãe, ''coloque um sorriso no rosto e leve alegria aos demais'', e carrega um ar de ingenuidade. Essa vulnerabilidade o torna objeto de abuso até de seus aparentes amigos no trabalho, como Randall, que lhe dá alguma proteção, e o chama de ''meu garoto'', numa insinuação de que exige ou já exigiu favores sexuais de Arthur.


A frustração e solidão ganham cores escuras no filme. As roupas surradas de Fleck indicam a natureza cinzenta de sua existência, se casando com os conflitos e a corrupção das relações humanas de Gotham. Enquanto trabalha na rua como palhaço, ele é atacado por uma gangue juvenil de latinos. Randall, seu suposto protetor e amigo, lhe dá uma arma, ''sem que ninguém precise ficar sabendo'', ainda que ele conheça os problemas mentais de Arthur, e lhe pedindo um ''pagamento'' depois. Apesar de vítima da violência urbana, seu patrão desconta de seu salário o cartaz perdido durante a surra nas mãos dos trombadinhas.

Associado a esse contexto degradado, os ambientes internos em que Phoenix desenvolve seu personagem são pequenos, opressivos, com uma tonalidade esverdeada, bolorenta, que nos permite sentir o cheiro de mofo e a atmosfera sufocante. São nesses locais que Fleck tenta montar seu show, escrevendo anotações em um caderno que usa como diário e que testemunha seus problemas psicológicos. "O pior de se ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não a tivesse'', escreve em uma tentativa de piada. Arthur não sabe exatamente o que faz as pessoas rirem, ainda que visite stand-ups para anotar e aprender, para buscar entender qual é, afinal, a graça.


É importante ressaltar, porém, que Phillips não ''sociologiza'' o Coringa em nenhum momento. Não são esses problemas sociais que por si só vão levar à transformação assustadora de um ser fragilizado da hierarquia social em um Palhaço Assassino. As condições sociais são gatilhos da emergência do arquétipo, mas indiretamente. De certa maneira, mas em um grau muito poderoso, o Palhaço já estava lá, tanto na escura e corrompida Gotham como no fundo da mente de Arthur.

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