domingo, 2 de março de 2014

Sobre o fim do indivíduo e da liberdade

Na pólis grega, a esfera privada do homem, associada às famílias e 'clãs', era considerada quase que com uma expressão da vida animal, um terreno gerado pelas necessidades vitais de reprodução e sobrevivência, comuns a todos os homens, em que não havia justiça nem liberdade possível. Era uma dimensão da vida determinada pela violência e pela autoridade, exercida por um patriarca com poderes quase ilimitados sobre os seus e que, apesar disso, não era considerado livre no exercício dessa função. Somente alguns poderiam transcender esta esfera de modo a adentrarem um novo modo de existência, associado à vida política e à companhia de seus pares para o tratamento de temas ligados ao bem comum. 

Bem comum, e não vida comum. Esta última era ordinária, nada possuía de especial, impulsionada que era pela natureza mais baixa, mais passional, decorrente de uma ordem que se impunha aos homens. Somente aqueles capazes de vencer nessa esfera poderiam ascender a uma dimensão onde era possível tratar da Justiça, através das leis que regiam a vida cidadã da cidade, e do Bem, sendo capazes, segundo Arendt, de exercerem ação verdadeira. Nesta esfera não existia a autoridade, mas uma liberdade que tomava a forma extrema da igualdade entre os cidadãos, cujo instrumento era a do discurso persuasivo. Mais ainda, só aí  era possível falar de real individualidade, singularidade, alcançada por aqueles que se destacavam na política pelo discurso e em meio aos seus pares. Esta perspectiva estava evidentemente associada à possibilidade do heroísmo, profundamente arraigada na mentalidade grega desde priscas eras. A cidadania esteve sempre associada aos guerreiros e à virtude da coragem. O cidadão, o guerreiro que havia sido vitorioso na esfera privada, não apenas havia ultrapassado a mera luta pela sobrevivência, mas devia, por isto mesmo e como marca dessa real superação, ser uma desapegado da própria vida. Nesta condição participava da comunidade política e da Ecclesia. É nesta clave de sacralidade e via heroica que se entende o apego dos cidadãos gregos pela liberdade. Ela era o salto de uma sacralidade natural, e que continuava praticamente intocável, para outra sacralidade, de natureza fortemente aristocrática, que se expressava por meio da comunidade política de guerreiros-cidadãos aptos a aplicar a palavra com outro grau de eficácia, e que possuíam plena consciência que sua igualdade repousava em um mundo necessariamente desigual.

Retirados do contexto que lhe conferiam sentido, certos conceitos desse modo peculiar de organização nada podiam senão gerar distorções, falsidades e anacronismos. A liberdade no mundo contemporâneo não era um espaço dos que, ultrapassando o mundo legítimo do exercício da autoridade e violência, se posicionavam em nível a ele transcendente, mas era pensada como um locus de proteção contra a intervenção do Estado, cuja estrutura ainda refletia uma forma aristocrática contra a qual as novas forças, de natureza e visão predominante vaysha, e moldados pelo naturalismo e mecanicismo modernos, se insurgiam, visando a sua derrubada. O modo de levar à frente a rebelião contra essa noção hierárquica foi a bandeira de uma igualdade que só poderia ser fundamentada naquilo que havia de mais geral entre os homens, justamente a vida comum da esfera da sobrevivência e reprodução sociais, principalmente em seu âmbito econômico, também tipicamente associada, em suas dimensões mais profundas, à casta vaysha. A própria noção de indivíduo, que já vinha sendo transformada nos séculos anteriores, foi nivelada com a de um ente racional movido para a satisfação de seus interesses próprios, e o logos foi tornado em uma razão instrumental e abstratizante cuja função foi apropriada pelos donos do Estado. Os mitos de fundação do Estado, por sua vez, legitimavam as novas concepções, tornando-o em uma associação deste novo tipo de indivíduo, e, portanto, instrumento da administração e proteção destes seus interesses. 

O mundo que emergiu destes novos elementos não reabilitou a liberdade nem tampouco a política, mas a submergiu no campo social-comportamental, que funciona a partir de máscaras e papéis funcionais e associativos, tornando a esfera do ''aparato político'' e da ''burocracia'' na administração coercitiva de um grande oikos. A vida privada anterior invadiu e substituiu o espaço público, se confundindo com ele, associando-o com a obediência a autoridades constituídas e associadas a um tipo de monólogo técnico-científico ligado à satisfação daquilo que no homem mais o aproxima da existência animal. Era a imposição do homo economicus e a invasão das paixões na esfera ''política'', cuja função agora é regulamentá-las. O outro pólo desse mundo social que quase a tudo penetra foi aquele gerado no mundo moderno e apurado cada vez mais no decorrer dos séculos: o da intimidade subjetivista com o qual alguns filósofos iluministas, idealistas e românticos confundiram a possibilidade de singularidade, individualidade e integração da personalidade humana, e para a qual foi empurrada a anterior ideia de bem. Uma pseudo-identidade que, em seu caráter desintegrador, funciona apenas para parir desejos que alimentarão ainda mais o mundo social, adestrador e normatizador de comportamentos.

Na perspectiva aristocrática, heroica e sacra da Grécia Clássica, o mundo contemporâneo que nascia e crescia seria descrito tão somente como uma manifestação bárbara, como uma grande comunidade de escravos. A civilização nascente, em um processo descrito por Norbert Elias, se tornou definitivamente a anti-civilização. Quando Gramsci afirmou que o indivíduo começou a morrer com o mundo clássico e que a civilização contemporânea fez nascer o homem-massa, cujo triunfo seria condição sine qua non para o socialismo, nada mais fazia senão descrever a nova realidade com perspicácia muito maior que as ficções do individualismo liberal.




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