sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O REINO DOS BOZÓS, OU: O QUE ESPERAR DO GOVERNO BOLSONARO? -- Parte II: o campo neoliberal e a base social conservadora-popular


Segunda parte da comunicação de André Luiz V.B.T. dos Reis, membro da Organização Popular -- Nova Resistência, em evento organizado com a Mobilização Islâmica, no Rio de Janeiro, dia 29 de novembro de 2018


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PARTE II - O CAMPO NEOLIBERAL E A BASE SOCIAL CONSERVADORA-POPULAR





A destruição do sistema de poder dominante permitiu que as forças neoliberais e filo-americanas se reagrupassem em torno de um candidato popular, um político que soube manipular a ojeriza moral que a maior parte da população brasileira sentia pela agenda progressista e cosmopolita incentivada por PT e PSDB.

Jair Bolsonaro vinha construindo sua imagem contra a militância LGBT. Orientado também pelos filhos, ele pôde se aproximar de lideranças liberais, evangélicas e sionistas, se tornando apto para atrair para sua candidatura as organizações interessadas em uma reorientação do Brasil nesse cenário internacional cada vez mais minado.

Para que compreendamos o próximo governo Jair Bolsonaro é fundamental vê-lo em larga medida como uma continuidade da agência internacional e nacional interessada em um realinhamento estratégico da geopolítica brasileira, uma americanização de nossa sociedade e um choque liberal em nossas instituições e economia.

Ressalto, no entanto, que essas forças se aglutinaram em torno da candidatura Jair Bolsonaro, mas não se confundem inteiramente com ela. Se podemos afirmar que o sucesso do próximo governo representaria uma vitória considerável para essa agenda que eu considero anti-nacional, não podemos, no entanto, afirmar que o fracasso do governo redundaria em sua derrota.

Os grupos em torno de Bolsonaro podem muito bem usar as possíveis falhas do Presidente eleito para fazerem avançar a proposta filo-americana em torno de algum novo nome. Essa é uma possibilidade aberta. Não é impossível supor uma futura candidatura de Sérgio Moro, de João Dória ou outro elemento passível de ser instrumentalizado e capaz de instrumentalizar as mesmas forças.

Na minha leitura, o governo de Bolsonaro é uma fase do projeto anti-nacional pela americanização e liberalização, leia-se: pela ocidentalização da sociedade brasileira. Uma ocidentalização que vinha sendo levada a efeito a passos de formiga pelo PT e pelo PSDB, mas cuja marcha poderá se acelerar no próximo mandato presidencial.

Mas, pela natureza do processo de derrubada do sistema até então vigente, essas forças “ocidentalizantes” não consolidaram sua hegemonia. Elas possuem contradições internas, contradições umas com as outras e também contradições com sua própria base social. Esses pontos de conflito lançam dúvidas sobre sua possibilidade de sucesso, pelo menos a curto ou médio prazo.

Vou falar sobre os riscos dos próximos anos por meio de uma rápida análise das orientações e campos que disputam espaço no novo governo. Esses campos são formados por grupos que interseccionam e se friccionam em alguma medida. Os encontros e desencontros entre os grupos que participam desses campos podem impulsionar a popularidade ou, pelo contrário, paralisar a ação do governo.

Além disso, esses campos são de certa forma mais ou menos essenciais para o sentido final do governo Jair Bolsonaro. Eles representam, de certa maneira, círculos mais ou menos concêntricos em torno do Presidente eleito. Eles estão ligados ao Presidente eleito por laços orgânicos.

Vamos imaginar então que estejamos entrando num palácio, na casa em que vive o nosso futuro governante. Vamos conhecer essa casa, partindo do seu exterior até atingirmos cômodos mais internos, aqueles em que Bolsonaro se sente mais à vontade, em que ele abre seu coração.

O primeiro campo, que representa o círculo mais exterior, é o econômico.  Jair Bolsonaro propôs uma aliança com o mercado financeiro. Essa aliança se tornou factível por causa do peso do nome de Paulo Guedes. A perspectiva econômica de Bolsonaro sempre criou desconfiança nos agentes do sistema financeiro, que a consideravam herdeira do nacionalismo estatista militar.

Paulo Guedes, pelo contrário, é um legítimo representante da escola de Chicago e prometeu, durante a campanha, uma ação ultra-liberal por parte do novo governo. O futuro super-ministro da economia é um dos pilares do governo Bolsonaro. Ele chegou a prometer o inexequível, como a privatização de todas as estatais e de todo imobiliário da União. Era um modo que encontrou de enfatizar o compromisso com o choque neoliberal.


O planejamento econômico de Paulo Guedes passa pela aposta na diminuição do Estado, com venda de estatais, controle de gastos públicos e redução dos cargos comissionados. Existe o objetivo de realizar uma abertura comercial também, com a leitura de que, de alguma maneira, se aumentaria a competitividade da indústria e se diminuiria os preços para a população. Paulo Guedes propõe também uma forte redução da carga tributária, acompanha de reformas institucionais importantes. Para levar adiante esse plano neoliberal, ele montou uma equipe coesa e afinada com seu discurso e unificou ministérios sob seu comando.

Para manter a lua de mel com o “mercado”, o governo Jair Bolsonaro terá de mostrar sua capacidade de executar uma Reforma da Previdência que satisfaça a exigência dos agentes financeiros por ajuste fiscal e por diminuição do Estado. Era desejo de Guedes estabelecer uma Previdência residual e substituir o sistema atual pelo de capitalização, entregando a aposentadoria dos trabalhadores nas mãos dos rentistas. A menina dos olhos do super-ministro da economia a esse respeito é o Chile. Mas a proposta parece impossível de ser adotada.

Para realizar uma Reforma da Previdência ao gosto do choque neoliberal, o governo Jair Bolsonaro teria de gastar uma enorme parte de seu capital político. Teria de demonstrar também imensa capacidade de articulação. E eis aqui um dos motivos de maior desconfiança nas possibilidades do Presidente eleito. O grupo que se encontra no poder é inexperiente nas lidas político-partidárias. Ele ainda tem de encontrar os meios que lhes permitam negociar a contento com o Congresso. Não se sabe até que ponto Jair Bolsonaro é capaz da composição de um arco de alianças sólido.

O próprio Paulo Guedes é um novato na gestão pública. Ele é reconhecidamente um bom estrategista de mercado, mas não parece ter vocação para as operações diárias. Nunca se destacou como executor de planos. Nunca participou da administração de um governo. O acúmulo de áreas da máquina pública nas mãos de Paulo Guedes pode vir a ser menos um sinal de força do super-ministro do que de fragilidade do próximo governo. Se Paulo Guedes não demonstrar competência na gestão da máquina, pode acabar paralisando a área econômica e levando à derrocada do governo.

Outro complicador é o fato de boa parte da base partidária de Bolsonaro ser oriunda do serviço público. Ela possui larga influência de setores do judiciário, das polícias e das forças armadas, que respondem por uma proporção considerável do suposto déficit da Previdência. Para impor uma reforma satisfatória para o “mercado”, Bolsonaro teria de contrariar interesses bastante arraigados em sua própria base política, o que está longe de ser fácil. Contradições como essa foram responsáveis pelo descrédito do governo PT, incapaz de um equilíbrio entre sua agenda neoliberal e as expectativas dos sindicatos e do funcionalismo dos quais dependia eleitoralmente.

Se o campo econômico não apresentar uma Reforma da Previdência convincente para o “mercado”, a lua de mel vai acabar muito rapidamente.  A “confiança” dos investidores vai se esvair, e já no início do segundo semestre do próximo ano teremos uma piora considerável nas expectativas econômicas.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao programa de privatizações que Paulo Guedes prometeu executar. Peças importantes na base política de Bolsonaro, dentre elas alguns generais associados ao novo governo, já manifestaram sua oposição à venda de algumas empresas. Paulo Guedes vai ter grande dificuldade de apaziguar o sistema financeiro nesse terreno.

Poderá extinguir ou vender empresas e agências públicas sem grande lucratividade ou abrir concessões privadas em algumas áreas, mas é improvável que atraia investimentos capazes de apontar para uma redução do déficit público com esse tipo de medida. A redução dos cargos comissionados pode também comprometer a eficiência da máquina pública, gerar forte resistência da burocracia, e afetar a qualidade da gestão.

Existe também um descontentamento de setores econômicos importantes com a retórica de Paulo Guedes. A Fiesp tentou deixar a indústria de fora do super-ministério colocado nas mãos do “Chicago Boy”. Os industriais investiram na candidatura de Bolsonaro por causa das promessas de diminuição dos encargos trabalhistas. Mas já perceberam que essa direção do governo não está lá tão garantida. Eles podem ter caído no canto de uma sereia, que lhes mentiu sobre menores impostos mas que promete abrir violentamente o mercado brasileiro para os importados. A indústria brasileira, que vem sofrendo com a arquitetura neoliberal da economia, depende fortemente do protecionismo econômico e do Mercosul, que responde por boa parte de nossa venda de manufaturados.

Se realizar de fato uma abertura comercial, Paulo Guedes pode vir a dar o tiro de misericórdia nos setores industriais sem, no entanto, gerar benefícios concretos para a população. Benéfica ou não, o Brasil perdeu o barco da abertura comercial. O mundo entrou numa era de guerra comercial e de protecionismo. A abertura comercial pode destruir a indústria, fazendo com a que a Fiesp pague o pato. Mas promete também colocar o Brasil na contramão do que está sendo realizado pelas principais potências, inclusive o governo de Trump, que inspira os sonhos de Bolsonaro.

O segundo campo, um pouco mais próximo das raízes do pensamento de Bolsonaro, reúne os agrupamentos que representam, em algum grau, a base social popular responsável pela vitória do candidato do PSL. A imprensa se refere a eles por meio dos apelidos de “bancadas da bala”, “da Bíblia” etc. Esses setores foram atraídos por causa da militância de Bolsonaro contra as pautas identitárias que chamo de pós-modernas, como é o caso do lobby LGBT, e por sua defesa de pautas consideradas importante pela moralidade do “homem comum”. São evangélicos, anti-feministas, opositores do chamado “gayzismo”, representantes em graus variados do conservadorismo moral da população. Também fazem parte desse campo os agentes de tendência liberal que identificam essas pautas identitárias com uma suposta doutrinação comunista ou esquerdista realizada nas escolas e nas universidades. São também propositores de um endurecimento da legislação penal e do combate incisivo contra a criminalidade nas grandes cidades, além da derrubada do Estatuto do Desarmamento, que restringe fortemente a posse e o porte de armas no país.


Esse vetor é um dos mais importantes para a manutenção da popularidade imediata do Presidente eleito. É provável que Bolsonaro invista imediatamente nessa direção como forma de compensar a pauta impopular da Reforma da Previdência. Seria uma maneira de manter sua militância inflamada nas redes sociais. O confronto contra a comunidade acadêmica, a patrulha de professores no ensino de base, a redução da maioridade penal, mudanças no regime penitenciário, atendimento das reivindicações das lideranças religiosas e outras medidas serão usadas como forma de mobilizar essa base eleitoral.

Existe um grande potencial pra Bolsonaro nesse terreno. Se ele for competente na manutenção de determinadas promessas feitas às classes populares, pode garantir ao governo fôlego mesmo se fracassar em outras áreas. Embora a mobilização desses grupos supra-partidários não garanta a governabilidade do dia a dia, ela é a verdadeira teia de ligação de Bolsonaro com sua massa, quando o encaramos como um líder popular.

Sérgio Moro, que se tornou herói popular por conta de sua agência anti-corrupção, pode ser um grande aliado de Bolsonaro nesse campo. A República de Curitiba chegou ao poder nesse governo, e pode continuar usando o aparato da Polícia Federal e do Ministério Público para preencher as manchetes de notícias de caça a corruptos, principalmente adversários políticos. A oposição petista deve continuar sofrendo e sangrando com Sérgio Moro no Ministério da Justiça, para dar um exemplo.

Se Bolsonaro investir nessa direção, deve gerar conflitos tanto com a comunidade acadêmica quanto com gangues criminosas que dominam os presídios e favelas do país. Esses conflitos podem paralisar o governo, se ele se intimidar ou não demonstrar competência para sustá-los ou no mínimo gerenciá-los; mas podem também aumentar a popularidade do governo, angariando apoio da população para medidas autoritárias. Imaginemos um conjunto de rebeliões do PCC e do CV no sistema penitenciário.  O capital político do governo pode derreter diante das críticas, do medo e da hesitação; mas pode se fortalecer se a população comprar uma narrativa de guerra, de “vai ou racha”, e vislumbrar em Bolsonaro uma disposição de enfrentamento.

É bom repetir, no entanto, que essa mobilização de suas bases sociais e das bancadas que as representam não resolve o problema da governabilidade. Uma das promessas que Bolsonaro parece querer cumprir é a de não lotear os cargos públicos. Ele quer o fim do presidencialismo de coalizão consolidado no país por Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e que consiste no “toma-lá, dá-cá”. Ou seja, troca de votos no Congresso por redes clientelistas na máquina pública. A mudança no relacionamento entre o Executivo e o Legislativo foi vendida durante a campanha como um meio de combate contra o sistema corrupto que teria se apoderado da Nova República.

Falamos aqui de um tema importante para a base social e popular de Jair Bolsonaro, e ao mesmo tempo uma provável fonte de dores de cabeça para o novo governo. Só três presidentes tentaram mudar seriamente o padrão de relacionamento com o Parlamento vigente na Nova República. O primeiro foi Fernando Collor de Mello, que pagou a ousadia com um impeachment. O segundo foi o primeiro governo de Lula, que em vez de cargos estabeleceu uma mesada para congressistas – o famoso Mensalão --, e por isso quase chegou ao fim ainda no segundo ano de seu mandato. O terceiro foi Dilma Roussef, que brigada com Eduardo Cunha e com o “Centrão” não conseguiu sequer um terço de votos na Câmara para colocar fim ao processo de impeachment que vinha sofrendo.

Bolsonaro promete contornar essa questão apelando para uma espécie de “política dos governadores”. Sabendo que os Estados estão falidos, que quase todos eles precisam renegociar dívidas com a União, o Presidente eleito pretende trocar apoio a essas demandas por votos das bancadas estaduais no Congresso. Essa nova política dos governadores pode vir a funcionar no início do próximo ano, quando os novos eleitos vão estar com o pires na mão e o Presidente no ápice de sua popularidade. A partir do segundo semestre, porém, pode se tornar um mecanismo insuficiente para garantir a governabilidade, jogando o governo mais uma vez em uma encruzilhada.


[continua]

O REINO DOS BOZÓS, OU: O QUE ESPERAR DO GOVERNO BOLSONARO? -- parte I: A crise da Nova República paulistocêntrica

Comunicação de André Luiz V.B.T. dos Reis, membro da Organização Popular -- Nova Resistência, em evento organizado com a Mobilização Islâmica, no Rio de Janeiro, dia 29 de novembro de 2018


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PARTE I - A CRISE DA NOVA REPÚBLICA ''PAULISTOCÊNTRICA''




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Caros camaradas,

Muitos de nós se surpreenderam com a maneira como o processo eleitoral desse ano se desenrolou. Há pouco mais de um ano, as possibilidades de Bolsonaro vencer o pleito não pareciam tão grandes. Não que àquela altura ele já não demonstrasse competitividade ou uma base eleitoral cada vez mais sólida. Mas existiam obstáculos até então considerados insuperáveis para o sucesso da candidatura de Bolsonaro ou de qualquer outro pretendente.

Por exemplo:

As expressões retóricas algo caricatas e em desacordo com os padrões de moralidade e costumes veiculados pela grande mídia; a predileção do sistema financeiro – aquele conjunto de agentes ao qual costumamos nos referir, de maneira um tanto impessoal, como “o mercado” --, a predileção do sistema financeiro, dizia eu, por outros candidatos, como era o caso do representante da direita centro-liberal Geraldo Alckmin, partido preferido dos grandes grupos econômicos sediados em São Paulo, ou ainda Marina Silva – candidata social-liberal que apresentava uma equipe econômica recheada de nomes fortes no governo de Fernando Henrique Cardoso; a ausência de uma máquina partidária poderosa capaz de angariar palanques e votos nas periferias das grandes metrópoles ou nas cidades do interior; e a escassez de tempo no rádio e na TV, considerados essenciais em uma campanha que prometia ser curta.

Todos esses empecilhos aparentemente intransponíveis foram vencidos de modo impressionante. Bolsonaro venceu sem precisar nem mesmo fazer campanha, impossibilitado que estava pela facada recebida em Juiz de Fora.

Como isso foi possível?

As condições indicam um afrouxamento dos mecanismos que até então mantinham o processo democrático sob o controle de grupos que costumo chamar de “paulistocêntricos”. Durante a existência da Nova República, houve um domínio dos grupos intelectuais, midiáticos, econômicos e sociais cuja base de difusão é a capital paulista. Os dois principais representantes dessas forças no sistema partidário eram o PSDB e o PT, que polarizavam as eleições presidenciais desde 1994.

Essa polarização e as diferenças entre PT e PSDB em alguns âmbitos não afetavam a convergência de fundo. Os dois partidos manifestavam um consenso mais amplo cujas principais forças tinham São Paulo por base. As divergências, por importantes que pudessem parecer, não pareciam arranhar os fundamentos básicos do sistema político hegemônico.

Leonel Brizola, líder trabalhista herdeiro do getulismo, já apontava para a coincidência do projeto de PT e PSDB ainda em 1994, em um momento em que poucos de nós enxergavam a semelhança estrutural da perspectiva dos dois partidos. Em entrevista ao programa Roda Viva naquele ano, Brizola declarou que Lula e Fernando Henrique estavam se acotovelando para poderem realizar o mesmíssimo programa neoliberal. Houve quem se assustasse com esse veredito. Afinal, tratava-se de um partido social democrata com uma ala desenvolvimentista poderosa, e de um partido trabalhista tido por muitos como socialista. Como podiam ser chamados de neoliberais?  Brizola explicava de maneira sucinta:  “Lula vem por baixo, Fernando Henrique vem por cima”, mas os dois tem o mesmo desenho: “quando chega nos PhDs, todos ficam iguais”.

O líder pedetista chamava atenção para a uniformidade básica de pensamento dos intelectuais que conduziam os dois partidos hegemônicos. Eram acadêmicos da USP, talhados na sociologia de Sérgio Buarque de Hollanda e em teorias de desenvolvimento econômico dependente; influenciados pela esquerda social-liberal europeia e com sua agenda de apoio a identidades pós-modernas [que é como chamo o movimento feminista radical, a ideologia de gênero, o movimento LGBT, a militância abortista etc.]; comprometidos com a arquitetura econômica neoliberal propagandeada pelo consenso de Washington e que implicava na subordinação da esfera produtiva à rentista; e que possuíam uma intenção clara de “ocidentalização” do Brasil.



De fato, os governos do PT e do PSDB, apesar de divergências, não fugiram desse script. Foram zelosos na manutenção do tripé macroeconômico criado por Armínio Fraga; zelosos na “financeirização da economia”, que se tornou refém de um cartel de bancos e atrelada à rolagem de uma dívida pública muito suspeita; executores de reformas graduais na Previdência Social e de uma flexibilização, também gradual, dos direitos trabalhistas.

Esse arcabouço político que dominava a Nova República, e que estou chamando aqui de “paulistocentrismo”, não estava isento, porém, de graves contradições. As bases sociais dos dois partidos impossibilitavam qualquer radicalismo na execução do projeto neoliberal e “ocidentalizante”. Ele tinha de ser, necessariamente, gradual e repleto de concessões. Em um cenário de acirramento do conflito geopolítico e de crise econômica internacional, essas contradições e esse gradualismo deram oportunidade para que forças, de origens diversas, derrubassem a ordem estabelecida.

Entender as linhas de forças envolvidas na queda do sistema “paulistocêntrico” vai nos ajudar a compreender pontos chaves do governo Jair Bolsonaro.

O cenário internacional mudou muito rapidamente na última década. Uma crise econômica em 2008 abalou o sistema financeiro global, afetando primeiro os Estados, depois a Europa e, a partir de 2013, os países “emergentes”, aqueles que dependiam mais da exportação de commodities.

Houve também uma intensificação da disputa geopolítica. Os Estados Unidos encontram os limites de sua ação globalista e passaram a conviver com a expansão de novas potências. A Rússia reagiu à tentativa da OTAN em invadir o espaço pós-soviético. E a China projeta cada vez mais seu poder para fora da Ásia, com investimentos e parcerias econômicas e militares na África e até mesmo na América do Sul.

A reação estadunidense levou a uma série de tentativas de mudanças de regimes e de guerras: A partir de 2011 surgiram as “primaveras árabes”, a guerra na Síria e a guerra na Ucrânia. Associadas a problemas internos e condições específicas de cada uma dessas regiões, todos esses movimentos receberam algum grau maior ou menor de ingerência dos Estados Unidos.

Em meio ao furor da execução da estratégia nacional americana, o Brasil se tornou alvo de um imenso esquema de espionagem revelado pelo Wikileaks. Milhões de e-mails brasileiros foram devassados, políticos, assessores presidenciais, executivos das principais estatais e inclusive a Presidente da República foram grampeados e monitorados. O Brasil se tornou um dos principais alvos da espionagem americana em 2013, segundo os documentos confidenciais vazados pela wikileaks.

No mesmo ano, passamos por uma série de mobilizações populares, iniciadas com as “jornadas de junho”. Nascidas de uma manifestação contra o aumento do preço da passagem de ônibus em São Paulo, logo desembocaram em protestos maciços com reivindicações difusas. Diante da estupefação do governo, essas manifestações possibilitaram algumas movimentações importantes dentro do espectro político.  Elas estabeleceram uma narrativa anti-corrupção, de imenso repúdio aos principais partidos. Foi ali também que a grande mídia se mobilizou para vetar a PEC 37, um projeto que limitava o poder de investigação à Polícia Federal e à Polícia Civil dos Estados. Procuradores do Ministério Público e as grandes empresas de informação aproveitaram-se dos enormes protestos populares para barrar essa emenda de forma definitiva. Em 25 de junho de 2013, a PEC foi rejeitada com 430 votos contrários e apenas nove favoráveis.

 Essa aliança entre o Ministério Público e a grande mídia já prefigurava a República de Curitiba que surgiria pouco tempo depois. Sem aquela vitória, possibilitada pelas “jornadas de junho”, a Operação Lava Jato não teria sido possível. Essa Operação, em que pese seus méritos e deméritos, foi conduzida por procuradores e juízes com grande proximidade intelectual, ideológica, pessoal e profissional com os Estados Unidos da América. Parte da operação foi viabilizada por trocas de informações com o Departamento de Estado americano, o mesmo país que espionou maciçamente o Brasil no período, espionou e-mails de cidadãos brasileiros, executivos de estatais, políticos e, vejam vocês, a Petrobras.

Notem que não estou afirmando aqui que os esquemas de corrupção trazidos à baila pela Força-Tarefa da Lava Jato não existiam, que os políticos são inocentes ou que a luta contra a corrupção não é uma necessidade. Tampouco estou afirmando que os líderes da Força-Tarefa da Lava Jato estão no bolso da CIA. Não há evidências concretas disso. Mas elas tampouco são necessárias. Basta analisarmos as linhas de força por trás de todos esses eventos da política nacional para notarmos um crescente fortalecimento de grupos ligados de diversas maneiras aos Estados Unidos da América.

Em 2015, matérias jornalísticas noticiavam o apoio do Atlas Network a organizações brasileiras. O Atlas Network é um think tank liberal que tem entre seus financiadores os irmãos Koch, bilionários americanos do setor de petróleo e gás. O Instituto Millenium foi uma dessas organizações financiadas. Um dos seus fundadores, o economista Paulo Guedes, treinado na escola de economia de Chicago, uma das bases do neoliberalismo militante, se tornou peça fundamental na ascensão de Jair Bolsonaro, como veremos a seguir.

Sem pretender me tornar cansativo, esses indícios estabelecem uma chave de leitura fundamental para o nosso tema de hoje. Eles apontam, de maneira muito clara, no meu entendimento, que a crise econômica e política brasileira levou a um ambiente propício para uma intervenção de agentes internacionais e nacionais interessados em realizar um choque neoliberal no Brasil e em realinhar o país aos Estados Unidos em meio aos conflitos geopolíticos do momento.

Este é um ponto que considero fundamental: a vitória de Jair Bolsonaro se tornou possível porque a República “paulistocêntrica” foi abalada. Esses abalos, por sua vez, se deveram a facções estrangeiras e brasileiras que se uniam em prol do neoliberalismo e do filo-americanismo em uma época de acirramento do conflito geopolítico global.

Eis aí a urdidura que podemos vislumbrar em meio aos golpes que, gradualmente, solaparam as bases de poder do PT e do PSDB, desacreditaram o sistema partidário, desmontaram a autoridade das grandes empresas de informação, criando um clima favorável a uma política voltada para a radicalização da americanização, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, “ocidentalização” do Brasil.

Antes de continuar, deixe que eu me explique. A derrubada do sistema político-partidário da Nova República não é de todo ruim. Não pode ser encarada apenas por seu aspecto negativo. Tratava-se da hegemonia de um projeto antipatriótico, e que a longo prazo conduziria aos mesmos resultados pretendidos pelos pólos de poder que o derrubaram. No entanto, dadas as forças sociais que sustentavam os partidos responsáveis pelo sistema, o projeto neoliberal não poderia ser senão gradualista, sujeito a retrocessos e contradições inadmissíveis para a geopolítica norte-americana e as forças liberais. O problema, portanto, não é a queda do sistema “paulistocêntrico”. Não se trata aqui de defender o PT e o PSDB, longe disso – Deus nos livre! O problema é o programa neoliberal e filo-americano ainda mais radical daqueles que o derrubaram.


[continua]

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Como o gradualismo reformista matou o PT, ou: da necessidade de coragem caudilhesca



''Ao subir a rampa do Planalto, sentar na cadeira e pegar a caneta, meu primeiro ato como presidente será suspender a concessão da GLOBO, porque entendo que lhe foi dada de forma inconstitucional, com capital privado internacional''

Leonel Brizola





De modo recorrente, sou criticado por alguns por não ter a mesma leitura negativa que eles possuem do PT. De certo modo, há uma ironia aqui. Durante a minha vida toda tive ojeriza pelo PT. Cresci em tempos de grande polarização e debate político, os anos 1980 da 'redemocratização'. Minha família possuía forte posição trabalhista, meu pai era 'pedetista' e 'brizolista'.


Nesse cenário, desenvolvi desde cedo uma perspectiva bastante negativa sobre o significado político do PT, que só aumentou com a dolorida derrota de Brizola para Lula nas eleições de 1989. Foi por meio por cento dos votos válidos, e impediu Brizola de disputar o segundo turno contra Collor. Naquela apuração, que era ainda manual e demorava semanas, acompanhei as divulgações periódicas dos resultados com a mesma paixão com que assistia jogos do Flamengo.


Durante toda a década de 1990 me recusei a apoiar o PT em qualquer eleição que fosse. Tenho título de eleitor desde 1994, e não votei no partido para eleições municipais, estaduais ou federais. Lembro que o voto dos meus pais migrou de Brizola para Enéas em 1994, as primeiras eleições presidenciais em que pude votar -- e meu escolhido foi Brizola. Depois de 1994, anulei meu voto tanto nas eleições de 1996 quanto nas de 1998.


Só três vezes depois de 1994 me recusei a anular o voto, e só duas vezes ele foi dado ao PT. No primeiro turno das eleiçoes municipais de 2000 votei em Benedita da Silva. Mas não por causa da dita cuja, nem por causa do PT. É que essa senhora se encontrava em uma peleja indefinida contra César Maia, para decidir quem iria ao segundo turno contra Conde. Eu queria tirar César Maia da disputa e votei na única que poderia fazê-lo. Hoje vejo que estava errado, César Maia era a melhor, e não a pior opção para a cidade. O ponto aqui é que se fosse uma pedra ameaçando Maia no primeiro turno, eu teria votado na pedra, é assim que deve ser lido aquele meu voto. A segunda vez foi no segundo turno das eleições presidenciais de 2002. Ali votei em Lula com a intenção explícita de impedir que o PSDB continuasse no poder. Eu não me conformava com qualquer possibilidade de eleição do vampiro José Serra. Foi a única vez que votei de fato no PT e em Lula de maneira consciente e politicamente engajada, motivado antes de tudo pelo meu ódio ao neoliberalismo paulistocêntrico tucano. Na ocasião, cabe frisar, eu estava correto. Era o melhor voto. A terceira vez em que evitei o voto nulo foi no referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, ocasião em que votei 'não', e, portanto, a favor do comércio de armas e contra a posição do governo Lula e do 'beatiful people' progressista mobilizado pela Rede Globo.


Durante o período de hegemonia petista, sempre fui crítico e oposição ao partido. Todas as críticas repetidas ad infinitum ao petismo eram feitas por mim naqueles anos. Minhas posições políticas mudaram ao longo desse tempo, eu cheguei a flertar com o liberal conservadorismo entre 2005 e 2007, e depois com a social democracia, antes de retornar a posturas dissidentes. Mas a crítica ao PT foi sempre a mesma: cheguei a criar o epíteto de ''Lulla-lá'' depois do mensalão -- ação política capitaneada por José Dirceu e à qual vejo hoje com bons olhos, por sua coragem e desprezo pela democracia representativa brasileira. Chamei o governo petista de neoliberal, de subordinado a interesses financeiros, de progressista na ordem moral e portanto colonizado pela esquerda pós-moderna etc. etc. etc. Minhas críticas se estenderam no tempo a ''Dilma-má'', como qualquer um que tenha acompanhado minhas postagens sabe.


E, apesar disso, sou acusado de ''petista''. A única razão convincente é a de que não sou engolido em minhas análises e posições recentes pelo ódio ao PT, que grassa e corrói o fígado de muitos conhecidos meus. Como raras vezes li justificativas respeitáveis e coerentes teoricamente para esse antipetismo, só posso encará-lo como um misto de preconceito de classe; um repúdio ao socialismo,  muito comum em meios dissidentes -- e que se constitui num dos erros mais crassos da terceira teoria política quando numa correta análise das reais forças e confrontos na sociedade moderna --; equívocos na leitura da realidade do país; uma certa tendência psico-emotiva meio torpe e que leva alguém a sempre querer dar aquele chutinho no cachorrão que acaba de sofrer uma queda; e um certo ressentimento político temperado por orgulho e miopia estratégica. Essa confluência de elementos explica, caso a caso, o 'antipetismo' ferrenho com que muitos conhecidos meus, nas redes sociais e fora dela, justificam sua abordagem da história política recente.


Erros de leitura e posicionamento político acontecem. Fazem parte do jogo, não é vergonha cometê-los. Nos anos 2000, por exemplo, eu me afastei do trabalhismo para adotar uma postura conservadora que foi primeiramente articulada em torno do neoconservadorismo anglo-saxão. Essa postura foi impulsionada pelo meu vínculo cada vez maior com o tradicionalismo perenialista e minha conversão ao cristianismo. Apesar de manter continuamente minha crença na necessidade de intervenção social do Estado -- nunca fui liberal e olavete em sentido estrito --, apoiei o neo conservadorismo nesse período porque achava que era a melhor forma de manter os resquícios de uma tradição cristã contra o avanço da esquerda pós-moderna -- que eu sinonimizava à esquerda e ponto. Foi só quando percebi que se tratava de uma aliança impossível em termos concretos e que violentava demais minha formação intelectual e ética, é que me afastei totalmente desse tipo de conservadorismo e adotei outros.


Foram erros políticos que eu não escondo. Acontecem. Muita gente que eu admiro em cenários muito mais importantes do que meu pequeno raio de ação cometeram leituras e atitudes equivocadas. Vejam por exemplo Brizola, o grande Leonel Brizola, que se abraçou a Collor em 1991 e 1992 e praticamente morreu politicamente junto com ele. O que foi isso senão um erro capital de leitura e posicionamento político? Recentemente, um conhecido meu criticou um elogio que fiz a Renan Calheiros lembrando que o dito cujo fazia parte da ''República de Alagoas''. Será que ele se recorda ou vivenciou essa época, em que Leonel Brizola se uniu a Collor? Enquanto Renan Calheiros foi um dos primeiros no Congresso a romper com o Presidente e pedir seu impeachment, Brizola acabou preso ao navio que afundava até o fim, em correntes que ele mesmo fabricou. A leitura do líder pedetista, então Governador do Rio de Janeiro, era a seguinte: Collor é um populista que, como Jânio Quadros, não tem bases sociais organizadas. Seu partido era a Globo, que agora o abandonou. Então, nós trabalhistas e esquerdistas podemos aproveitar esse vácuo para apoiá-lo e manipulá-lo. Deu merda. Erro de leitura, de estratégia e de execução. Eu participei de passeatas pela derribada de Collor em que cantos sobre a traição de Brizola eram comuns -- adianto que eu não os entoava e votei em Brizola em 1994. Foi um erro político do grande líder, acontece. O próprio Brizola ironizava seus erros políticos nas propagandas eleitorais. Ele começava dizendo assim na telinha da TV, ''amigos, X está governando não sei onde, e Y foi eleito pra não sei o quê, e eles saíram de nossas fileiras e foram apoiados por nós. Peço desculpas. Mas vejam vocês que, se até Cristo, que era Deus, tinha um traidor entre os Doze, que poderia ser dito de nós?''


É necessário aprender a reconhecer, conviver e corrigir os próprios erros de leitura, os erros políticos etc. Isso faz parte não só do amadurecimento pessoal mas político. Dá mostras de distanciamento de si mesmo, de comprometimento com uma correta hierarquia de valores. É um exercício diário, inclusive, e que transcende a política. Se não se faz isso, a trajetória do sujeito deixa de ser passível de erro pra se tornar ela própria um erro. O antipetismo fanático originado do fígado é causa de uma séria de equívocos cuja justificativa é nula, só se dá no âmbito afetivo, é quase que um ressentimento. Ou, pior, não passa de um orgulho tolo por ter se posicionado de maneira equivocada em determinada situação capital. Não estou dizendo que não se pode criticar o PT, ter repúdio da ideologia do partido e negar o retorno de petistas ao poder. Concordo plenamente com todos os três pontos. Mas isso não significa fechar os olhos para os aspectos do PT e de petistas que podem contribuir para a emancipação do povo brasileiro e para a derrota do inimigo liberal.

O antipetismo ''do fígado'' é incapaz de explicar de forma coerente, por exemplo, o porquê todos os setores produtivos associados à economia financeirizada se voltaram contra Dilma entre 2013 e 2015. Ela não entende o pato da FIESP. Se Dilma e o PT são apenas agentes políticos da bancocracia, porque foram derribados com militância explícita dos setores mais associados ao domínio rentista? Se eles são apenas agentes do neoliberalismo vinculado à revolução cultural pós-moderna da esquerda europeia, por que a Globo se voltou contra eles? Para sustentar essa posição ridícula, os ''antipetismo do fígado'' tem de cair na esparrela de que o país está passando por uma reforma moral, um progresso civilizacional, está derrubando os ''donos do poder'' do Estado patrimonial, e fechar os olhos para quem os governa de verdade: Temer e a cleptocracia, chantageados por sua vez pela Banca. Fechar os olhos para fontes primárias dando conta do golpe contra Dilma para manter os cleptocratas do poder. E fechar os olhos para o choque neoliberal que acossou o país em todas as instâncias -- da política externa à legislação trabalhista. Ou seja, tem de se fazer, com todo o respeito, de imbecil. Esse tipo de incapacidade analítica motivada por azia só leva ao triunfo dos inimigos, é uma vantagem incomensurável dada ao status quo.

Sobre esse tema eu gostaria de ressaltar dois pontos: deixando de lado as óbvias limitações de ser um partido orientado para a segunda teoria política, o ‘socialismo’ em sentido largo, o PT sofre de um câncer que acomete a esquerda no mundo todo, o mal do reformismo gradual. Esse câncer existe no nosso país desde sempre. São notórias as leituras de um PCB, em plena década de 1950 e 1960, de que o Brasil ainda não havia feito a transição para o capitalismo e que por causa disso era necessário apoiar a burguesia nacional contra o “imperialismo”. A incapacidade analítica aí chegava aos píncaros e se casava com uma miopia política tão ferrenha que só podia tornar esse comunismo em idiota útil dos capitalistas. Esse mal do reformismo, que se acentuou na medida em que os social-democratas lograram construir um Estado de Bem Estar Social na Europa, persegue a esquerda brasileira como um fantasma, e isso pode ser dito até mesmo dos trabalhistas. Mas não me entendam mal, nessa fração da esquerda nacionalista havia uma gradualismo temperado por certo radicalismo e virilidade caudilhesca e senhorial, que, quando unida à competência política podia causar mais estragos do que uma revolução mal conduzida e sem meios de criar apelo popular – como são exemplo nossos guerrilheiros no Araguaia.

O gradualismo reformista, quando não apimentado por essa virilidade caudilhesca capaz de radicalismos pra manter sua base política, acaba no mais rotundo e desalentador fracasso. Acaba sendo um anticlímax. O exemplo acabado disso é o PT, e essa é a maior crítica que se pode fazer à trajetória desse movimento de segunda teoria política. Olhando para o PT se percebe como seus líderes compuseram uma estratégia de longo prazo, que se afirmaria ao longo dos vinte anos em que supostamente dominariam a cadeira presidencial. Essa estratégia consistia em conciliações iniciais com o sistema financeiro, a mídia e a classe média em torno da manutenção da arquitetura econômica neoliberal enquanto eram avançadas mudanças em outros planos: investimentos em energia nuclear, reorientação da política externa, apoio a movimentos de esquerda latino-americanos, investimentos no Nordeste, programas assistencialistas e liberais de transferência de renda, recuperação da capacidade interventora do Estado por meio da recomposição de seus quadros etc. Em um segundo momento, o PT implementou uma sutil mudança na arquitetura econômica: uma postura mais neokenesyana e menos monetarista, com uma política anticíclica e redução gradual e controlado dos juros básicos na economia.

Essas medidas não abalaram nem de perto o predomínio da bancocracia, mas já foram suficientes para que parte do sistema partidário e da classe média tentassem derribar o governo. A justificativa inicial era o Mensalão, um mesada que o gênio de José Dirceu criou para evitar a partilha de postos do Estado com o Congresso Cleptocrata. Mas a popularidade de Lula e um cenário internacional favorável, que produziu no país uma onda de consumo e expansão de crédito, deu suporte à manutenção do projeto gradualista de reforma, agora já plenamente adaptado aos esquemas do “presidencialismo de coalizão” inaugurados por Fernando Henrique Cardoso e que permitiam ao Presidente manter uma sólida maioria no Parlamento.

O segundo passo da estratégia petista foi uma remodelação de cima do sistema educacional brasileiro [o projeto da Pátria Educadora, de Mangabeira Unger] e uma virada na arquitetura econômica. Agora não bastava só um abraço tópico ao neo-keynesianismo, era necessário superar a financeirização da economia por meio de uma política neo-desenvolvimentista que combatesse o spread bancário e recuperasse o investimento público e a indústria brasileira. Foi aqui que a porca  torceu o rabo. Num cenário de mudança da política externa norte-americana, de crise econômica mundial, de retração do mercado das matérias primas que exportávamos, essa nova mudança foi sabotada pela elite econômica financeirizada. Foi aí que a FIESP e companheiros se voltaram definitivamente contra o PT, e, mais especificamente, contra Dilma Rousseff, dando azo à aliança com a classe média, a Globo, e os interesses americanos que planejaram a derribada do frágil consenso esquerdista no país.

É necessário que se tenha atenção para isso: o PT caiu, ou melhor, foi abandonado pelas forças produtivas e empresariais, justamente porque tentou fazer a transição para uma forma de desenvolvimentismo. A escolha de Lula por Dilma Roussefr já indicava isso claramente, porque se trata de um quadro técnico historicamente ligado ao trabalhismo e ao PDT, não uma política de raiz petista. Só em 2000 Dilma abandonou o PDT e migrou para o PT. Era uma transição planejada para o nacional desenvolvimentismo, dentro da abordagem gradualista e reformista petista. Claro que pode-se criticar aqui a competência e a eficiência desse desenvolvimentismo de Guido Mantega – os próprios desenvolvimentistas afirmam que eram políticas equivocadas e porcas e eu mesmo possuo texto em que critico as raízes e os fundamentos do projeto do Pátria Educadora. Mas o importante é perceber a principal razão do confronto que explodiu a partir dali. É notório que muitos aptos a apoiar um projeto nacional desenvolvimentista hoje se regozijam com a queda de Dilma, sem perceber o porquê se formou definitivamente a aliança que despedaçou o governo da petista.

A queda de Dilma diz respeito não somente ao PT, mas a qualquer um que apoie uma mudança da arquitetura financeirizada do país. Revela que os movimentos e líderes que pretendam levar a efeito essa mudança serão sabotados por diversas organizações empresariais e pela grande mídia, da mesma maneira que Dilma foi. E serão apedrejados quanto mais competentes forem as mudanças propostas, visto que boa parte do setor industrial está comprometido até o talo com a economia financeirizada.

É necessário repetir até a exaustão: De certo modo, o estopim para a queda de Dilma e do PT foram antes seus acertos do que seus erros. Mas de modo estrutural, o maior problema foi a própria postura gradualista, que repetindo um erro histórico da esquerda do país, pensa poder alcançar grandes resultados com pequenas e paliativas mudanças, sem que as forças hegemônicas da estrutura de poder brasileiro percebam suas manobras. Nesse ponto, a capitulação do PT foi ainda pior do que a do trabalhismo dos anos 1950 e 1960. Porque as derrotas daquele trabalhismo se deram em meio a atos simbólicos de radicalismo que mantiveram o capital político de seus líderes.

Peguemos o exemplo da heroica queda de Getúlio: Quando a guerra de classes se acentuou no país e os coronéis do Exército assinaram um manifesto em fevereiro de 1954, cujo cerne era impedir qualquer aumento do salário mínimo que colocasse em risco a hierarquia social brasileira, Vargas pareceu desistir diante de seus inimigos ao demitir João Goulart, então Ministro do Trabalho e autor da polêmica proposta rejeitada pelo alto oficialato que se fazia porta voz ali da classe média tradicional. Durante dois meses só se falava de capitulação de Vargas frente ao clamor dos coronéis na defesa dos interesses da classe média. Ora, na data do seu discurso de maio para os trabalhadores, um inflamado Vargas anunciou o aumento de 100% causando uma comoção popular e uma crise política sem precedentes. A demissão de Goulart havia sido uma estratégia de radicalização. Vargas estava assumindo inteiramente para si a responsabilidade, e com isso o ônus e o bônus, pelo aumento. Com isso manteve suas bases políticas, ao mesmo tempo que preservou para o futuro a figura de Jango. Quando de sua aparente derrota, aquele fatídico ultimato dado pelos generais em agosto seguido por seu suicídio, essas mesmas massas saíram desesperadas às ruas e formaram a base para a continuidade do trabalhismo.

Comparem com o gradualismo civilizado e democrático de Dilma. Uma vez acuada por manifestações logo depois das eleições de 2014, o que ela fez? Concessões aos liberais com mudanças na legislação previdenciária, que, de cara, alienaram metade daqueles que escolheram por ela depois da ferrenha campanha contra Aécio Neves. É inócuo evitar radicalismos acreditando em uma conciliação democrática com os agentes hegemônicos da sociedade. Essa crença na democracia burguesa é um retrocesso, foi uma ilusão coletiva em um partido que foi capaz de gerar um líder como Zé Dirceu, que imaginou o mensalão pra não ter de distribuir cargos para a cleptocracia. O Império da lei não é nada e nada pode diante do conflito entre as classes. Até os militares, quando de suas aventuras e desventuras golpistas dos anos 1940 aos 1970, diziam atuar sob o império da lei e no cumprimento de seus deveres constitucionais, o mesmo tipo de declaração dada por gente como Sérgio Moro, que finge não ter realizado crimes na sua cruzada anti-esquerdista.

Mesmo de uma perspectiva da segunda teoria política, é necessário radicalizar e ter em mente que o reformismo redunda sempre em fracasso, e no pior dos fracassos, aquele que dizima as possibilidades políticas de um movimento pela total alienação de seu público. O cadáver do partido dos trabalhadores está aí a lembrar pra esquerda e para todos que pretendam recuperar ou capturar seu legado, que existe certa estrutura de poder no país que tem de ser desafiada custe o que custar, com os meios necessários para que a vontade desses agentes seja dobrada. Nesse sentido, a esquerda brasileira precisa se ''venezualizar'', aprendendo com o exemplo do Comandante Chávez. Ou se tornar “brizolista” de vez. É a única maneira de estabelecer qualquer mudança significativa e permanente no país, sem que se dê um passo para logo depois ter de retroceder três.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Os 30 maiores tenistas da Era Aberta: Introdução

O British Hard Court Championship de 1968, disputado em quadras de saibro na cidade de Bournemouth, Inglaterra, foi o primeiro torneio da Era Aberta. O campeão na ocasião foi o australiano Ken Rosewall




Nesse ano, a "Era Aberta'' do tennis completa cinquenta aniversários. Assim como na maior parte dos grandes esportes, a ascensão do profissionalismo gerou uma imensa polêmica e sofreu resistência daqueles que imaginavam as competições como duelos entre gentlemen e gostariam de evitar que o espírito do lucro e o aburguesamento tomasse de vez as quadras. A Federação Internacional de Tennis de Grama [ILTF] proibiu que jogadores que recebessem vencimentos por suas exibições e confrontos participassem dos principais torneios, particularmente os Grand Slams e a Copa Davis.

Pouco a pouco, tenistas de grande expressão eram seduzidos por promotores profissionais e decidiam viver dos dividendos pagos por suas partidas, assumindo o custo de abandonarem as competições mais tradicionais. Esse processo se intensificou em meados dos anos 1950, época do crescimento de empresas de eventos tais como a National Tennis League [NTL] e a World Championship Tennis [WCT]. Nos anos 1960, o incipiente circuito profissional já possuía os maiores ídolos do ''esporte branco''. Havia, inclusive, um série de pro-majors que visavam o impossível, substituir os Grand Slams para os 'banidos' pela ILTF.

Tudo isso mudou em março de 1968, quando a Federação Internacional decidiu admitir a presença de profissionais em seus torneios. O primeiro major a contar com eles foi Roland Garros, conquistado pelo lendário australiano Ken Rosewall. O tennis nunca mais foi o mesmo, e a via para a fundação da Associação de Tenistas Profissionais [ATP] e para a massificação e disseminação do esporte estava definitivamente aberta. Mas essa é outra história, diferente daquela que vou contar aqui.

Em comemoração à data, vários sites, jornalistas e revistas especializados tem criado listas com os maiores ou melhores jogadores que disputaram a Era Aberta. A mais recente delas, dentre as mais famosas, foi feita por Steve Tignor na Tennis Magazine. Meio que inspirado nessa publicação, entro na brincadeira e faço eu também minha lista.

Adoto como principal o mesmo critério norteador escolhido por Tignor: Levo em conta a carreira inteira dos jogadores que conquistaram pelo menos um Grand Slam na Era Aberta. Ou seja, os gênios que se limitaram a vencer somente no tempo amador do ''esporte dos reis'' não vão entrar na minha série. Afinal se trata aqui de comemorar o aniversário da Open Era, um período determinado da história que modificou profundamente o tennis e o modo como ele é disputado. Importa frisar, no entanto, que não limito a análise apenas aos resultados obtidos depois de 1968, o que seria de todo injusto. Está valendo a integralidade da carreira de simples. dos campeões da ''Idade dos Profissionais''.

Os títulos de duplas também entram na conta, mas de modo extremamente secundário. Aumento o peso deles quando trato dos jogadores cujo auge se deu entre os anos 1960 e meados da década de 1980, quando praticamente todos os maiores nomes das quadras disputavam as modalidades de duplas. Depois disso, a exigência física do jogo de simples cresceu de modo tal que acabou por afastar os principais tenistas de outras categorias de disputa, cada vez mais concentrados que ficaram no que realmente dava dinheiro e prestígio. De todo modo, os resultados de duplas só vão ser usados para comparações pontuais, 'desempates' e situações similares.

A carreira de um jogador pode ser avaliada de diferentes maneiras, e no tennis a principal medida será sempre a dos majors. O Grand Slam é o ápice desse esporte; se não é tudo, é quase tudo no ''planeta raquete''. Mas a consolidação da Era Aberta trouxe outros parâmetros que não puderam mais ser deixados de lado, o principal deles o ranking da ATP, cuja criação se deu em agosto de 1973. Ter sido número 1 do mundo é uma das maiores glórias para um tenista. Centenas e centenas podem bater no peito reivindicando reconhecimento por serem campeões de Grand Slam. Mas somente 26 em toda a história carregam a honra do número 1. E se alcançar esse posto é pra poucos, mais difícil ainda é se manter nele. O número de semanas na liderança do ranking ou o número de temporadas terminadas como líder do circuito são sinais inequívocos de grandeza, sinalizam o quanto o jogador foi superior aos demais de sua geração. A conquista de majors indica o nível de qualidade máximo que um tenista pode alcançar em uma competição, já a história do ranking revela a ''qualidade média'' que ele é capaz de manter durante o ano, sua consistência ao longo do tempo.

O inesquecível Pete Sampras declarou em sua autobiografia ['Mente de Campeão'] que um jogador de ponta tem de ser avaliado também pela capacidade de predominar sobre sua época, não apenas demonstrando maior consistência no ranking, mas também no confronto direto ['homem a homem'] contra seus principais rivais. Concordando com o mestre, também levo o head to head em consideração nos momentos em que esses vislumbres se tornam necessários. 

Por fim, não pretendo resumir toda e qualquer análise a uma mera confrontação de números. A quantidade de torneios conquistados ou os diferentes aspectos associados ao ranking tem de ser contextualizados. Houve tempo em que os grandes jogadores preferiam pular o Australian Open, ou então Roland Garros. Houve tempo em que a maior parte dos majors era na grama [hoje, apenas Wimbledon permanece na superfície original do esporte]. Há gerações mais fracas e outras mais fortes. A política do esporte influenciou o valor dos majors em certas temporadas, e há um ou outro que sofreram boicotes por diferentes razões. Além disso, seria tolo pretender fazer uma lista dos maiores sem pretender levar em conta os elementos qualitativos de um jogador. O domínio dos golpes, a adaptação a diferentes superfícies, a capacidade de improvisar, a performance em momentos decisivos, as novidades que trouxe para o jogo e sua importância para o desenvolvimento do tennis.

Alguns poderiam considerar esses itens como ''subjetivos'', pretendendo com isso diminuí-los. Permitam-me discordar: eles são plenamente objetivos -- afinal, o que é a objetividade senão intersubjetividade? --, e podem ser discernidos por aqueles que amam, acompanham e conhecem o tennis. Não podem, por certo, serem reduzidos à frieza dos números ou da mera quantidade, mas isso não é nenhum pecado: o mais importante, significativo, aquilo que é verdadeiramente decisivo e determinante, tanto na vida quanto no jogo, também não o pode.

Começo na próxima postagem a minha lista dos 30 maiores tenistas masculinos da Era Aberta.


sábado, 13 de janeiro de 2018

AS DIFERENÇAS ENTRE A ESPIRITUALIDADE ORTODOXA E OUTRAS TRADIÇÕES

Metropolita Hierotheos Vlachos

traduzido por André Luiz V. B. T. dos Reis




Santo Ancião Paisios

A espiritualidade ortodoxa é bastante diferente de qualquer outra ''espiritualidade'' de tipo oriental ou ocidental. Não pode existir confusão entre as diversas espiritualidades, porque a Ortodoxia é teocêntrica, enquanto as demais são antropocêntricas.

A diferença aparece primeiro no ensino doutrinal. Por isso colocamos a palavra ''ortodoxa'' depois de ''Igreja'' para distingui-la de qualquer outra religião. Com certeza, a palavra''ortodoxa'' deve estar associada com a palavra ''eclesiástica'', já que a Ortodoxia não pode existir fora da Igreja; nem, claro, pode a Igreja existir fora da Ortodoxia.

Os dogmas são resultados de decisões dos Concílios Ecumênicos sobre vários assuntos de fé. Os dogmas são chamados assim porque delimitam as fronteiras entre o erro e a verdade, entre a doença e a saúde. Assim, eles são, por um lado, expressões da Revelação, e por outro lado, agem como ''remédios'' para nos guiar até a comunhão com Deus, nossa razão de ser.

As diferenças dogmáticas refletem diferenças correspondentes na terapia. Se uma pessoa não segue o ''caminho reto'', não consegue alcançar seu destino. Se não toma os ''remédios'' apropriados, não consegue adquirir saúde; em outras palavras, não vai experimentar nenhum benefício terapêutico. Repito, se comparamos a espiritualidade ortodoxa com outras tradições cristãs, a diferença de abordagem e método terapêutico se torna mais evidente.



Um ensinamento fundamental dos Santos padres é de que a Igreja é um ''hospital'' que cura o homem doente. Em muitas passagens das Sagradas Escrituras é usada essa linguagem. Uma delas é a parábola do Bom Samaritano: ''Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar.'' [Lucas 10:33-35]

Nessa parábola, o samaritano representa Cristo que cura o homem ferido e o leva para a estalagem, que é o ''hospital'', a Igreja. É evidente aqui que Cristo é apresentado como um Curador, um médico que sana os males; e a Igreja é o verdadeiro hospital. É muito representativo que São João Crisóstomo, ao analisar essa parábola, destaque essas verdades enfatizadas acima.

A vida do homem ''no Paraíso'' foi reduzida a uma vida governada pela diabo e seus ardis. ''E caiu nas mãos de ladrões'', isto é, nas mãos do diabo e de todos os poderes hostis. As feridas sofridas pelo homem são os vários pecados, como dito pelo Profeta Davi: ''As minhas chagas cheiram mal e estão corruptas, por causa da minha loucura'' [Salmos 37]. Porque ''todo pecado causa uma injúria e uma ferida''. O Samaritano é o próprio Cristo que desce dos Céus à terra para curar o homem ferido. Ele usa óleo e vinho para ''tratar'' as feridas; em outras palavras, ao ''misturar Seu sangue com o Espírito Santo, traz o homem à vida''. Segundo uma outra interpretação, o óleo corresponde à palavra consoladora e o vinho à palavra de rigor. Misturadas, elas tem o poder de unificar a mente dispersa. ''Ele o pôs sobre seu animal'', isto é, Ele assumiu a carne humana sob ''os ombros'' de Sua Divindade e ascendeu encarnado ao Seu Pai nos Céus.

Então o bom samaritano, ou seja, Cristo, levou o homem pra a grandiosa, maravilhosa e espaçosa estalagem -- a Igreja. E entregou o homem ao estalajadeiro, que é o Apóstolo Paulo, e através do Apóstolo Paulo todos os Bispos e padres, dizendo: ''Tomem conta dos gentios, que entreguei a vocês na Igreja. Eles sofrem com a doença do pecado, então curem-nos, usando como remédio as palavras dos Profetas e os ensinamentos do Evangelho; tornai-os saudáveis através das admoestações e das palavras consoladoras do Velho e Novo Testamentos.'' Assim, segundo São João Crisóstomo, Paulo é quem mantém as Igrejas de Deus, ''curando todas as pessoas por meio de suas admoestações espirituais e oferecendo a cada uma delas aquilo de que realmente necessitam.''

Na interpretação dessa parábola por São João Crisóstomo, é claramente demonstrado que a Igreja é um hospital que cura as pessoas afligidas pelo pecado; e os Bispos e padres são os terapeutas do povo de deus.


São José o Hesicasta

E é precisamente esse o trabalho da teologia ortodoxa. Quando nos referimos à teologia ortodoxa, não falamos simplesmente da história da teologia. A última, claro, é parte dela mas não de modo absoluto ou exclusivo. Na tradição patrística, os teólogos são videntes de Deus. São Gregório Palamas chama Barlaão [que tentou trazer a teologia escolástica ocidental para dentro da Igreja Ortodoxa] de ''teólogo'', mas ele enfatizavam claramente que a teologia intelectual diferia grandemente da experiência da visão de Deus; aqueles que seguiram o ''método'' da Igreja e conquistaram a perfeita fé, a iluminação do nous e a deificação (theosis). A teologia é o fruto da cura do homem e o caminho que leva à cura e à aquisição do conhecimento de Deus.

A teologia ocidental, portanto, se diferenciou da teologia ortodoxa. Em vez de ser terapêutica, possui um caráter mais emocional e intelectual. No Ocidente (após a ''Renascença Carolíngea''), a teologia escolástica evoluiu, o que é contrário à Tradição Ortodoxa. A teologia ocidental está baseada no pensamento racional enquanto a Ortodoxia é hesicasta. A teologia escolástica tentou entender logicamente a Revelação de Deus e se conformar à metodologia filosófica. Tal abordagem é representada pelo dito de Anselmo [Arcebispo de Canterbury de 1093-1109, um dos primeiros após a conquista normanda e a destruição da antiga Igreja Ortodoxa inglesa]: Creio para entender''. Os escolásticos reconhecem Deus no início e então tentam provar sua existência por argumentos lógicos e categorias racionais. Na Igreja ortodoxa, tal como expresso pelos Santos Padres, a fé é a Revelação de Deus ao homem. Aceitamos a fé a ou ouvir não de modo a entendê-la racionalmente, mas para que possamos purificar nossos corações, alcançar a theoria e experimentar a Revelação de Deus.

A teologia escolástica alcançou seu ponto culminante na pessoa de Tomás de Aquino, um santo na Igreja Católica Romana. Ele defendeu que as verdades cristãs são divididas em naturais e sobrenaturais. As verdades naturais podem ser provadas filosoficamente, como a verdade da Existência de Deus. As verdades sobrenaturais -- tais como o Deus Triuno, a Encarnação do Verbo, a Ressurreição dos corpos -- não podem ser provadas filosoficamente, e assim não podem ser refutadas. A Escolástica associa a teologia com a filosofia de modo muito próximo, e mais ainda com a metafísica. Em consequência, a fé foi alterada e a própria teologia escolástica caiu em descrédito quando o ''ídolo'' do Ocidente -- a metafísica -- colapsou. A Escolástica é responsável por boa parte da situação trágica criada no Ocidente a respeito da fé e das questões de fé.

Os Santos Padres ensinam que as categorias natural e metafísica não existem mas se referem antes ao criado e ao incriado. Os Santos Padres nunca aceitaram a metafísica aristotélica. Mas não é minha intenção me alongar sobre isso. Os teólogos do Ocidente durante a idade Média consideravam a teologia escolástica um desenvolvimento dos ensinamentos dos Santos padres, e daí em diante tiveram início os ensinamentos dos francos de que a teologia escolástica era superior àquela dos Santos Padres. Consequentemente, os escolásticos, que se ocupam com a razão, se consideram superiores aos Santos Padres da Igreja. Eles também acreditam que o conhecimento humano, um fruto da razão, é mais elevado do que a Revelação e a experiência.



É dentro desse contexto que deve ser visto o conflito entre São Gregório Palamas e Barlaão. Barlaão era essencialmente um teólogo escolástico que tentava transmitir a teologia escolástica para a Ortodoxia.

As perspectivas de Barlaão -- de que não podemos realmente saber Quem o Espírito Santo verdadeiramente é (uma forma de agnosticismo), de que os antigos filósofos gregos são superiores aos Profetas e Apóstolos (já que a razão está acima da visão dos Apóstolos), de que a luz da Transfiguração é criada e que pode ser desfeita, de que o modo hesicasta de vida (isto é, a purificação do coração e oração noética incessante) não é essencial -- são visões que expressam uma perspectiva escolástica e, portanto, secularizada da teologia. São Gregório Palamas previu o perigo que essas opiniões levavam à Ortodoxia e através do poder e energia do Santíssimo Espírito e a experiência que ele mesmo adquiriu como um sucessor dos Santos Padres, confrontou esse perigo e preservou sem adulterações a Tradição e a Fé ortodoxa.

Tendo fornecido um panorama do tópico em tela, se examinamos a espiritualidade ortodoxa em comparação ao catolicismo romano e ao protestantismo, as diferenças são imediatamente descobertas.

Os protestantes não tem uma tradição de ''tratamento terapêutico''. Eles supõe que acreditar em Deus, intelectualmente, constitui a salvação. Mas a salvação não é um objeto de aceitação intelectual da verdade; antes é uma transformação pessoal e deificação pela graça. Essa transformação é efetuada por um ''tratamento'' análogo ao de uma pessoa, como veremos nos próximos capítulos. Nas Escrituras Sagradas parece que a fé vem por meio da audição da Palavra e da experiência da ''theoria'' (a visão de Deus). Aceitamos a fé primeiro pela audição de modo a sermos curados, e então conquistamos a fé pela theoria, que salva o homem. Os protestantes, por acreditarem que a aceitação das verdades de fé, a aceitação teorética da Revelação de Deus, ou seja, a fé pelo ouvir salva o homem, não possuem uma ''tradição terapêutica''. Podemos dizer que se trata de uma concepção de salvação muito ingênua.

Os católico-romanos também não possuem a perfeição da tradição terapêutica que a Igreja Ortodoxa possui. Sua doutrina da Filioque é uma manifestação da fraqueza de sua teologia para perceber a relação entre a pessoa e a sociedade. Eles confundem as propriedades pessoais: o ''não gerado'' do Pai, o ''gerado'' do Filho e a processão do Espírito Santo. O Pai é causa da ''geração'' do Filho e da processo do Espírito Santo.

A fraqueza latina em compreender e a falha em expressar o dogma da Trindade mostra a inexistência de uma teologia empírica. Os três discípulos de Cristo (Pedro, Tiago e João) contemplaram a glória de Cristo no Monte Tabor; eles ouviram de uma vez a voz do Pai, ''Esse é meu filho amado'', e viram a descida do Espírito Santo em uma nuvem, pois a nuvem é a presença do Espírito Santo, tal como diz São Gregório Palamas. Assim os discípulos de Cristo adquiriram o conhecimento do Deus Triuno em theoria (visão de Deus) e por revelação. Foi revelado a eles que Deus é uma essência em três Hipóstases.


Isso é o que ensina São Simeão o Novo Teólogo. Em seus poemas, ele proclama uma vez após a outra que, enquanto contempla a Luz Incriada, o homem deificado adquire a Revelação da Trindade Divina. Se encontrando em ''theoria'' (visão de Deus), os santos não confundem os atributos hipostáticos. O fato de que a tradição latina chegou ao ponto de confundir os atributos hipostáticos e o ensinamento de que o Espírito Santo procederia também do Filho mostra a inexistência de uma teologia empírica entre eles. A tradição latina fala da graça criada, o que sugere que eles não experimentam a graça de Deus. Pois quando um homem obtém a experiência de Deus, então ele vem a compreender que a graça é incriada. Sem essa experiência não pode existir nenhuma ''tradição terapêutica'' genuína.


E de fato não encontramos em toda a tradição latina o equivalente ao método terapêutico ortodoxo. Não se fala do Nous; nem se distingue o Nous da razão. O Nous obscurecido não é tratado como uma doença, nem a iluminação do Nous como uma terapia. Muitos textos latinos altamente difundidos são sentimentais e se exaurem em uma estéril etiologia. Na Igreja Ortodoxa, pelo contrário, há uma grande tradição a respeito desses temas, que mostra que no interior dela existe o verdadeiro método terapêutico.

Uma fé é verdadeira na medida em que possua benefícios terapêuticos. Se está apta a curar, então é uma fé verdadeira. Se não cura, não é uma fé verdadeira. A mesma coisa pode ser dita sobre a medicina: um cientista verdadeiro é aquele que sabe como curar e seu método traz benefícios terapêuticos, enquanto um charlatão é incapaz de curar. As mesmas verdades se sustentam quando se diz respeito aos assuntos da alma. A diferença entre a ortodoxia e a tradição latina, tanto quanto as confissões protestantes, parece estar principalmente no método da terapia. Essa diferença se torna manifesta nas doutrinas de cada denominação. Os dogmas não são filosofia, nem é a teologia o mesmo que a filosofia.

Dado que a espiritualidade ortodoxa difere de modo distinto das ''espiritualidades'' de outras confissões, ainda mais difere da ''espiritualidade'' das religiões orientais, que não acreditam na natureza teantrópica de Cristo e no Espírito Santo. Elas são influenciadas pela dialética filosófica, que foi superada pela Revelação de Deus. Essas tradições não são conscientes da noção de pessoa e do princípio hipostático. E o amor, como ensinamento fundamental, está totalmente ausente. Alguém pode encontrar, é claro, nessas religiões orientais um esforço da parte de seus seguidores para se apartarem de pensamentos racionais e imagens, mas este é na verdade um movimento rumo ao nada, à não existência. Não há um caminho levando seus ''discípulos'' à theosis-deificação (ver a nota abaixo) do homem integral.



Daí porque há um vasto e caótico abismo entre a espiritualidade ortodoxa e as religiões orientais, apesar de certas similaridades externas na terminologia. Por exemplo, as religiões orientais podem empregar termos como ''êxtase'', ''impassibilidade'', ''iluminação'', ''energia noética'' etc. mas estão impregnadas por um conteúdo diferente dos termos correspondentes na espiritualidade ortodoxa.

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Do Capítulo 2 de ''Orthodox Spirituality: A brief introduction'', publicado em 1994 pelo Mosteiro da Natividade de Theotokos, Levadia, Grécia. Veja também ''Way Apart: What is the Difference Between Orthodoxy and Western Confessions?'', do Metropolita Anthony (Khrapovitsky) de Kiev e Galícia

Orthodox Christian Information Center
Met. Hierotheos Vlachos
25 / 11 / 2013

ps.: Theoria é a visão da glória de Deus. A theoria é identificada com a visão da Luz incriada, a energia incriada de Deus, com a união do homem com Deus, com a theosis [ver nota abaixo] do homem. Assim, theoria, a visão e a theosis estão associados intimamente. A theoria possui vários graus. Há a iluminação, visão de Deus, e a visão constante (por horas, dias, semanas e até meses). A oração noética é o primeiro estágio da theoria. O homem teorético é aquele que atingiu esse estágio. Na Teologia Patrística, o homem teorético é representado como o pastor das ovelhas.

pps.: A Theosis-Deificação é a participação na graça incriada de Deus. A Theosis é identificada e associada com a theoria (visão) da Luz Incriada (veja nota acima). É chamada de theosis na graça porque é alcançada através da energia da graça divina. É uma co-operação de Deus com o homem, já que é Deus quem opera e o homem quem co-opera.