sábado, 8 de julho de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS 8: THE SEARCHERS

.



NÚMERO 9: The Searchers [''Rastros de Ódio''], de 1956 --> A obra prima da parceria Ford/Wayne é o momento em que a cobra morde o próprio rabo. As linhas gerais estabelecidas em ''Rastros de Ódio'' influenciaram todo o revisionismo do gênero -- que se tornou comum a partir dos anos 1960 --, o Faroeste Italiano, e diretores como Scorcese.


Ford mantém todo o desenho que ele próprio ajudou a construir e que expressava alguns dos principais elementos do imaginário do Velho Oeste: o destino manifesto americano, o homem da fronteira que se expande livre para o ocidente levando ''progresso'' e civilização ao ermo, e derrotando todo o mal e selvageria durante sua jornada.


Mas as cores na pintura ganham matizes e arranjos novos, que tornam a totalidade do quadro complexa, sutil, escura. O homem da fronteira, espírito livre que cria os fundamentos da civilização no meio do deserto, ganha encarnação em Ethan Edwards, personagem que dá a Wayne aquela que considero a melhor interpretação de sua carreira [o ator já havia se superado em 'Red River', dirigido por Howard Hawks, mas só levou o Oscar em 'True Grit', treze anos depois de The Searchers].


Ethan é um ex-soldado confederado que chega na fazenda de seu irmão, no norte do Texas, três anos após o fim da guerra civil. Sujeito duro, continua usando a farda. Ele não teria ainda se rendido? Seria um exemplo da clássica figura do Oeste, o ex-confederado que continua ''lutando por uma causa perdida''? O filme não perde tempo com explicações pormenorizadas, com detalhamento do passado dos personagens. Ethan é um homem sobre o qual recaem suspeitas. O ouro com o qual faz questão de pagar por sua estada na casa do irmão não tem origem segura. O capitão dos Rangers locais acredita ser ele procurado em algum lugar.


Muita coisa fica implícita nesse indivíduo amargurado e solitário. Parece existir uma atração entre ele e a mulher de seu irmão, mas esse clima algo palpável nunca é colocado completamente a descoberto, nem tampouco esmiuçado.


O que fica explícito é o profundo racismo do protagonista. Apresentado a seu ''filho adotivo'', um garoto que salvou de um ataque indígena, Ethan não esconde o desconforto ao perceber que o rapaz é ''mestiço'', ainda que só de um dos costados. Sua relação com Martin Pawley, vivido magistralmente por Jeffrey Hunter, é um dos móveis da narrativa. O ex-militar não permite que o garoto o chame por nenhum epíteto que implique parentesco ou proximidade, e ao mesmo tempo constrói uma ligação com o rapaz que irá iluminar cantos esquecidos de sua alma.


Outro móvel da narrativa é o ataque comanche à fazenda, resultando na morte de seu irmão e de sua cunhada, e o rapto das duas sobrinhas de Ethan. Uma delas é encontrada estuprada e morta dias depois, mas a mais nova, Debbie [vivida por Natalie Wood], vai se tornar objeto de uma busca obcecada do protagonista junto de seu sobrinho (?), parceiro (?), amigo (?) Martin.


Enquanto o garoto deseja sinceramente resgatar a prima das mãos dos comanches, Ethan está mais preocupado em livrá-la do pior dos destinos, o de ser educada como uma indígena, o de se tornar ela própria uma comanche. Ele não suporta a ideia de que sua sobrinha possa assumir a cultura dos nativos, uma vida que ele considera pior que o inferno.


Ford dá nova cara a uma característica fundamental do Velho Oeste. A mulher branca raptada e salva pelo herói é agora foco de uma tensão nunca antes vista no gênero. O ex-confederado preferiria ver sua sobrinha morta por suas próprias mãos do que conviver com a visão de Debbie como comanche. As viseiras que o impedem de ultrapassar os limites de sua visão autocentrada, ressentida e racista são reveladas em cenas chocantes.


Ethan conhece os costumes e cultura indígena e os usa contra seus inimigos. Depois de abater um indígena, dá tiros nos olhos do cadáver, explicando que o pior dos mundos para os comanches era não poder encontrar o caminho para a terra dos seus ancestrais. O ex-confederado não tem fé nas crenças indígenas, mas conhecê-las é uma arma que permite atingi-los de alguma maneira.



Noutra cena, Ethan e Martin procuram Debbie em um posto militar com garotas que foram raptadas por indígenas e resgatadas em um estado de insanidade [talvez pelo estupro sistemático?]. O personagem de Wayne afirma que elas já não são mais inteiramente humanas. Com ódio no olhar, afirma que são todas comanches. Em dada ocasião, ao se depararem com um grupo de búfalos, Ethan começa a disparar enlouquecidamente nos animais, explicando para Martin que dizimá-los era dizimar a cultura nativa.


Os indígenas não são vilões ou heróis nesse filme de Ford. O diretor ajudou a consolidar a visão deles no cinema como forças naturais, selvagens, agressivas, que deveriam ser suplantadas e superadas na marcha para o Oeste. Mas em ''Rastros de Ódio'', eles são quase que retratos da própria alma do protagonista. Scar, o chefe indígena que raptou Debbie, fica frente a frente com Ethan, e não se pode distingui-los a não ser pela mera exterioridade do encontro entre o ''homem branco'' e o ''pele vermelha''. O branco surpreende ao mostrar que fala comanche, o comanche não fica atrás, revelando que se comunica também em inglês. Mas há um muro de estranhamento e violência que impede qualquer compreensão mútua.


Apesar de toda esse contorno familiar, que cria a impressão de que vemos uma história clássica de faroeste, o foco está todo nas ambiguidades e nas contradições de Ethan Edwards, a encarnação do homem da fronteira. Seu desprezo por Martin se transforma, depois de toda a odisséia, na tentativa de fazer dele seu único herdeiro. Mas essa decisão também é motivada porque ao encontrar Debbie, se descobre que a garota tem orgulho de ter incorporado a cultura comanche. No bárbaro ataque final ao acampamento de Scar, Martin e seu ''tio'' racista se desentendem cada vez mais: Ethan mataria a sobrinha assim que pudesse? A cena do ex-confederado escalpelando Scar leva a crer que sim, ainda que a história tome rumos diferentes, e enganosamente redentores.


Não há final feliz no faroeste revisionista de Ford. O retorno para a fazenda mostra todos os personagens adentrando o casarão, felizes, uma família reconstruída e reintegrada, um possível sinal de reconstituição do mito do Velho Oeste. Mas Ethan Edwards não ultrapassa a varanda. Ela não adentra a residência. Observa a família do lado de fora, dá as costas e vai embora.


A cena do caubói se distanciando do rancho ou da cidade é um topos poderoso do gênero. O pistoleiro não se adequa à civilização, é uma força ambígua que habita o deserto, sempre pronta a despertar e irromper na cidade, restabelecendo pelas armas e pelo terror uma ordem da qual ela não é capaz de participar. Mas a cena final de The Searchers evoca outros nuances do símbolo. O solitário Ethan teria suplantado seu racismo? Haveria encontrado a paz de alma que lhe permitisse participar de modo inteiriço daquela família? Ou ainda carrega o ódio pelo ''mestiço'' e pela sobrinha comanche? O homem da fronteira não tem lugar naquela casa, ele continua tão deslocado quanto antes, e ainda mais sozinho do que no início da obra, na cena inicial em que sua cunhada vê sua chegada a partir do ermo.





Todos os tons escuros e temas pesados dessa obra prima de John Ford são entremeados por personagens, desenvolvimentos e cenas que amenizam o ritmo do filme: o retardado que consegue prever os fatos antes que todos os demais; o relacionamento amoroso de Martin e de Laurie Jorgensen [Vera Miles], que será obrigado a esperar por seu amado; o casamento fortuito entre Martin e a filha de um chefe indígena etc.


The Searchers é um dos melhores filmes já feitos, e o faroeste mais poderoso saído das mãos do papa do gênero.

Nenhum comentário:

Postar um comentário