terça-feira, 18 de julho de 2023

Alexander Dugin e Kemi Seba contra os mestiços

Dugin fez uma postagem no twitter enchendo a bola do livro de Kemi Seba sobre pan-africanismo, e destacando pontos com os quais ele "concorda totalmente". O ideólogo russo faz algumas ressalvas à posição de Seba no fim do tuíte, mas considera "geniais" os elementos elencados. [1] Para mim, são quase todos problemáticos. Mas destaco especialmente os pontos 11 e 12, que dizem respeito ao Brasil de forma ainda mais direta. [Tradução minha, sem grandes revisões]: "11. Quando mais negro, melhor. Os mulatos devem ser levados de volta à melatonina -- o casamento de negros de pele mais clara com negros de pele mais escura deveria ser uma norma sanitária. É a ação mística de liberação da escravidão e da dispersão. Para apagar a branquitude como marca de danação e doença espiritual. 12. Quilombos podem ser criados não só na África mas em outros territórios em que africanos vivem -- o primeiro estado africano baseado no princípio quilombola foi criado em Pernambuco (Brasil) e durou de 1604 e 1694. Era chamado de Palmares e sua capital Makaku. Mais Palmares! Tudo isto é genial!"



Dugin concorda, portanto, com princípios mais radicais do afrocentrismo e de um movimento negro que defende medidas explicitamente racistas. Dentre elas, a ideia de que mulatos, ou seja, mestiços não deveriam existir. Na verdade, o casamento de mestiços com negros deveria ser "uma norma sanitária" [''genial!", não se contém Dugin] a fim de "escurecê-los". Seria a aplicação inversa do "embranquecimento" incentivado pelas elites racistas da Primeira República. O que há de comum entre esta medida sanitária e aquela das elites da República Oligárquica é a imitação do código racista anglo-saxão segundo o qual o mestiço é uma excrescência e não deveria existir. Para elas, pior do que ser preto [ou branco, no caso da retórica de Kemi Seba], pior do que ser indígena, é ser mestiço. A hierarquia racial que o Norte Geopolítico incentivou a partir de fins do século XVIII é uma bizarrice, mas pior ainda é seu ódio às mesclas, misturas, mestiçagens que ameaçam os limites definidos pela classificação racial que eles criaram. Dugin nao vê nada errado nestas ideias de Seba. Ele as considera geniais. É verdade que ele discorda da tendência a cair no racismo biológico e no ódio ao branco, pra lá de explícitos na retórica do pan-africanista Kemi Seba [que adotou um nome que significa "Estrela Negra"]. Mas não vê nada demais que a cor da pele seja uma marca espiritual e que o mestiço, portanto, seja encarado como expressão de degeneração. A Idade de Ouro esperada por Dugin [e por Seba] é racializada. Não há espaço nela para o brasileiro, este ser de fronteiras, que nasce no espaço limítrofe.


É difícil imaginar uma maneira em que esta visão possa ser aplicada ao Brasil, um país em que quase metade da população [umas cem milhões de pessoas] se declara parda, sem levar ao caos social. Seba e Dugin oferecem uma chave na instrumentalização da ideia de Quilombo, que é lida por ele quase que no tom de exclusivismo racial e étnico. Sou favorável à ideia comunitária do Quilombo, regida por princípios culturais próprios e por certa autonomia administrativa e identidade cultural. Mas Dugin e Seba deveriam pesquisar mais para entender que em Palmares viviam também pretos crioulos, mulatos, e até brancos pobres. E no antigo território de Palmares são identificadas também ruínas de igrejas. O exclusivismo e segregacionismo étnico e racial defendido por Dugin e Seba [''todo mundo com uma raça definida e cada raça em seu quadrado''] não serve ao Brasil. É o anti-Brasil por excelência, país em que escolas de samba são abertas a pessoas de todas as raças e etnias, e também a pessoas sem raça e etnias, e que podem ser administradas por brancos, mestiços etc., sendo emblemas da nacionalidade antes que da racialidade. O olhar segregacionista de Dugin e Seba não cabe nem mesmo no Quilombo dos Palmares, como revela qualquer pesquisa decente sobre o tema.

Os duginistas no Brasil rebolam pra escapar das críticas que lhes fazemos de importação das ideias etnicizantes de Dugin. Conforme a Sol da Pátria já explicou, o ideólogo russo é partidário de uma radicalização do modelo de separação étnico-racial implantada no Império Russo e depois no Estado soviético. Cada etnia deveria habitar em seu próprio território, com concessões na legislação civil para suas próprias identidades culturais. Na Rússia existem até passaportes internos a fim de evitar o deslocamento das "nacionalidades"/etnias. Este modelo cabe perfeitamente nas ideias racializantes descritas nos pontos abaixo. Cada raça/etnia no seu "quadrado", ou território, vivendo sob sua própria cultura, lei e organização sócio-política. As mesclas [mestiçagens de quaisquer tipos] seriam evitadas pois são entendidas como uma degeneração moderna. Não é à toa que Dugin considera um país sem etnias ou em que as etnias não exercem um poder central na organização comunitária como um emblema da corrupção. Ele critica os EUA por serem uma nação desetnicizada. Ora, o Brasil é muitas vezes mais desetnicizado que os EUA. A centralidade da ideia de etnia, com a qual Seba e Dugin ocultam certo racialismo latente quando não um racismo explícito, não cabe de forma alguma na América Latina. Não cabe na experiência diária de nossos povos. Nada contra as etnias e raças em si mesmas. Mas gostamos tanto delas que as misturamos, e continuaremos a misturá-las, em novos arranjos que são o terror da limitada, estreita e reducionista imaginação racialista.


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[1] Postagem de Dugin no Twitter: https://twitter.com/Agdchan/status/1680274225712463872


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