sexta-feira, 22 de julho de 2022

Sobre Onças e Astros 2, ou: sobre quem devora e sobre quem é devorado

 




Estou neste exato momento viajando para outro estado. São horas de puro ócio no ônibus. Daí decidi fazer alguns complementos ao minúsculo estudo de ontem, em que aponto o festival de impropriedades de um texto publicado esta semana no site da Nova Resistência, e que se pretende um estudo comparativo entre a mitologia tupi e a viking, em uma tentativa de supostamente "ler os logoi brasileiros". Enfim, um estudo ligado à Noomaquia duginiana.


A autora do texto se preocupa com a perseguição que a Onça Celeste faz a Jaci e Pirapanema, seu meio-irmäo. Segundo ela, isto ameaça toda "ordem solar". Mas ela não devia se preocupar tanto assim, pois os tupinambás não liam Evola, e por isto os elementos de seus mitos não tem o mesmo significado simbólico dos livros do Barão italiano. Os tamoios não estavam lá muito preocupados com essa tal "ordem solar" evoliana.


Ora, o sol só brilha depois que Coaraci e Guapiraca, dois poderosos caraíbas, ascendem aos céus. Até entào, os filhos de Irin-Magé nào tinham sol no céu. Nem lua. E os grandes caraíbas, como Maíra e Sumé, andavam pelo mundo, conhecedores dos caminhos para o Céu  e para a Terra sem Males, que era sem Mal mesmo sem sol e lua.


Antes de Monan colocar fogo na terra para se vingar, ele convivia harmonicamente com os primeiros homens. O Velho andava entre os homens em uma realidade sem morte, sem doença, sem trabalho, e passada em meio a festas. Não havia sol e lua também.


Não se deve ler mitologias de forma esquemática e simplória, sem levar em conta  o plano em que se dá a narrativa e a relação entre seus componentes. Isto é o básico do básico, e movimentos tradicionalistas deveriam sabê-lo. 


Só mais dois adendos antes de eu puxar uma soneca.


O trovão e o relâmpago não são atributos originais de Tupã. Nem essencialmente nem enquanto operação e atividade. Ele só os recebe de modo passivo, por consequência da explosão da cabeça do caraíba Maíra quando este foi cercado pelos homens, que criaram um estratagema visando matá-lo por nào aguentarem mais serem punidos com metamorfoses. Sabe-se pouco sobre Tupã, mas ele está mais ligado ao "orvalho do céu", ou seja, às nuvens [mas não necessariamente ao cultivo de plantas, que se deve principalmente a Maíra e a Sumé]. Nem o Sol nem Tupã eram objeto de qualquer culto especial entre os tupinambás.


Nhandevuruçu não é "o primeiro antes de tudo". Segundo poemas/mitos guaranis, antes de tudo existia uma escuridão, que não era aquática e sim sólida, na qual viviam morcegos [tribos tupis falavam de corujas eternas]. O Velho [significado de Monan] aparece quando os morcegos decidem bater as asas. Ou no momento em que eles batem. Não há como saber ao certo se o Velho é auto-gerado ou causado. Mas ele é o primeiro ser com forma humana. E cria o céu, que é feito de pedra, e sobre o qual ele caminha com um cajado [ele é também a primeira constelação]. O perspectivismo tupinambá é marcante aqui: o céu está sob os pés d'O Velho, que quando olha para cima vê a Terra, assim como quem está hoje na terra tem de olhar para o alto a fim de contemplar o céu.


Por fim, existem forças subterrâneas temíveis na mitologia tupi. O Anhangá vive submerso nas águas formadas pelo segundo dilúvio [causado pela briga entre os irmãos Tamanduaré e Guacuiré, outra rivalidade entre gêmeos, o primeiro representando o protótipo do agricultor, e o segundo do guerreiro]. São águas subterrâneas. Não se sabe bem o que é o anhangá, existem algumas interpretações a respeito, mas ele[s] arrasta[m] as almas dos mortos para o fundo das águas, onde são escravizadas. Anhangá promove guerra contra os homens que lutam para, como onças, alcançarem a Terra sem Males.


E ser onça e descobrir o caminho conhecido pelos grandes caraíbas envolve imitar uma mulher. Foi uma anciã o primeiro ser humano a se transformar em onça para vingar seu filho, assassinado e devorado pelo cunhado. [ o cunhadismo tupi não era uma coisa colorida, toda vítima do ritual antropofágico se tornava cunhado na aldeia que o devoraria. O ciclo de vingança e canibalismo pode ter tido início como punição a um incesto ou estupro, mas isto está longe de ser seguro.]


[Sim, a novela Pantanal tem ecos folclóticos de toda essa mitologia na história de Maria e Juma Marruá e o ciclo de vinganças por conflitos de terras no Paraná, mas isto é assunto para outro dia.]


 O meio-irmão de Jaci [ Vésper? ]no ciclo mítico dos gêmeos que procuram Andejo também é fruto de um estupro, aliás.


Bem mais proveitoso é comparar o substrato dos mitos tupinambás com certas concepções da Índia, outro povo da Rainha do Meio Dia. Como repete Ananda K. Coomaraswamy, o universo é alimento dos deuses.


Mas eu já estou entregando muito mais do aquele texto da NR merece. Sextou!




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