sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"O Anticristo" [2009], a Gnose, e a Teodiceia

A tragédia de um bebê caindo pela janela, representação da Queda de Lúcifer, do Primogênito



Um dos tópicos que os céticos supõem ser mais desafiadores para a religião cristã é a Teodicéia. A questão inescapável nesse campo seria compatibilizar um Deus que é todo Bondade e Onipotência com a presença sufocante do mal no mundo.



Não temos exatamente um problema lógico -- embora eu já tenha encontrado multidões fanáticas de ateus achando que descobriram a pólvora. Não há contradição entre o Deus bom e onipotente e a presença de algum mal no mundo.


Desde que esse mal seja necessário, evidentemente.


É aí que a porca torce o rabo para muitos. Uma coisa é dizer que algum mal é necessário para um bem maior de esplendorosa glória. Outra é afirmar, por exemplo, que pedófilos que esquartejam crianças depois de estuprá-las sejam um mal necessário, que nenhum mundo seria possível sem eles ou que algum bem maior ['imortalidade', 'paraíso' etc. ] os justificaria no fim das contas.


Para religiões que identificam Deus com o Bem, inclusive com a Bondade encarada de um ponto de vista moral, é difícil encontrar alguma solução satisfatória do ponto de vista sentimental. Por mais que sejam dadas, sempre se questiona se Deus não poderia fazer diferente, se não poderia intervir etc.


Não quero me adiantar, mas há no fundo dessa pergunta uma disposição ou tentação que é eminentemente satânica, sem deixar de ser, no entanto, profundamente espiritual e divina.


Bom, por que estou falando de teodicéia?


Porque já vi diversas interpretações de "Anticristo" [2009], de Lars Von Trier , uma das obras que tratam com maior profundidade de tópicos teológicos, filosóficos e de metafísica.

A união erótica como símbolo da condição divina


Com muita propriedade, já discorreram sobre o filme notando os paralelos com Nietzsche, Schopenhauer, Schelling. Fizeram associações óbvias com os mitos cristãos de origem, o gnosticismo, ocultismo, bruxaria, explicações para a queda, tantra, xamanismo. Elaboraram sobre o embate entre o inconsciente e a razão, o repúdio à psicoterapia e à psicologização do sagrado, o erotismo e sua perversão sado-masoquista, o simbolismo da violência, o significado profundo do poder sexual. Lars von Trier foi acusado de misógino, de manipulador do público, de exagerado, de divulgador de soft-porn, e até de anticristão [!!!].


São todos temas fundamentais pra compreender as múltiplas camadas da obra, sem dúvida.


Aliás, se há filme evoliano por excelência, ele é "Anticristo".


Mas o grande mal-estar, o grande problema com o qual o diretor luta não é a depressão, a saúde mental ou nem mesmo esses sutis tópicos metafísicos. É o desconforto com a Teodicéia.


Não há cena mais reveladora do mal-estar do que a descoberta, já no fim da película, que a personagem de Charlotte Gainsbourg podia ter evitado que seu filho pequeno se atirasse pela janela, e que não o fez para continuar transando com seu marido [vivido por William DaFoe].


Pois é a imagem de uma condição divina anterior ao Éden. Eis a Queda de Lúcifer, do anjo inocente que se atira no abismo. E a Divindade, representada pelo casal copulando -- um dos símbolos mais poderosos --, sabia, testemunhou e ''deixou acontecer''.


Todo o restante do filme se desenvolve sob esse paradigma inicial, apresentado parcial e poeticamente nas primeiras cenas de "Anticristo".


A Natureza é, conforme diz a personagem de Gainsbourg [que não tem nome próprio no filme: a chamarei de 'Ela'], "A Igreja de Satã" [o Templo de Satã, como diria Stanilas de Guaita]. A Natureza é o choro de uma criança perdida e abandonada, como Ela percebe em um dos períodos na cabana da família na floresta, num local chamado de Éden.

Essa degradação já está presente quando o casal adentra o Éden, ou seja, quando vai para a cabana na floresta. No estado edênico já encontramos o mal, não instanciado nas formas da desobediência, da dor, da morte, mas como potência, como possibilidade ameaçadora. De onde essa possibilidade viria? Onde sua primeira instanciação?


Ela, que escreve uma tese sobre ''feminicídio'' ao tratar da caça às bruxas do início da Idade Moderna, percebe que estava errada. O feminicídio existe não por circunstâncias, mas por necessidade. A necessidade do mal.


Mas se é por necessidade, então está na natureza das coisas. E se as coisas são más, então as mulheres também são más. É ilusório negar a possibilidade de bruxas, de sabás lançando feitiços, pactuando com o capeta, assassinando crianças, se envolvendo em orgias e frenesis, espalhando a destruição. As mulheres são governadas pela natureza, que é nada mais do que um ciclo perene e aparentemente inescapável de destruição autocentrada e sem sentido.


A inversão da imagem erótica inicial: o sexo eivado de narcisismo e sado-masoquismo, expressão do Sabá e do pacto diabólico que perpetua um mundo de dor e morte



O eros, que no início representa a condição divina na forma da cópula de um casal apaixonado, é agora o pior dos males. É viciante, intoxicante, uma lei férrea de desejo levando ao êxtase efêmero e até narcisista, mas também à procriação e, portanto, ao sofrimento e à morte.


E o homem agora é só a imagem da razão divisora do interior [mente] e do exterior [natureza], que visa controlar e guiar a mulher, portadora de forças inconscientes que a ciência conhece por caricaturas [como a ridícula pirâmide de medos com que o marido-terapeuta-confessor pretende descortinar a psique da mulher], e portanto pisando em um campo minado que vai tragá-lo, castrá-lo, aprisioná-lo, e, no fim, matá-lo.


Os elementos metafísicos e espirituais em "Anticristo" são tratados todos com imenso cuidado, zelo, conhecimento e força imagística por Lars von Trier. Mas o mal estar do diretor permanece no fim. Depois do luto, da dor e do desespero, não há exatamente uma redenção. Pelo contrário, se concretiza o feminicídio como ápice da misoginia gnostikoi. Porque a resposta só está naquela condição divina que permitiu a queda da Estrela da Manhã.


O problema com que Lars von Trier está lidando é o do fundamento da própria existência. A existência como uma tragédia, uma catástrofe.

Afinal, a inexistência é melhor que a existência?


Uma pergunta que pode ser colocada com verdadeiro senso de transcendência, ou com um sorriso diabólico. Quem sabe com ambas as disposições ao mesmo tempo.

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