segunda-feira, 22 de junho de 2020

O Projeto Nacional de Ciro e o Imperialismo, ou: Nova Roma [Pátria Grande] ou Suécia Tropical?


''O certo é que nossa latino-americanidade, tão evidente para os que nos olham de fora e veem nossa identidade macroétnica essencial, só ainda não faz de nós um ente político autônomo, uma nação ou uma federação de estados nacionais latino-americanos. Mas não é impossível que a história venha a fazê-lo. A meta de Bolívar era opor aos estados unidos setentrionais os estados unidos meridionais. A Pátria Grande de Artigas, a Nuestra América de Martí apontam no mesmo rumo.''

Darcy Ribeiro, "América Latina: a Pátria Grande"






No texto anterior, discordei da abordagem do professor Nildo Ouriques sobre o papel do distributismo, e de modo mais amplo, do catolicismo-romano na tradição trabalhista. Também considerei um exagero a afirmação de que “Projeto Nacional”, recém-lançado livro de Ciro Gomes seria um deslocamento do significado do próprio Trabalhismo e sua substituição pelas ideias de Mangabeira Unger. Vocês podem ler minha análise nesse texto: Ciro, Nildo e o Trabalhismo.

No entanto, o ponto mais fundamental da crítica de Ouriques se apóia em um dos pilares do pensamento político de Getúlio, Jango, Brizola e das maiores lideranças do nacionalismo popular brasileiro: o problema do imperialismo e da geopolítica sul-americana.

Na obra, Ciro Gomes finca o eixo de sua proposta na ideia de Estado-Nação. Segundo ele, tanto o liberalismo quanto o marxismo eram internacionalistas demais para entender o papel fundamental do nacionalismo e do Estado na consecução da soberania popular [1].

Não importaria se esse ou aquele grupo se definia como de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, religioso ou materialista: o verdadeiro corte se dava entre patriotas e apátridas.

A abordagem está de pleno acordo com a tradição trabalhista, principalmente com o getulismo e o brizolismo. A carta-testamento do imortal Presidente, que nunca se disse de direita ou de esquerda, se referia a fortes inimigos estrangeiros, forças econômicas e políticas que seriam obstáculos ao esforço de abrir caminho para a realização de nossa grandeza.

Brizola nunca deixou de denunciar o processo de espoliação com que tentavam conter nosso dinamismo. Para o velho caudilho, existia uma elite apátrida, que ele chamava de ''anti-povo'', aliada do sistema internacional, e que traía os destinos do Brasil. Assim, os interesses estrangeiros possuíam aliados dentro do nosso país. [2]

Ele negava também que o trabalhismo fosse ramo da esquerda ou da social-democracia do Velho Mundo, ainda que o PDT tenha aderido à Internacional Socialista. Mais uma vez, o corte não era entre liberalismo e marxismo. Era Pátria ou nada: o projeto europeu sempre foi imperialista, enquanto nós estávamos na semi-periferia do ''sistema-mundo'' capitalista e por isso precisávamos de uma perspectiva diferenciada na luta por nossa independência plena.



Nada disso parece escapar a Ciro em seu livro. E, no entanto, ele se furta a tratar mais detidamente as necessidades geopolíticas da América do Sul e o problema do Imperialismo. Pior ainda, comete o erro de erigir o Estado de Bem Estar Social da Suécia como referência do seu projeto. Ora, a Suécia é uma plutocracia, cuja qualidade de vida foi construída em cima do imperialismo já mencionado. [3]

Há uma contradição cravada no âmago de ''Projeto Nacional". Um louvor à Suécia e ao mesmo tempo o eco das palavras de Darcy Ribeiro, segundo o qual o Brasil tem de construir uma civilização singular, a Nova Roma, em união com os demais países da América Latina e se contrapondo à América anglo-saxã. [4] Nas palavras de Darcy, o Estado-Nação desembocava na Pátria Grande.

Ciro defende a integração do nosso subcontinente, citando inclusive a Constituição Federal, mas não mergulha nas ''águas mais profundas'', e trata esse telos quase que entre parênteses, às pressas, sem maior desenvolvimento.

A união cultural, política e econômica da América do Sul é a chave para que escapemos das intervenções consecutivas que os ianques realizam entre nós a fim de manter sua hegemonia. Rumar para o interior, ocupando o território, e se aliando com as potências terrestres da Argentina e do Chile é uma das vias para o Pacífico e para a independência. [5] 

Não há saída sem colocar a geopolítica, e dentro da geopolítica o anti-imperialismo, no coração de um projeto nacional-popular. Obviamente, a integração territorial e cultural não pode deixar de lado os aspectos econômicos, já que não nascemos para ser periferia, e sim um polo de poder de fato e de direito.

Nesse ponto, como bem nota o professor Nildo, faltou bolivarianismo. Não por que devamos imitar essa ou aquela política miúda de um ou outro país que se diz bolivariano, mas no sentido imprescindível da amalgamação sul-americana e propostas concretas para realizá-la.


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[1] A articulação entre marxismo e nacionalismo se demonstrou um problema histórico para o socialismo brasileiro, e um dos obstáculos mais fortes do nacionalismo revolucionário.

[2] O diagnóstico do Imperialismo é um dos meios mais eficazes para sanar as diferenças entre marxistas e nacionalistas na política sul-americana. A figura de Brizola se torna capital nessa questão.

[3] Uma avaliação que se encontra presente inclusive no pensamento de Mangabeira Unger, que acusa a Nova República de ter fracassado, dentre outras coisas, por se limitar a elaborar um projeto de “Suécia Tropical”.

[4] Não se trata de uma confusão banal, pois  internacionalismo social-democrata leva a esquerda brasileira a gravitar em torno dos interesses do Deep State ianque, tal como representados no Partido Democrata. De maneira ingênua, muitos intelectuais desse campo progressista leem a realidade brasileira como mero reflexo de embates da sociedade estadunidense, se aliando de maneira subordinada aos projetos dos Clinton, dos Obama e outros representantes do imperialismo perfumado. Na geopolítica, a dominação de um país é auxiliada pela construção de justificativas ideológicas e “civilizatórias” para sua posição hierarquicamente superior, quando então a dominação imperial se torna em hegemonia. O “obamismo” é uma das expressões recentes dessa característica da estratégia ianque, uma armadilha em que muitos supostos revolucionários caem.

[5] O temor norte-americano de integração sul-americana liderada pelo Brasil, e levada a efeito de leste para o Oeste, com união das costas Atlântica e Pacífica do continente, bem como da Bacia do Prata e da Amazônia, sempre foi explicitada entre os principais elaboradores da geopolítica dos Estados Unidos.

Um comentário:

  1. André tudo bem ? Sou inscrito no seu canal do YouTube já de alguns meses. Gostaria de saber alguma posição sua em relação a reforma administrativa proposta pelo governo Bolsonaro.

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