sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O Protagonismo Feminino naquela Galáxia distante, ou: O Progressismo Liberal destruiu Guerra nas Estrelas? Parte II

 "Bem, no primeiro filme, Luke era uma menina…Então a menina foi dividida em gêmeos. Assim, a menina estava de verdade lá, e é Luke quem foi introduzido. Em último caso, quando se pensa sobre isso, o Episódio IV é na verdade sobre a Princesa Leia. É a história dela. Ela que é verdadeiramente o tema do filme. Ela é quem tem a missão, quem lidera seu povo, e quem precisa de ajuda para fazer com que isso tudo seja realizado. Mas a história é contada do ponto de vista de Luke, porque no fim é ele quem vai confrontar seu pai. [...] A verdade é que são Leia e Padmé quem instigam a coisa toda, ainda que tudo seja contado do ponto de vista de Anakin e Luke. Embora o drama seja a queda de Anakin para o lado sombrio e sua redenção por Luke, o baluarte de tudo está em Padmé e Leia – elas tem o problema político pra resolver, ou seja, tem de liderar a Rebelião, de trazer paz à Galáxia, e todo esse tipo de coisa – elas é quem fazem isso."



George Lucas
A Princesa Leia, líder da Resistência, e que condecora os herois no final primeiro filme da franquia, foi um marco do protagonismo feminino no cinema



Esse texto é uma continuação da postagem anterior, que pode ser lida aqui, e que pretende discutir a abordagem conservadora-liberal e algo olavética que foi realizada nessa página a respeito d'Os Últimos Jedi.




Eu havia apontado que, em meio aos acertos de sua análise, Mateus Diniz caiu em alguns becos sem saída muito importantes. Há uma lacuna no artigo que pode dar a impressão de que o progressismo liberal está por trás apenas de Guerra nas Estrelas e não da indústria cinematográfica americana em geral. Pior ainda, fortalece um discurso de que houve um desvirtuamento dos novos filmes, que a saga estava isenta desse compromisso ideológico antes e que só agora, ao passar para as mãos da Disney, foi permeada pela sensibilidade liberal.




Vou problematizar alguns dos exemplos dados pelo autor sobre as pautas progressistas n'Os Últimos Jedi, apontando também que esse teor ideológico estava presente na franquia desde seus primórdios. Vou argumentar também que hoje, assim como em 1977, é  possível criticar ao mesmo tempo a mentalidade liberal que emoldura a história e desvincular esse arcabouço de outros elementos da obra -- e que permitem que a apreciemos de outro patamar. Por fim, pretendo alertar meus poucos leitores para o perigo do ''lado sombrio'' do conservadorismo.




Uma das facetas mais celebradas por Hollywood atualmente é o grau a que tem chegado o protagonismo feminino nos filmes dessa década. Hoje em dia, ninguém se escandaliza mais com o fato de que o filme da Mulher Maravilha, estrelado pela modelo israelense Gal Gadot, tenha bilheteria maior do que o Homem de Aço do britânico Henry Cavill. É notável, inclusive, que para além do fato de que se trata de uma história sobre uma heroína que foi criada para ser um ícone feminista, Mulher Maravilha traga, intencionalmente, uma serie de piadas e diálogos que expressam fases e tópicos presentes naquele movimento político ideológico: a ideia de que homens são dispensáveis para o prazer sexual feminino; piadas com o falo; críticas ao machismo da cúpula militar britânica; desprezo pelo papel feminino expresso na profissão de secretária etc.




O protagonismo de Leia, ao mesmo tempo líder político-militar e veículo de poderes da Força, tem sua continuidade na principal personagem da nova trilogia: Rey
"Os Últimos Jedi'' não caminha de modo tão forte assim na agenda feminista. Mas não há como negar que o filme afirma de maneira forte a existência de liderança feminina. A jornada Jedi é realizada por uma mulher, Rey, e o comando da Resistência repousa nas mãos de Leia. Temos a presença de mulheres em papéis chave, como Rose e a Comandante Holdo. As funções exercidas por elas não são exatamente um tema, um problema a ser tratado na história: são parte do cenário, uma característica natural, uma normalidade daquele universo. Se um conservador pensa que essa sugestão é um perigo ao patriarcalismo, então tem todos os motivos para denunciá-lo e apontá-lo como um instrumento progressista empurrado de modo um tanto implícito -- ''subliminar'' diria Mateus Diniz -- à audiência de Guerra nas Estrelas. Repito, à audiência de Guerra nas Estrelas, não somente d'Os Últimos Jedi.




Pois essa abordagem está presente na franquia desde seu primeiro filme. A Princesa Leia se tornou um ícone da onda feminista dos anos 1970 só rivalizado pela série da Mulher Maravilha estrelada por Lynda Carter, e boa parte das militantes da causa, muitas das quais cresceram com a primeira trilogia, a viam exatamente dessa maneira [1]. Leia não é uma mulher frágil que será resgatada por um heroi com uma espada. Ela já era a principal líder da rebelião. Logo quando apresentada a Luke e Solo, a Princesa [2] toma a frente do resgaste, que critica a todo instante por sua absoluta falta de estratégia. Ela coloca Han em seu lugar de subordinado [antes de perceber de que se trata um líder nato n'O Império contra-ataca] de modo tão veemente quanto Holdo faz com Poe Dameron no episódio que se encontra nas telas.




Para aqueles que desejariam contra-argumentar só com a quantidade à mão, dizendo que nos novos filmes o número de mulheres na posição de liderança se multiplicou, lembro que, apesar disso, ele não ''mudou de nível''. A figura de Leia era muito mais impactante em 1977 do que a presença de 3 ou 4 mulheres entre os personagens principais atualmente. Estamos falando de um filme lançado há quarenta anos, quando os Estados Unidos acabavam de sair de um período em que a classe média ianque reduziu o papel feminino à propaganda da cozinha americana, lotada de eletrodomésticos, trincheira das mulheres em famílias que viviam em subúrbios conformistas [notem o sucesso de séries como ''A Feiticeira'' ou ''Jeannie é um Gênio'']. Imaginem o potencial estrondoso dessa personagem em uma América do Sul de então.




Ainda sobre este ponto, Mateus Matos argumenta que o feminismo também pode ser percebido na presença exclusiva de homens no ''lado sombrio'', enquanto as principais personagens femininas aparecem sempre do lado da Resistência, do lado ''do bem''. Concordo que esse é o caso, discordo mais uma vez que seja novidade. Podemos dizer o mesmo das outras duas trilogias: dentre os principais personagens, as mulheres estão representadas quase que exclusivamente do lado reto e justo, como a Comandante Mon Mothma na Aliança Rebelde [presente tanto n'O Retorno de Jedi, quanto n'A Vingança do Sith e ''Rogue One'']. Do lado sombrio sempre abundaram figuras masculinas: Darth Sidious, Darth Vader, Darth Maul, Conde Dooku, Snoke, Kylo Ren, Tarkin e outros. E, àqueles que se apegam ao fato de que a principal representante do lado luminoso é agora uma mulher, respondo que em alguns dos rascunhos feitos por George Lucas quando da criação de Guerra nas Estrelas esse era justamente o caso de Luke, que seria uma jovem apaixonada por Han Solo [3]O personagem principal da série foi dividido em dois, um homem que emulava um jovem Rei Arthur, e uma princesa, sua contra-parte e mais tarde irmã gêmea. Eis a demonstração inequívoca de que o criador da Saga sempre esteve antenado com a agenda feminista, ainda que apenas como expressão dos valores que partilha como cineasta ianque. Não foi a Disney que inoculou esse discurso na obra. 


A Comandante Holdo não era uma das principais lideranças da Resistência, mas é alçada a essa posição após Leia e Akbar terem sido atingidos em um ataque da Primeira Ordem


Somos colocados aqui diante daquelas alternativas citadas na postagem anterior. Ou jogamos toda a saga fora a partir de um purismo conservador e anti-liberal, ou, assim como fizemos com o filme original, nos permitimos separar o joio do trigo, mantendo os elementos da narrativa que superam essa ideologia, e reinterpretando todos os demais que lhe estão ligados. Eis aqui um ponto importante. Os fãs que cresceram com as trilogias anteriores não se cansaram de reler Guerra nas Estrelas. Nada há de esquisito nisso: Desde o momento em que publicizada por um autor, a obra não mais lhe pertence por inteiro. Ela será interpretada e reinterpretada por outros, continuamente. Quanto mais ampla e universal for, mais e mais leituras vai ser capaz de gerar. O que os fãs chamam de ''Universo Expandido'' nada mais é do que um conjunto imenso de releituras em cima de releituras, e muitos chegam ao ponto de acreditar, ingenuamente, que sua interpretação é aquela intencionada por George Lucas desde o princípio [4]. Esse é o caso da mitologia construída em cima dos Sith. Até hoje lembro do meu espanto quando o irmão de uma antiga namorada me disse, logo depois d'Ameaça Fantasma, que considerava Darth Maul mais poderoso do que os Jedi. Ele revelava uma admiração pelo grupo de adeptos do ''lado sombrio'' que só se intensificaria naquela nova geração de fãs, alguns dos quais os elevaram até a verdadeiros herois, em vez de se identificarem com os ''dogmáticos'' Jedi. É claro que não era essa a intenção de George Lucas, que sempre viu nos Sith agentes perturbados, veículos da destruição e da ira, mergulhados em uma paixão da qual os estoicos Jedi estavam a salvo.




Nada de mal há nessas apropriações e releituras, repito, é assim mesmo que funciona a repercussão de grandes obras. Elas são fecundas. E também pode ser fecundo o protagonismo feminino em Guerra nas Estrelas. Assim como nos filmes antigos, a trilogia da Disney não traz nenhuma militância contra os arranjos familiares enraizados na relação entre homens e mulheres. Não se prega nos filmes uma revolução de costumes. A afirmação da liderança feminina é dada em outros âmbitos. A de Rey, inclusive, se desenrola em um cenário místico e esotérico. Nos momentos de crise, no terreno da busca espiritual e no da metafísica o papel das mulheres não é mera reprodução das formalidades sociais, por mais que essas últimas possuam justificativas na natureza dos sexos. Em mais de uma corrente espiritualista e esoterica, a mulher é a expressão de uma face da divindade, quando não a representação do próprio Absoluto, passível de ser iniciada e realizada enquanto mestre. O que torna apropriado o papel de Rey em um momento em que a Saga se prepara para deixar de lado o ''dogmatismo'' Jedi, marcado por um conjunto de adeptos masculinos e celibatários. O protagonismo feminino não é um problema em si, ele é também solução, um princípio que é sempre atuante, ainda que por trás dos panos, e que em muitos casos deve ser explicitado e realizado.





Na próxima postagem vou dar continuidade a essa abordagem, mostrando como Guerra nas Estrelas pode ser criticado em sua mentalidade progressista, usando para este fim os demais exemplos dados por Mateus Diniz, e outros mais ainda; e o modo como hoje, assim como no passado, a Saga pode ser desvinculada dos efeitos mais deletérios dessa mentalidade e relida em outro nível. De modo menos explícito, estarei criticando os próprios limites do repúdio conservador ao progressismo. Vou abordar agora outros aspectos, como a política, as relações inter-étnicas e a hierarquia entre mestre e discípulo naquela galáxia [não] tão distante.


[continua]



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[1] Leia era e continua sendo um ícone feminista e Uma heroína feminista . O seguinte artigo trata da polêmica envolvida n'O Retorno de Jedi, quando Leia é retratada como uma escrava sexual quando capturada por Jabba. Claro que nem todas as feministas se satisfazem com Guerra nas Estrelas, elas gostariam que a Saga avançasse ainda mais nesse ponto, mas esse impulso faz parte da natureza do próprio progressismo.

[2] Na trilogia atual, Leia abandona o seu epíteto de Princesa e passa a ser chamada de ''General''. Em uma das primeiras cenas d'O Despertar da Força vemos um velho combatente, representando as gerações anteriores, dialogando com Pode Dameron e afirmando que ''Leia é general para você, mas para mim continua sendo da Realeza''. Leia é uma nobre por função social em seu planeta -- o primeiro a ser destruído pela Estrela da Morte, mas uma líder militar na Rebelião e na Resistência. O papel de Princesa, porém, tem também traços arquetípicos, ou antes simbólicos e míticos.

[3] Uma princesa chamada Luke?

[4] Alguns fãs crêem piamente que todo o desenrolar do universo de Guerra nas Estrelas já estava elaborado por George Lucas desde o princípio. Os fãs da segunda geração, inclusive, se abraçam à ideia de que Anakin Skywalker sempre havia sido o protagonista principal da franquia, que desde sempre era o ''escolhido'' na história, o messias que traria ''equilíbrio'' para a Força. Ora, muitos desses e outros conceitos provavelmente foram criados depois: aqui. Na verdade, parece que quando do lançamento do filme original, em 1977, George Lucas não havia se decidido sequer que Darth Vader era de fato pai de Luke, e que o heroi era irmão de Leia. Esse ponto não é fundamental para a minha argumentação, mas adianta algo de que tratarei mais tarde, a tendência de uma geração de fãs de perceber a sua perspectiva ou experiência de uma obra como a essência última e acabada da dita cuja. 

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