"Bem,
no primeiro filme, Luke era uma menina…Então a menina foi dividida em gêmeos. Assim,
a menina estava de verdade lá, e é Luke quem foi introduzido. Em último caso,
quando se pensa sobre isso, o Episódio IV é na verdade sobre a Princesa Leia. É a história dela. Ela que é verdadeiramente o tema do filme. Ela é quem tem a
missão, quem lidera seu povo, e quem precisa de ajuda para fazer com que isso
tudo seja realizado. Mas a história é contada do ponto de vista de Luke, porque
no fim é ele quem vai confrontar seu pai. [...] A verdade é que são Leia e
Padmé quem instigam a coisa toda, ainda que tudo seja contado do ponto de vista
de Anakin e Luke. Embora o drama seja a queda de Anakin para o lado sombrio e
sua redenção por Luke, o baluarte de tudo está em Padmé e Leia – elas tem o problema político pra resolver, ou seja, tem de liderar a Rebelião, de trazer
paz à Galáxia, e todo esse tipo de coisa – elas é quem fazem isso."
George Lucas
George Lucas
A Princesa Leia, líder da Resistência, e que condecora os herois no final primeiro filme da franquia, foi um marco do protagonismo feminino no cinema |
Esse
texto é uma continuação da postagem anterior, que pode ser lida aqui, e que
pretende discutir a abordagem conservadora-liberal e algo olavética que foi
realizada nessa página a respeito d'Os Últimos Jedi.
Eu havia apontado que, em meio aos acertos de sua análise, Mateus Diniz caiu em
alguns becos sem saída muito importantes. Há uma lacuna no artigo que pode dar
a impressão de que o progressismo liberal está por trás apenas de Guerra nas
Estrelas e não da indústria cinematográfica americana em geral. Pior ainda,
fortalece um discurso de que houve um desvirtuamento dos novos filmes,
que a saga estava isenta desse compromisso ideológico antes e que só agora, ao passar para as mãos da Disney, foi permeada pela sensibilidade liberal.
Vou problematizar alguns dos exemplos dados pelo autor sobre as
pautas progressistas n'Os Últimos Jedi, apontando também que esse teor
ideológico estava presente na franquia desde seus primórdios. Vou argumentar também
que hoje, assim como em 1977, é possível criticar ao mesmo tempo a mentalidade
liberal que emoldura a história e desvincular
esse arcabouço de outros elementos da obra -- e que permitem que a apreciemos de outro patamar. Por fim, pretendo alertar meus poucos leitores
para o perigo do ''lado sombrio'' do conservadorismo.
Uma
das facetas mais celebradas por Hollywood atualmente é o grau a que tem chegado
o protagonismo feminino nos filmes dessa década. Hoje em dia, ninguém se
escandaliza mais com o fato de que o filme da Mulher Maravilha, estrelado pela
modelo israelense Gal Gadot, tenha bilheteria maior do que o Homem de Aço do
britânico Henry Cavill. É notável, inclusive, que para além do fato de que
se trata de uma história sobre uma heroína que foi criada para ser um ícone
feminista, Mulher Maravilha traga, intencionalmente, uma serie de piadas e
diálogos que expressam fases e tópicos presentes naquele movimento político
ideológico: a ideia de que homens são dispensáveis para o prazer sexual
feminino; piadas com o falo; críticas ao machismo da cúpula militar britânica;
desprezo pelo papel feminino expresso na profissão de secretária etc.
O protagonismo de Leia, ao mesmo tempo líder político-militar e veículo de poderes da Força, tem sua continuidade na principal personagem da nova trilogia: Rey |
"Os
Últimos Jedi'' não caminha de modo tão forte assim na agenda feminista. Mas não há como negar que o filme afirma de maneira
forte a existência de liderança feminina. A jornada Jedi é realizada por uma mulher, Rey, e o comando da Resistência repousa nas mãos de Leia. Temos a presença de mulheres em papéis chave, como Rose e a Comandante Holdo. As funções exercidas por elas não são exatamente um tema, um problema a ser tratado
na história: são parte do cenário, uma característica natural, uma normalidade
daquele universo. Se um conservador pensa que essa sugestão é um perigo ao
patriarcalismo, então tem todos os motivos para denunciá-lo e apontá-lo como um
instrumento progressista empurrado de modo um tanto implícito -- ''subliminar'' diria Mateus Diniz -- à audiência de
Guerra nas Estrelas. Repito, à audiência de Guerra nas Estrelas, não somente
d'Os Últimos Jedi.
Pois essa abordagem está presente na franquia desde seu primeiro
filme. A Princesa Leia se tornou um ícone da onda feminista dos anos 1970 só
rivalizado pela série da Mulher Maravilha estrelada por Lynda Carter, e boa
parte das militantes da causa, muitas das quais cresceram com a primeira trilogia, a viam
exatamente dessa maneira [1]. Leia não é uma mulher frágil que será resgatada por
um heroi com uma espada. Ela já era a principal líder da rebelião.
Logo quando apresentada a Luke e Solo, a Princesa [2] toma a frente do resgaste, que
critica a todo instante por sua absoluta falta de estratégia. Ela coloca Han em
seu lugar de subordinado [antes de perceber de que se trata um líder nato n'O Império contra-ataca] de modo tão veemente quanto Holdo faz com Poe
Dameron no episódio que se encontra nas telas.
Para
aqueles que desejariam contra-argumentar só com a quantidade à mão, dizendo
que nos novos filmes o número de mulheres na posição de liderança se
multiplicou, lembro que, apesar disso, ele não ''mudou de nível''. A figura de
Leia era muito mais impactante em 1977 do que a presença de 3 ou 4 mulheres
entre os personagens principais atualmente. Estamos falando de um filme
lançado há quarenta anos, quando os Estados Unidos acabavam de sair de um
período em que a classe média ianque reduziu o papel feminino à propaganda da
cozinha americana, lotada de eletrodomésticos, trincheira das mulheres em famílias que viviam em subúrbios conformistas [notem o
sucesso de séries como ''A Feiticeira'' ou ''Jeannie é um Gênio'']. Imaginem o
potencial estrondoso dessa personagem em uma América do Sul de então.
Ainda
sobre este ponto, Mateus Matos argumenta que o feminismo também pode
ser percebido na presença exclusiva de homens no ''lado sombrio'', enquanto as principais personagens femininas aparecem sempre do lado da Resistência, do lado
''do bem''. Concordo que esse é o caso, discordo mais uma vez que seja
novidade. Podemos dizer o mesmo das outras duas trilogias: dentre os
principais personagens, as mulheres estão representadas quase que
exclusivamente do lado reto e justo, como a Comandante Mon Mothma na Aliança
Rebelde [presente tanto n'O Retorno de Jedi, quanto n'A Vingança do Sith e
''Rogue One'']. Do lado sombrio sempre abundaram figuras masculinas: Darth
Sidious, Darth Vader, Darth Maul, Conde Dooku, Snoke, Kylo Ren, Tarkin e
outros. E, àqueles que se apegam ao fato de que a principal representante do
lado luminoso é agora uma mulher, respondo que em alguns dos rascunhos feitos
por George Lucas quando da criação de Guerra nas Estrelas esse era justamente o
caso de Luke, que seria uma jovem apaixonada por Han Solo [3]. O personagem principal da série foi dividido em dois, um homem que emulava um jovem Rei Arthur, e uma princesa, sua contra-parte e mais tarde irmã gêmea. Eis a demonstração inequívoca de que o criador da Saga sempre esteve antenado com a agenda feminista, ainda que apenas como expressão dos valores que partilha como cineasta ianque.
Não foi a Disney que inoculou esse discurso na obra.
A Comandante Holdo não era uma das principais lideranças da Resistência, mas é alçada a essa posição após Leia e Akbar terem sido atingidos em um ataque da Primeira Ordem |
Somos
colocados aqui diante daquelas alternativas citadas na postagem anterior. Ou
jogamos toda a saga fora a partir de um purismo conservador e anti-liberal, ou,
assim como fizemos com o filme original, nos permitimos separar o joio do
trigo, mantendo os elementos da narrativa que superam essa ideologia, e reinterpretando todos os demais que lhe estão ligados. Eis aqui um ponto importante. Os fãs que
cresceram com as trilogias anteriores não se cansaram de reler Guerra nas
Estrelas. Nada há de esquisito nisso: Desde o momento em que publicizada por um
autor, a obra não mais lhe pertence por inteiro. Ela será interpretada e
reinterpretada por outros, continuamente. Quanto mais ampla e universal for,
mais e mais leituras vai ser capaz de gerar. O que os fãs chamam de ''Universo Expandido''
nada mais é do que um conjunto imenso de releituras em cima de releituras, e
muitos chegam ao ponto de acreditar, ingenuamente, que sua interpretação é
aquela intencionada por George Lucas desde o princípio [4]. Esse é o caso da mitologia
construída em cima dos Sith. Até hoje lembro do meu espanto quando o irmão de uma antiga
namorada me disse, logo depois d'Ameaça Fantasma, que considerava Darth Maul
mais poderoso do que os Jedi. Ele revelava uma admiração pelo
grupo de adeptos do ''lado sombrio'' que só se intensificaria naquela nova
geração de fãs, alguns dos quais os elevaram até a verdadeiros herois, em vez de
se identificarem com os ''dogmáticos'' Jedi. É claro que não era essa a intenção
de George Lucas, que sempre viu nos Sith agentes perturbados, veículos da destruição e da
ira, mergulhados em uma paixão da qual os estoicos Jedi estavam a salvo.
Nada
de mal há nessas apropriações e releituras, repito, é assim mesmo que funciona a repercussão de grandes
obras. Elas são fecundas. E também pode ser fecundo o protagonismo feminino em
Guerra nas Estrelas. Assim como nos filmes antigos, a trilogia da Disney não
traz nenhuma militância contra os arranjos familiares enraizados na relação entre homens e mulheres. Não se prega nos filmes uma revolução de costumes. A afirmação da liderança feminina é dada em outros âmbitos. A de Rey, inclusive, se desenrola em um cenário místico e
esotérico. Nos momentos de crise, no terreno da busca espiritual e no da
metafísica o papel das mulheres não é mera reprodução das formalidades sociais, por mais que essas últimas possuam justificativas na natureza dos sexos. Em mais de uma corrente espiritualista e
esoterica, a mulher é a expressão de uma face da divindade, quando não a
representação do próprio Absoluto, passível de ser iniciada e realizada enquanto mestre. O que torna apropriado o papel de Rey em um momento em que a Saga se prepara para deixar de lado o
''dogmatismo'' Jedi, marcado por um conjunto de adeptos masculinos e
celibatários. O protagonismo feminino não é um problema em si, ele é também
solução, um princípio que é sempre atuante, ainda que por trás dos panos, e que em muitos casos deve ser explicitado e realizado.
Na
próxima postagem vou dar continuidade a essa abordagem, mostrando como Guerra
nas Estrelas pode ser criticado em sua mentalidade progressista, usando para este fim os
demais exemplos dados por Mateus Diniz, e outros mais ainda;
e o modo como hoje, assim como no passado, a Saga pode ser desvinculada dos efeitos mais
deletérios dessa mentalidade e relida em outro nível. De modo menos explícito,
estarei criticando os próprios limites do repúdio conservador ao
progressismo. Vou abordar agora outros aspectos, como a política, as relações inter-étnicas
e a hierarquia entre mestre e discípulo naquela galáxia [não] tão distante.
[continua]
_____________________________________________________
[1] Leia era e continua sendo um ícone feminista e Uma heroína feminista . O seguinte artigo trata da polêmica envolvida n'O Retorno de Jedi, quando Leia é retratada como uma escrava sexual quando capturada por Jabba. Claro que nem todas as feministas se satisfazem com Guerra nas Estrelas, elas gostariam que a Saga avançasse ainda mais nesse ponto, mas esse impulso faz parte da natureza do próprio progressismo.
[2] Na trilogia atual, Leia abandona o seu epíteto de Princesa e passa a ser chamada de ''General''. Em uma das primeiras cenas d'O Despertar da Força vemos um velho combatente, representando as gerações anteriores, dialogando com Pode Dameron e afirmando que ''Leia é general para você, mas para mim continua sendo da Realeza''. Leia é uma nobre por função social em seu planeta -- o primeiro a ser destruído pela Estrela da Morte, mas uma líder militar na Rebelião e na Resistência. O papel de Princesa, porém, tem também traços arquetípicos, ou antes simbólicos e míticos.
[3] Uma princesa chamada Luke?
[4] Alguns fãs crêem piamente que todo o desenrolar do universo de Guerra nas Estrelas já estava elaborado por George Lucas desde o princípio. Os fãs da segunda geração, inclusive, se abraçam à ideia de que Anakin Skywalker sempre havia sido o protagonista principal da franquia, que desde sempre era o ''escolhido'' na história, o messias que traria ''equilíbrio'' para a Força. Ora, muitos desses e outros conceitos provavelmente foram criados depois: aqui. Na verdade, parece que quando do lançamento do filme original, em 1977, George Lucas não havia se decidido sequer que Darth Vader era de fato pai de Luke, e que o heroi era irmão de Leia. Esse ponto não é fundamental para a minha argumentação, mas adianta algo de que tratarei mais tarde, a tendência de uma geração de fãs de perceber a sua perspectiva ou experiência de uma obra como a essência última e acabada da dita cuja.
[continua]
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[1] Leia era e continua sendo um ícone feminista e Uma heroína feminista . O seguinte artigo trata da polêmica envolvida n'O Retorno de Jedi, quando Leia é retratada como uma escrava sexual quando capturada por Jabba. Claro que nem todas as feministas se satisfazem com Guerra nas Estrelas, elas gostariam que a Saga avançasse ainda mais nesse ponto, mas esse impulso faz parte da natureza do próprio progressismo.
[2] Na trilogia atual, Leia abandona o seu epíteto de Princesa e passa a ser chamada de ''General''. Em uma das primeiras cenas d'O Despertar da Força vemos um velho combatente, representando as gerações anteriores, dialogando com Pode Dameron e afirmando que ''Leia é general para você, mas para mim continua sendo da Realeza''. Leia é uma nobre por função social em seu planeta -- o primeiro a ser destruído pela Estrela da Morte, mas uma líder militar na Rebelião e na Resistência. O papel de Princesa, porém, tem também traços arquetípicos, ou antes simbólicos e míticos.
[3] Uma princesa chamada Luke?
[4] Alguns fãs crêem piamente que todo o desenrolar do universo de Guerra nas Estrelas já estava elaborado por George Lucas desde o princípio. Os fãs da segunda geração, inclusive, se abraçam à ideia de que Anakin Skywalker sempre havia sido o protagonista principal da franquia, que desde sempre era o ''escolhido'' na história, o messias que traria ''equilíbrio'' para a Força. Ora, muitos desses e outros conceitos provavelmente foram criados depois: aqui. Na verdade, parece que quando do lançamento do filme original, em 1977, George Lucas não havia se decidido sequer que Darth Vader era de fato pai de Luke, e que o heroi era irmão de Leia. Esse ponto não é fundamental para a minha argumentação, mas adianta algo de que tratarei mais tarde, a tendência de uma geração de fãs de perceber a sua perspectiva ou experiência de uma obra como a essência última e acabada da dita cuja.
Excelente artigo! Bjs. Livia. ❤
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