''O Império, seus pais, a Resistência, os Sith, os Jedi...deixe o passado morrer. Mate-o, se for necessário. É a única maneira de se tornar aquilo que você está destinado a ser''
Kylo Ren
Luke avisa a Yoda e Obi-Wan que não mataria o próprio pai, frase que os mestres encaram como uma vitória do Imperador. O Padawan sabia mais do que os Anciãos |
Ao longo da argumentação que venho tecendo, dei razão ao cerne da crítica conservadora a Guerra nas Estrelas: a franquia é de fato um instrumento de divulgação da sensibilidade progressista [por vezes uso também o termo liberal, embora nem todos os conservadores possam concordar com ele]. Ainda que não traga um discurso explícito e militante que reduza a obra a um mero marketing ideológico, a moldura ou arquitetura em que se desenvolvem as histórias está incrustada e formatada pela mentalidade progressista. Mas divisei também pelo menos quatro erros crassos na crítica mencionada: i) Ela não enfatiza que pode ser aplicada de modo geral a todo produto de Hollywood voltado para o grande público; ii) Ela dá a impressão de que o liberalismo passou a permear Guerra nas Estrelas apenas na nova trilogia, quando na verdade já está presente desde seus primórdios e em todo o seu desenvolvimento; iii) não percebe que, assim como nos outros filmes da saga, os lançamentos recentes tampouco se reduzem ao progressismo, e é possível separar neles os elementos mais profundos ou reinterpretar a obra a partir de um olhar menos limitado; iv) a própria crítica conservadora está cerceada por restrições que a impedem de apreciar algumas das maiores qualidades dos novos filmes.
Yoda ensina que o medo leva ao ''lado
escuro'' da Força; de modo similar, também faz com que a crítica conservadora
caia em algumas forçações de barra e leituras enviesadas do enredo e das cenas
d'Os Últimos Jedi. Um exemplo é a sugestão de Mateus Diniz, feita neste texto com
que dialogo e que torno fio condutor das minhas postagens, de que a relação
entre Holdo e Leia está impregnada pela sensibilidade gay. Ora, o filme aponta
a ligação entre duas guerreiras e amigas que se conheciam há muito tempo, batalharam
juntas contra o mesmo oponente, e se despedem na certeza que de uma delas vai ao encontro da morte. Não há qualquer laivo erótico ou implicação outra nas
cenas. Outra sugestão é a de que no próximo filme o personagem de Oscar Isaac será
retratado como homossexual. Não digo que seja impossível, afinal a pauta de
defesa pelos direitos gay é elemento importante da militância liberal de
Hollywood. Mas é imensamente improvável: primeiro porque, quando se trata de produtos destinados a um grande mercado, a implementação dessa agenda se dá de modo bastante sutil
e marginal, e isso já há meio século. [não sejam ingênuos para não perceberem
as insinuações por trás dos trejeitos de ''mordomo'' de C-3PO]. Segundo, tudo
indica que o novo líder da Resistência vai viver uma história romântica com
Rey.
As decisões equivocadas do impulsivo Dameron provocam consequências catastróficas: um líder em formação aprendendo com os próprios erros |
Esse tipo de forçação impede os
conservadores de notarem uma das mensagens mais poderosas d'Os Últimos Jedi, problema que pode ser exemplificado com as análises que alguns fizeram em cima dos arcos
de Poe Dameron e Luke: O Episódio VIII nos revela um membro importante da
Resistência ao mesmo tempo corajoso e impulsivo, incapaz do pensamento
estratégico necessário a uma liderança confiável. Como resultado, todos os seus
planos e decisões acabam conduzindo ao desastre. Há quem diga, com certa razão,
que a maior parte das mortes de rebeldes é provocada pela imperícia
do sujeito.O arco de Dameron se coaduna bem com a intenção de Rian Johnson de
dobrar as expectativas dos fãs, levando-os a situações bastante familiares e
consagradas apenas para resolvê-las de modo inesperado -- lembro mais uma vez
aqui a frase de Skywalker para Rey, ''isso não vai se passar do modo como você
imagina''. A bravura cega do piloto faz com que a Resistência perca toda a sua frota de bombardeiros em troca da destruição de apenas um encouraçado da Primeira Ordem.
Depois conduz a um plano mirabolante -- porém arquiconhecido dos que
acompanham a franquia -- de invasão de uma gigantesca nave inimiga para
sabotá-la por dentro, quase provocando a destruição total dos Rebeldes -- que só
não ocorre por causa, agora sim , do heroísmo da Comandante contra a qual Poe
havia se amotinado. Como lhe diz Leia, ''Holdo estava mais preocupada em
proteger a fagulha [da rebelião/esperança] do que em ser vista como heroi''.
Para os conservadores, a cena se tornou reveladora da intenção de Hollywood usar Guerra nas Estrelas para defender a subordinação dos homens às mulheres. As virtudes masculinas de Dameron, segundo eles, não
seriam suficientes para proteger a Resistência. As duas mulheres na liderança,
Leia e Holdo, é que possuiriam o domínio emocional necessário à função. O
problema dessa abordagem é que, embora as cenas afirmem de fato o protagonismo
feminino -- tema já tratado em postagem anterior --, o roteiro não mostra Poe fracassando por ser homem, e sim por ser um jovem temerário. A imaturidade de Poe é que lhe fazia pensar que sabia mais do que aqueles que ocupavam
posições mais elevadas. Ele não conseguia ver os motivos, a estratégia, por
detrás das ações dos mais experientes. Eis aqui um tema recorrente em
Hollywood, as novas gerações seriam portadoras de uma verdade que a antiga não
é capaz de divisar por causa de seu apego a modelos ultrapassados. Rian
Johnson subverte essa noção. A mensagem é tão nítida que, após o sacrifício de
Holdo, Poe se torna o líder que nasceu para ser, sem no entanto perder nada de sua virilidade. Ele se torna capaz de abortar uma
missão suicida contra o aríete/estrela da morte no terceiro ato do filme. Nos
momentos finais, demonstra a habilidade -- antes de Leia, frise-se -- de
compreender as intenções de Luke -- um homem que, naquele momento, unia
heroísmo e estratégia em prol de um bem maior -- e salvar o que restava dos
rebeldes. A nova posição de Poe Dameron é confirmada pela própria Leia, que diz
aos seus subordinados, ''por que estão olhando para mim? Sigam-no!'', e
reforçada por uma das frases de Luke em diálogo com Kylo: ''a Resistência se
revigorou hoje'', frase acompanhada pela aparição do rosto de Dameron na tela.
O garoto imaturo havia se tornado um homem.
Rey é mais uma representação dos fãs esperando mais do mesmo, Luke ''pegaria uma espada de laser e sairia pela galáxia detonando sozinho a Primeira Ordem'' |
A mesma mensagem é passada no
relacionamento entre Rey e Luke, reforçando que não se está discutindo nenhuma ''guerra dos sexos''. Nesses últimos dias, acompanhei pela Internet
leituras que viram nas ações de Skywalker sintomas de covardia e depressão.
Alguns chegaram a dizer que Rey deu ''uma lição de moral'' no Mestre Jedi.
Confesso ter percebido diferente: embora demonstre pesar pela perda de Ben
Solo, a questão que envolve Luke na Ilha Sagrada é mais ampla do que seus
próprios dramas de consciência. Ele não quer ser o professor de Rey porque
entende que os Jedi devem acabar, que seus métodos são falhos e que, no fim das
contas, o orgulho da Ordem é um dos motores do conflito cósmico. Ele oferece a
Rey três lições: a primeira, de que a Força é um poder originário que não
pertence a ninguém, e que portanto é vaidade vincular o lado luminoso à
existência histórica dos Jedi; a segunda, é a de que o legado dos Jedi é o
fracasso, que eles não conseguiram escapar do ego e de suas consequências,
retratadas no filme como a sombra que passa pela mente de Luke em relação a
Kylo e que leva à luta entre mestre e discípulo; a terceira não é dada, pois
Rey, passando por cima dos conselhos do Mestre e achando que havia visto algo
que ele não havia sido capaz de ver, abandona a Ilha.
Rey não me parece ter condições de
''dar lições de moral'' em Luke tampouco. A todo momento ela se mostra presa na
necessidade de encontrar seus pais, quer vivenciar uma mentira, a de que vem de
uma linhagem importante e marcada pela nobreza -- fragilidade que vai ser
explorada por Kylo mais à frente. A todo momento se mostra impermeável ao que lhe está sendo ensinado: Assim como R2-D2, Chewbacca
e boa parte dos fãs, a protagonista fica atônita, tentando argumentar com Luke sobre seus
motivos, que ela não conhece e ainda assim repudia. Rey deseja a repetição
de temas passados, e sai frustrada sempre que isso lhe é negado. O sabre
de luz que estende a Luke é jogado fora com desprezo. No início, ela se
recusa a crer que o Mestre havia falhado com Kylo, o ''monstro''. Depois, sua
carência a leva a uma ligação com o adversário que a impede de acreditar que
o parricida tivera sido totalmente consumido pelo ''lado sombrio'', como Luke lhe havia contado. Ela
concordava agora que Luke havia falhado, mas porque não havia
percebido, como ela supostamente conseguira, que Ben Solo ainda não havia feito
sua escolha, que existia conflito no coração do vilão. Deixando de lado os conselhos daquele que queria por mestre, Rey decide emular a ''lenda'' de Luke -- que deixara de lado as sugestões
de Yoda e Obi-Wan a respeito da necessidade de matar Vader --, e se entrega ao inimigo para ''convertê-lo'' à luz. Mais uma vez Rian Johnson constrói sua narrativa em cima das
expectativas dos fãs de longa data, mas dessa vez as coisas não ocorrem como
eles e a protagonista pensavam: Ben Solo está de fato
morto, como Luke havia entendido desde o início. A história não se repete,
a não ser como farsa. Rey havia sido manipulada pelo ''lado
sombrio'' ao não confiar no que lhe dizia Skywalker.
O núcleo da narrativa, detalhado por Yoda diante da Árvore Sagrada em chamas, e depois pelo próprio Luke em seu
encontro com Leia, é que os mais velhos, os antigos mestres, devem ser ouvidos,
inclusive por causa de seus fracassos. Temos aqui um filme que ambiciona, por
um lado, levar Guerra nas Estrelas a uma nova geração -- ponto a que voltarei
mais tarde --, e para isso rompe gradualmente com os antigos personagens e
com a família Skywalker, as principais marcas das trilogias anteriores. Por
outro lado, os jovens devem se afirmar sem que o passado seja totalmente
esquecido. Enquanto Kylo pede por uma ''emancipação'' total com suas raízes, os herois afirmam a continuidade de seus elementos essenciais, ainda
que essa continuidade não seja retratada por um desesperador e vazio ''eterno
retorno''. Diferente do que diz Mateus Diniz, o roteiro não se trata de
inversão dos papéis entre mestres e discípulos, uma quebra da autoridade tradicional -- uma crítica que cairia melhor
aos filmes da primeira trilogia, afinal Luke se transforma em lenda na medida em
que se nega a fazer aquilo que lhe é sugerido por Obi Wan e
Yoda, a saber, abandonar seus amigos ao sofrimento nas mãos de Vader até que
tenha poder suficiente para matar o próprio pai -- e sim da valorização da
transmissão de conhecimento mesmo quando as instituições mais conhecidas para a
realização dessa passagem -- a família, simbolizada aqui pelo sangue Skywalker,
e o sistema discipular jedi, figurado pela relação mestre e padawan -- estejam
à beira do colapso e do esvanecimento. De modo contrário ao que pensa a crítica
conservadora, é a primeira trilogia que traz jovens mais sábios do que
os anciãos; e é o episódio atual que sente necessidade de mostrar aos jovens o
verdadeiro sentido da tradição discipular.
Kylo Ren vê na ruptura total com o passado o caminho para se realizar todo o seu potencial: a visão é criticada ao longo de todo o filme, mas ''não do modo como você imagina'' |
Resta responder a uma pergunta: qual
é a real fonte das críticas conservadoras, e também daquelas de fãs da primeira
e segunda trilogias, aos novos desenvolvimentos da saga implementados por
Abrams e Johnson? Tratarei desse problema na parte final dessa série de
postagens.
[continua]
______________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário