domingo, 19 de novembro de 2017

Liga da Justiça e o fechamento do ciclo iniciado por Snyder

Everybody knows that the dice are loaded
Everybody rolls with their fingers crossed
Everybody knows the war is over
Everybody knows the good guys lost
Everybody knows the fight was fixed
The poor stay poor, the rich get rich
That's how it goes
Everybody knows

Leonard Cohen




Liga da Justiça fecha o arco iniciado por Zack Snyder com Man of Steel, de 2013. Foi um percurso atribulado, acompanhado por mudanças de visual, de tom e de construção de personagens

Temos aqui o fim do arco iniciado com Man of Steel há quatro anos. A construção do Universo Compartilhado da DC Comics esteve sob batuta de Snyder durante esse tempo, até que uma tragédia familiar o retirou da pós-produção desse terceiro filme, trazendo pra equipe Geoff Johns, roteirista de quadrinhos que alcançou grande projeção nos últimos anos, além de Joss Whedon, sucesso na rival Marvel Studios.


As mudanças levaram a refilmagens de última hora que deixaram marcas no novo longa -- umas positivas e outras negativas, algumas apenas curiosas. Dá pra perceber, ainda que nem de longe do modo tão abrupto quanto em Esquadrão Suicida, as alterações no tom do filme, deixando-o mais leve, menos filosófico e amargurado. 


As cenas iniciais dão conta da desesperança e luto que teriam tomado o planeta com a morte do Super-homem.
Violência, ódio contra estrangeiros e abandono à injustiça social regados a uma versão de ''Everybody Knows'', de Leonard Cohen; um grupo de terroristas religiosos que odeia o mundo moderno tentando explodir um museu. As cenas visam pensar a perda do maior herói do DC e ao mesmo tempo tratar de problemas contemporâneos, bem ao estilo Snyder. Mas essa linha não tem continuidade, é abandonada ao longo do roteiro, que evita qualquer profundidade maior que dificulte sua compreensão a um pré-adolescente.


Embora os pontos filosóficos abordados por Snyder não sejam varridos pra debaixo do tapete, a amplitude deles é reduzida para evitar o peso do drama: em vez do niilismo e da problematização do papel dos herois/deuses em um mundo pós-moderno, o cinza da vida se restringe aos distúrbios pessoais dos protagonistas. Batman encontra o sentido de sua atividade no homem que ajudou a matar, e tem de lidar com a culpa por sua cegueira enquanto procura remediar a situação propondo a formação de um grupo para substituir aquilo que ele próprio considera insubstituível. A ''filosofia de biscoito chinês'' que manteve Diana Prince sã após a morte de Steve Trevor -- ''você tem de seguir em frente'', disse o amado à deusa amazona -- é ironizada por Batman, que questiona a incapacidade do ícone feminista de exercer liderança e ser um farol de esperança tal como o Super-homem havia sido. 


Os personagens que estreiam no Universo da DC também trazem as suas sombras. Diferente do que os trailers fazem parecer, Arthur Curry não é um rebelde sem causa, mas um ''auto-exilado'', que ainda não lidou com o trauma de ter sido abandonado pela própria mãe e que mantém tênues vínculos com Atlântida. O Flash, alívio cômico do filme, traz o peso de um drama familiar cuja solução é o verdadeiro móvel de Allen. A apresentação de Victor tangencia o caráter soturno e melancólico dos filmes anteriores. 
A apresentação sombria de Victor Stone revela que Snyder possuía ideias diferentes sobre o filme, mas elas foram reorientadas e ajustadas a um filme aventuresco e infanto-juvenil


Mas todos os dramas apontados deixam de ser o foco da história quase tão rápido quanto são apresentados. Eles emergem apenas para fechar o ciclo de Snyder, pontas que se amarram para dar apoio a uma história leve, de heroísmo, engajamento, aventura, dando a impressão de que o filme que sairia da batuta do diretor de Batman v Superman teria um tom distinto do que a montagem que foi para as telas. Os remendos de última hora deixaram outros tantos sinais: os produtores tiveram de retirar o bigode de Henry Cavill apelando pra computação gráfica, alterando de modo perceptível a face do ator. O Lobo das Estepes se tornou um vilão genérico, um tanto mal desenhado e mal executado, com objetivos igualmente genéricos. Com a ausência de Snyder, o filme perdeu também em grandiosidade visual, não tem mais aquele quê de graphic novel. E a história das caixas maternas são referências óbvias demais ao Senhor dos Anéis.


Muitos vão apontar a Marvel como o modelo perseguido pela Warner, rindo-se daquilo que parece ser uma capitulação ao estúdio rival. Mas na minha opinião o filme emula, na verdade, as animações da própria Liga, que trazem o mesmo elã. E nesse sentido, uma vez comprada essa ideia, é diversão garantida. A visão combina com aquela já estabelecida dos heróis. A interação entre eles possui contornos próprios dependendo dos envolvidos e a química é perfeita e convincente. Os personagens secundários de Lois Lane, de Martha Kent e de Alfred funcionam ainda que apareçam pouco – e aqui cabem aplausos para a interpretação sempre cirúrgica de Jeremy Irons. O enredo é bem amarrado, com bom ritmo. A maior parte das piadas tem timing e contexto apropriado, muitas vezes fazendo referência aos quadrinhos e à história dos próprios protagonistas. Não há um excesso de subtramas, como se chegou a temer pela necessidade de contar para o público a origem do Aquaman, do Flash e do Cyborg.
Arthur Curry, o Aquaman, é a próxima aposta da Warner, que deve se fiar daqui por diante em filmes pontuais, focados em personagens singulares, mais do que em um grande universo compartilhado


Por fim, o Super-homem é um capítulo à parte. Aqui a Warner não tinha escolha senão recuperar um personagem cujo tratamento nos outros filmes foi por demais incompreendido. Se é verdade que faltou magnitude à ressurreição de Kal-El, o estúdio não teve ressalvas nem titubeou em levar pras telas o Super que todos queriam: senso de unidade da Liga, mais poderoso que todos os demais membros reunidos, arma sem a qual a derrota é iminente -- ressaltando assim a importância e o tamanho do personagem. E, claro, Clark aproveitou pra ter um papo de homem pra homem com Bruce Wayne em cena que levantou aplausos do cinema. 


O Super-homem retorna em mais de um sentido: o público finalmente vai ver o personagem todo poderoso e significativo com o qual se acostumou


Pra terminar, as cenas pós-créditos revelam que a Warner não vai se prender a obviedades na provável continuação da Liga da Justiça. Nada de Darkseid, mas ameaças mais clássicas e terrenas, que vão deixar o fã da DC com um sorriso no rosto. O mesmo sorriso que tive ao ver a corrida entre o Super-homem e o Flash pra saber quem é o mais rápido.

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