terça-feira, 31 de outubro de 2017

O DIA DAS BRUXAS, ou: BENTO CARNEIRO, AQUELE QUE TEME UM SABÁ BRASILEIRO





Tenho quarenta anos de idade, sou de uma época que Halloween era nome de um filme de terror. Mas hoje, como parte da americanização forçada pelo mercado e comprada por parte das classes médias urbanas, já se imitam, aqui e ali e em algumas metrópoles brasileiras, os festejos presentes na maior parte dos EUA. Claro que esses festejos não tem raízes na nossa cultura, e por isso eles não passam de espuma, coisa de uma geração e que logo vai passar, mais ou menos como a moda de fazer ''festas americanas'' na minha época de garoto.

[Pra quem tem menos de trinta anos e portanto não sabe o que é uma ''festa americana'': pré-adolescentes se reuniam no início da noite na casa de um deles. Meninos levavam um refrigerante, meninas levavam doces ou salgados. Escutavam umas músicas estrangeiras, dançavam, riam, talvez paquerassem. Dez da noite a maioria estava indo pra casa. Vou voltar a isso depois, mas notem que a estrutura da festa poderia ser vista por alguns como um verdadeiro sabá, um encontro demoníaco de bruxas e demonhos].

Quer dizer, ao mesmo tempo que estou me lixando pro Halloween tenho convicção de que ele não ameaça em nada a cultura brasileira, assim como a Black Friday também não ameaça [ela não tem como igualar o aniversário do Guanabara entre nós]. Só aviso pros que me lêem que é bobo, ridículo, é ''pagar muito mico'' ficar com esse provincianismo de comemorar uma festa estrangeira sem vínculo algum com nossas festividades populares.

Mas se tem uma coisa que me incomoda nessa história é ouvir que o Halloween não deve ser comemorado porque se trata de uma ''festa pagã''. E aí se iniciam lamentos, ranger de dentes, um ''bate pé'' sem fim entremeados com pseudo-história dos druidas, de sacrifícios humanos ao Deus da Morte e outras bobagens copiadas inteiramente da histeria evangélica americana e adornada com mitos academicistas do século XIX. Até entendo que alguns grupos de jovens, desejando ''balançar o esqueleto'', copiem modinhas de outro país. Mas copiar a satanização que grupos religiosos desse país fazem dessa festa aí é um pouco demais pra minha cabeça.

Então, voltando à ''festa americana'' dos anos 1980, deixa eu esclarecer de vez: o Halloween não é a nova versão de um ritual satânico de origens pagãs. Não, por favor, não me fale de celtas e de Samhaim, essas aí são referências distantes de festivais camponeses obscuros, sobre os quais se sabe pouquíssimo até na Academia, dos quais não se tem a certeza nem mesmo da data. Qualquer coisa que saia muito disso é uma mentira que estão te vendendo. Festivais como esse existem no mundo todo, pois a vida em cidade era rara até ontem. E assim como hoje comemoramos em casas, salões, boates, avenidas, até ontem comemorávamos no campo, nas vilas, nas aldeias, nos pastos, seguindo os costumes da vida rural. Praticamente todos os festejos com mais de um século de existência tem algum vínculo com a vida, os costumes e a mentalidade do homem do campo. O que pensam que a festa junina ou o Dia de Reis são, afinal?

Isso posto, os vínculos do Halloween com festivais pagãos celtas são frágeis, frutos principalmente de achismos e de saltos de ideologia, daqueles que acham que toda festa cristã é necessariamente cópia mal intencionada do paganismo pra engabelar as pobres almas; e de saltos de fé, que unem neopagãos e evangélicos na crença de que seus deuses ou anti-deuses estão lhes aparecendo em todo lugar. E, com certeza, os costumes atuais do Halloween não tem nada a ver com o Samhaim -- nem as abóboras, nem os doces, nem as pilherias infantis, muito menos as fantasias de Yoda.

Todas as evidências concretas que temos sobre a data se referem aos três dias de comemoração cristã que se estendem de 31 de outubro a 02 de novembro. O próprio nome ''Halloween'' tem origem na véspera da Festa de Todos os Santos. E foi estabelecida em Roma para toda a Europa que hoje chamamos de ocidental, não só para as Ilhas Britânicas, pra tentar unificar festas de comemoração de santos e mártires [ou de ancestrais em geral] que ocorriam em datas diversas nas regiões da Cristandade [na Irlanda, costumava ser no dia 20 de abril, e espero que eu não esteja decepcionando vocês aqui...]. Não sei se ainda reparam, mas estamos em época festiva cristã, vamos ter um feriado nacional no dia 2 de novembro -- e antes do aprofundamento da secularização da sociedade brasileira, o dia primeiro de novembro costumava ser ponto facultativo também, essa sim uma tradição que deveríamos recapturar.

Não caiam portanto nessa de satanizar o Halloween, fazendo associações absurdas entre costumes nascidos há um ou dois séculos e cultos de deuses esquecidos de povos mortos de outros continentes. Isso é consequência da ''protestantização'' da mentalidade geral, a mesma que jura de pé juntos que o Natal é uma forma de cultuar o deus sol e que a árvore de Natal é oriunda de um culto germânico pagão. Além de alegações falsas no âmbito histórico, são bobas no campo do estudo das culturas.

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