sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Os símbolos e a gestação das culturas e dos indivíduos

Tenho tido pouco tempo e ânimo para escrever sobre certas temas. Mas abaixo segue uma série de pequenas reflexões interconectadas e passíveis de serem esmiuçadas em publicações futuras, ainda que de modo algo rápido e superficial, versando a origem e condições de desenvolvimento do discurso do homem sobre o mundo, em torno do qual crescem as possibilidades inscritas nas diferentes sociedades e civilizações. Os pequenos apontamentos abaixo não são, de forma alguma, a defesa de um ingênuo relativismo antropológico forte, como se eu quisesse cá substituir a ideia iluminista do homem como um ''beco-sem-saída'' individual pela de um ''beco-sem-saída'' cultural, sem acesso a verdade ou a realidade que se coloca além destes parâmetros. Trata-se, antes de tudo, de refletir sobre o peso e importância da cultura na constituição do humano e, inclusive, de suas possibilidades de conhecimento. A linguagem, ou antes, a rede simbólica transmitida em determinada comunidade é, por uma lado, uma limitação ao conhecimento, e,  por outra, uma das condições possibilitadoras de sua realização em diversos âmbitos e até mesmo da superação destas limitações mesmas.


A) A consciência estritamente histórica é uma das marcas de Caim do homem moderno, assim como sua sombra, o historicismo, ou ainda a redução da vida humana a uma série de causas e consequências cronológicas e de matiz sócio-político-econômica. A sociedade contemporânea se implementou pari passu a essa mentalidade. O projeto de História Universal, a maneira como se constituiu esta disciplina, estava imbricado, necessariamente, com a expansão da cultura específica da Europa Ocidental iluminista e sua exportação -- via guerra e indústria -- para os quatro cantos do globo. A humanidade una da História Universal não era a mesma humanidade una do cristianismo, mas a projeção da ''antropologia'' racionalista e moderna para todos os demais povos. Voltando à disciplina histórica, sua hegemonia em relação às outras ciências sociais foi abalada pelo estruturalismo antropológico, que atropelou os historicistas na década de 1960 ao defender que uma sociedade poderia ser melhor compreendida a partir da descrição e compreensão de suas formas estruturais, com abstração da temporalidade. O próprio discurso histórico teve de se render à nova mentalidade, e falar de ''uma humanidade'' com ''uma Historia'', marchando rumo à civilização [conceito influenciado pela mentalidade iluminista] tornou-se mais do que complicado, tornou-se ingênuo [ou cínico].

B) O homem contemporâneo é um homem sem fé. Ele não tem fé nem mesmo na capacidade racional para a verdade. O pragmatismo é outra de suas marcas. Os desenvolvimentos da lógica a partir do século XIX -- uma das consequências tardias da matematização da ciência que tomaria lugar com o fim da Idade Média --, junto a outras abordagens filosóficas, jogaram para escanteio a anterior certeza de que a estrutura de racionalidade humana reflete a constituição da realidade. O que importa ao homem moderno é a certeza de que a razão é instrumento eficaz para agir no seu entorno, ainda que ela não tenha mais nenhuma outra aptidão. A razão contemporânea é instrumental. E se há um acordo sobre sua natureza e fundamentos é a de que ela se constitui em um conjunto de linguagens apropriadas a determinados campos. A lógica, como linguagem, não afirma nem nega a anterior crença em sua fundamentação ontológica. Apenas não se importa com isto, pois em termos práticos isso não tem importância alguma.

C) Os estudos etnográficos, a constituição dos métodos e da disciplina antropológica, os caminhos das ciências humanas etc. tornaram cada vez mais relevante o papel da cultura como modo e via de compreensão do homem. A cultura deixou de ser vista como algo que um homem neutro, racional, em contato direto com uma realidade externa fazia de modo um tanto superficial. Não é apenas folclore estudado por literatos, ou mero conjunto de diferenças culinárias nem muito menos amontoado acrítico de códigos morais. A cultura é o mundo de significação em que o indivíduo é formado, moldado e construído. É a realidade ao qual ele tem acesso, e que fornece a ele os meios pelos quais qualquer realidade interna e externa poderá ser expressa para si e para os demais. Como mundo de significação, a cultura também pode ser encarada como uma ''linguagem''. A noção de mundos culturais e linguísticos não nega nem afirma a unidade humana, não nega nem afirma a possibilidade de verdade, não nega nem afirma a existência de uma realidade anterior aos próprios mundos culturais. Apenas implica que ainda que dois indivíduos vivam nesta mesma realidade, farão referência a ela e a compreenderão e expressarão segundo o meio cultural que conhecem. Não há um DISCURSO NEUTRO em que alguém possa se colocar para descrever ''de fora'' todos estes 'mundos de significação'. Todo discurso é expressão de um destes mundos. 

D) A noção de que a ''cultura é o mundo em que os homens vivem'', e não apenas um conjunto de costumes superficiais e folclóricos, foi e é defendida de diversas maneiras e em várias teses nas mais diferentes áreas de campos de estudo, sejam eles de sabor antropológico, histórico, sociológico ou filosófico. A cultura, como ''mundo de significação e de significados'', torna-se meio ambiente dos homens inclusive em relação àquilo que é acessado por seus sentidos. A cultura fornece não apenas os parâmetros dos valores de uma sociedade, mas também as formas discursivas pelas quais toda a realidade, inclusive a física, pode ser percebida, expressa e comunicada [via linguagem, para ser redundante]. Nesse campo, os limites do mundo são também limites culturais. Isso não quer dizer que não exista uma realidade independente da sociedade. Que o homem não entra em contato com ela por meio de seus sentidos e outras faculdades. Nem que a cultura é fonte tão somente de falsidade. Implica tão somente que qualquer coisa que possa ser pensada e dita sobre o mundo é, necessariamente, culturalmente possibilitada e culturamente limitada.

E) Existem teorias divergentes sobre a origem da linguagem e, de forma mais ampla, das expressões culturais. Alguns diriam que ela nasce para que o homem expressasse e comunicasse sentimentos e instintos. Outros, que sua origem está atrelada à necessidade de um código comum que agrupasse e orientasse a comunidade em ações vitais, como a caçada e a guerra. Outras ainda que há determinações genéticas que formam uma proto-gramática em estágios iniciais do desenvolvimento biológico. Há aquelas que frisam a sua origem em ritos sacrificiais que aliviam a tensão psicológica provocada pela tendência mimética. As mais antigas frisam a origem divina e o potencial místico da fala. Todas podem estar corretas em determinado grau e d'alguma forma. Partindo da noção de homo religiosus, divulgada por Mircea Eliade, a hominização está fundada sobre a experiência individual e coletiva da hierofania, por meio da qual a comunidade estabelece, ou vê estabelecido, um 'eixo do mundo', e o vivencia, dele participa através de ritos e complexos gestuais que estarão na base dos seus mitos de origem. As possibilidades discursivas e descritivas desta cultura podem estar estabelecidas por este complexo simbólico, e portanto não discursivo, que está na sua origem e fundamento, e que a partir dali irá moldar os indivíduos de dada sociedade ao ser transmitido, de diferentes maneiras, de geração para geração.

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