quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Rio de Janeiro e a ideia de Brasil



Certa feita me perguntaram em uma rede social a respeito da importância do Rio de Janeiro para a cultura brasileira. Essa pergunta depende muito daquilo que temos em mente ao pensarmos em Brasil. Há muitos movimentos, não de hoje, com ojeriza pelo papel jogado pela cidade do Rio de Janeiro na auto-representação da cultura nacional. Há um ponto de ataque fácil para aqueles que mantém essa posição: O Rio-Utopia é uma criação de parte das elites brasileiras no alvorecer da República, e, embora o conteúdo da utopia tenha sofrido grandes alterações na era vargas, não se pode dizer que ela seja tão antiga quanto outros elementos importantes da nacionalidade, outras matrizes constitutivas da Pátria. Esta crítica parte, porém, de um olhar um tanto míope. Desconsidera que o Rio, antes mesmo da República, foi centro militar, comercial e geopolítico essencial à articulação do centro-sul da América Portuguesa. A capitalidade não foi uma invenção de Dom João VI, estava inscrita na formação social brasileira que emergiu dos séculos XVII e XVIII por meio do comércio de longa distância e cujo cerne era o Porto do Rio. Além disso, os elementos destrinchados por Freyre, por Buarque de Hollanda etc. não dão conta das demandas sócio-político-culturais que emergiram com a independência. Uma nação tem necessidade de um espaço de reflexão que lhe sirva de imagem, que lhe permita reconhecer-se como tal, mesmo no mais fanático dos federalismos -- o que está anos-luz de ser o nosso causo. Este espaço foi construído cá no Rio, primeiro como sede do poder imperial, depois pelo discurso do carioca como síntese das potencialidades brasileiras, pelo Rio como vitrine da nacionalidade. Gostemos ou não, essa construção foi vitoriosa na mentalidade e auto-representação do brasileiro. Ainda que não seja mais percebido nem como a Cidade da Corte, Paris dos Trópicos, nem como o Paraíso Tropical da Bossa Nova, nem como a Miami do Hemisfério Sul, o Rio é visto como resumo das características nacionais, como o lugar em que os de ''dentro'' [da brasilidade] poderiam facilmente se integrar e se descobrir e em que os ''de fora'' [estrangeiros] invejariam. O papel de metrópole da cidade não consegue mais ser delimitado pelos factores demográficos, sociais e econômicos apontados pelas estatísticas do IBGE [segundo as quais a participação da cidade no PIB nacional caiu de 15% para 5,5% entre 1940 e 2010, e que rebaixou o status da antiga capital de ''grande metrópole nacional'' -- lugar dividido com São Paulo -- para ''metrópole nacional'' -- agora dividido com Brasília]. No imaginário, o conjunto de regiões no território brasileiro, quando se entende como ''Brasil'', se torna, imediatamente, em retro-área do Rio. É assim até mesmo quando se deprecia o Rio de Janeiro: as críticas pesadas expressam, em geral, estados de depressão d'alma nacional, partem de pessoas que acham, momentaneamente ou não, o Brasil uma grande porcaria. O exemplo máximo da grande porcaria, nesse discurso, seria o Rio. Eis aí o papel de espelho reafirmado. 




Por mais que parte das elites brasileiras tenha projetado um Brasil retratado em outras regiões -- e destaco cá as elites paulistas, com a imagem de ''São Paulo, locomotiva do país'', repaginada na USP e encastelada no poder com FHC -- ele não vingou. Os que quiseram substituir o Rio pela capital paulista não conseguiram imaginar nada mais interessante do que fazer do paulistão um novo cariocão, ou então em construir uma passarela do Samba na terra da garoa. Mas há diferença entre vender uma imagem -- ainda que dotada de certa artificialidade -- fundamentada em bases verdadeiras [o sol, a praia como mistura caótica de classes e tipos, a cultura do boteco, a informalidade expressa na mania de criar apelidos, o desprezo pela política, o cinismo com o mundo burguês do trabalho, o misto de alegria e melancolia do samba etc.] como isca para aglutinar em torno de si todo o país, e a mera cópia deslavada e superposta a uma região que nunca se sentiu bem nem nunca se constituiu pra ser emblema e figura acabada do ser brasileiro. Não colou, e apesar do muxoxo de muitos, não vai mais colar. Enquanto existir Brasil, aqueles que se sentem brasileiros terão seu humor afetado pelo que acontece em Copacabana e Madureira. Enquanto existir Brasil, aqueles que se sentem brasileiros terão de olhar para cá para conseguirem dar sentido às ideias de sul, nordeste, norte, centro-oeste....



No imaginário, essa cousa fugidia e subtil, nem sempre notada, e que é o mais importante dos aspectos sociais, nunca seremos uma federação, e assim, Brasília nunca será nossa capital. 

Note que isso não é sinônimo de alguma forma de 'domínio' exercido pelo Rio em cima do restante do país, muito pelo contrário. O Rio paga um preço por isso, como pagava um doce custo pela centralidade política, econômica e outras. Eu poderia escrever mais umas tantas respostas do tamanho desta sobre as relações do carioca com o papel que possuem no seio do Brasil, o misto de sentimento de orgulho, de ódio e de amor com a função que lhes é reservada. O peito estufado ao contemplar d'algum morro -- seja um de pequeno status, como o Cantagalo, ou glamouroso, como o Corcovado -- a glória urbana e natural da sua cidade, e o incômodo de ser, entre as cidades, a Carmem Miranda do Brasil. Porque o centro do imaginário é a metrópole menos autônoma entre todas as demais. Tem de ser assim. De modo que, se em determinado grau somos um fardo para o Brasil, pode ser dito também que em certo sentido o Brasil é um fardo para nós.

Mas no fim, nos amamos. Ou ascenderemos juntos e realizaremos aquilo que nos foi reservado, ou morreremos juntos e abraçados numa mistura de muxoxos mal humorados e carícias lascivas.

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