quinta-feira, 4 de julho de 2024

OS MAIORES DA HISTÓRIA DO FLAMENGO -- Ponteiros/Atacantes: Jarbas, "a Flecha Negra"; e Valido


Os ponteiros a que me refiro nessa seção dizem respeito aos típicos pontas direita e esquerda, que dominam a imaginação do futebol brasileiro desde os anos 1930. Nosso estilo de jogar bola é marcado pelo drible mais do que qualquer outro do mundo. No Maracanã, certos dribles são tão lembrados quanto gols que garantiram campeonatos, alguns até mais.

Mas não é o amor pelo drible que explica a união de ponteiros e ‘Atacantes’ na mesma lista. Há um sentido tático nessa escolha, conforme adiantei quando falei sobre Pontas de Lança. Nos anos 1970, o Brasil começou a assimilar duas revoluções europeias. A primeira é o advento do futebol-força na Copa de 1966, com uma ênfase maior na preparação física. A segunda, foi o futebol compacto nascido do trabalho do técnico italiano Arrigo Sacchi, que deu sua própria versão para o impacto produzido no mundo pelo futebol-total da “Laranja Mecânica” holandesa liderada por Johann Cruyff.

Resumindo, houve uma multiplicação de “volantes” no meio campo, e os meias ganharam cada vez mais funções defensivas. O 4-3-3 foi sumindo em prol de mais jogadores no meio, em 4-4-2 ou 3-5-2. A principal posição sacrificada pelos novos esquemas foi justamente a dos ponteiros, um símbolo da dominância e da habilidade diferenciada dos brasileiros.

O Flamengo de Carlinhos na Copa União 1987: imagem retirada do livro "Escola Brasileira de Futebol", de Paulo Vinícius Coelho


O nosso futebol respondeu, no entanto, com sua própria transformação radical. No São Paulo do “Menudos”, treinado por Cilinho e Pepe, e no Flamengo de 1987, capitaneado por Carlinhos, se gestou um novo tipo de jogador: o Atacante [com ‘a’ na maiúscula] que era um “comandante de Ataque”, infiltrando na área a partir dos lados, sem se reduzir ao papel nem de ponta nem de centroavante.

A nova posição era uma síntese do ponteiro e do ponta-de-lança, e encontra expressão perfeita na dupla Bebeto e Renato Gaúcho do ataque rubro-negro de 1987. O primeiro era originalmente um ponta-de-lança/meia-atacante que foi ganhando funções cada vez mais ofensivas; o segundo, um ponta-direita de muita força e “fominha” no drible que ganhou permissão para jogar por todos os cantos ao redor da área e atacar o gol.

Muitos treinadores viram no novo tipo de jogador uma reformulação do antigo Ponta-de-Lança [é a opinião de Parreira e Zagallo, que viam assim o papel de Romário e Bebeto no time de 1994]. Mas o Atacante não acabou com o ponta-de-lança clássico.


A Seleção Brasileira de Parreira na Copa de 1994: imagem retirada do livro "Escola Brasileira de Futebol", de Paulo Vinícius Coelho


Ele continuou existindo, como no Palmeiras com Edilson e depois Alex; no Corinthians com Marcelinho “Carioca”; no Flamengo com Petkovic; no Vasco com Ramón e Juninho “Paulista”. É verdade que, assim como Bebeto, alguns deles se tornaram “Pontas de Lança modernos” ou Atacantes, mas a posição, em si mesma, sobreviveu.

O ferido de morte foi o ponteiro. Assim como Renato Portaluppi, eles se tornaram “Atacantes”. Romário era ponteiro esquerdo no Vasco – o centroavante era Roberto Dinamite – até se consagrar como um ponta-de-lança no sentido moderno [de Zagallo, e que estamos chamando de “Atacante”]. Só se tornou centroavante mesmo na Europa e depois no Flamengo. O mesmo aconteceu com Muller, Edmundo, Paulo Nunes e outros.

Quando a Europa ressuscitou a figura do ponta nos anos 2000, iniciando uma defasagem tática para a qual a América do Sul ainda não produziu uma resposta, muitos jogadores brasileiros já formados na ‘cultura’ do Atacante enfrentaram dificuldades de adaptação. Pense em Dagoberto, em Alexandre Pato e outros. Eles não conseguiram ser nem pontas nem centroavantes. Foram “traídos” pelo tempo.

Alguns, de técnica ímpar, conseguiram se adequar, é claro. Assim, o ponta-de-lança Ronaldinho Gaúcho podia render muito bem de ponteiro esquerdo; e Neymar consegue atuar em qualquer posição do ataque.

Mas a ligação entre sumiço e reaparição das funções de ponta e Atacante revela a conexão tática entre ambas. E é por isso que vou considerá-las juntas, distinguindo-a do Ponta-de-Lança/Meia-atacante e do centroavantes tradicionais.

Isto posto, a minha lista de Ponteiros/Atacantes mais relevantes d’O Mais Querido.


1) JARBAS, A “FLECHA NEGRA” [1933/46]



Durante décadas, Jarbas Barbosa -- nascido em Campos dos Goytacazes e profissionalizado no Carioca, um clube de operários da Gávea, bairro então popular para o qual o Flamengo se mudou nos anos 1930 – foi considerado o primeiro negro a se tornar importante no clube.



Mas nos últimos tempos se criou toda uma polêmica sobre a “cor” do mulato Nonô, centroavante dos anos 1920. Na minha perspectiva, ambos eram mulatos, mestiços de pretos e brancos, ou "morenos" [como se costuma dizer no Rio de Janeiro], como se pode conferir pelas fotos. A questão racial no Brasil é mais complexa do que o bi-colorismo defendido por alguns movimentos, influenciados por sociedades com outras classificações raciais.



Jarbas era um ponteiro esquerdo rápido, hábil e goleador. Foi titular em oito temporadas consecutivas n’O Mais Querido do Brasil, e mesmo depois que saiu da equipe principal continuou contribuindo nas campanhas até encontrar substituto ideal na figura de Vevé.



Em uma época de transição do amadorismo para o futebol profissional, Jarbas foi a alma preta e encarnada do nosso uniforme, com uma longevidade e uma paixão impressionante pelo Flamengo. Foram mais de 380 partidas defendendo o Manto Sagrado. É nosso sétimo maior artilheiro, com 154 gols.



Figurou também na seleção brasileira de 1932, que derrotou a Celeste, então bicampeã olímpica e Mundial, em pleno Estádio de Montevidéu, dando sinais do futuro colosso futebolístico do nosso país.

Seus principais títulos no Flamengo são os campeonatos cariocas de 1939, 42/43/44.






2) AUGUSTÍN VALIDO [1937/1943; 1944]

O tricampeonato conquistado em 1944 ilustra bem a tensão entre as identidades vascaína e rubro-negra. Este título talvez tenha sido o primeiro grande momento da radicalização da rivalidade nacionalista que vinha sendo gestada nos anos anteriores. É claro que Flamengo e Vasco já eram grandes rivais desde os tempos as regatas chiques e ensolaradas. Mas o confronto de 1944 teve ingredientes diferentes. Primeiro, porque ocorreu em meio aos acontecimentos mais tensos e decisivos da Segunda Guerra Mundial. José Lins do Rego causou espanto em setores da imprensa quando afirmou que o tricampeonato do Flamengo "era mais importante para o povo brasileiro do que as batalhas de Stalingrado" [...]. Mário Filho engrossou o coro daqueles que viam no jogo uma grande batalha, assim como o amigo José Lins. Segundo Filho, havia uma guerra desencadeada também aqui dentro do país, que fora gerada "pela paixão do povo pelo seu clube, pela sua cidade, pelo seu Estado e até pelo seu Brasil." Por isso se justificava, segundo Filho, o aparato de guerra montado pelo Flamengo na Gávea, que contava até mesmo com suporte militar. O GMAC -- Grupamento Móvel de Artilharia da Costa -- organizou a segurança dos torcedores nas arquibancadas, além de, segundo Filho, torcer pelo Flamengo.

Renato Soares Coutinho, "Um Flamengo Grande, um Brasil Maior"




Houve um “gol do Pet’’ muitas décadas antes de Petkovic chegar no Flamengo. Ou ainda, seria melhor dizer que o gol de Pet, eternizado por câmeras de TV e ocorrido no maior templo do futebol mundial, foi uma reedição cósmica do original.

O tento original foi marcado também por um estrangeiro, mas no caso um vizinho sul-americano, e também contra o Vasco. Também valeu um tricampeonato. Mas o cenário era o estádio de São Januário, símbolo da grandeza d’O Gigante da Colina, maior estádio da América Latina durante os anos 1930, e palco dos imortais discursos de Vargas no Primeiro de Maio.


Ou a melhor comparação seria com o gol, também de cabeça, de Rondinelli, que decidiu o campeonato de 1978 e iniciou a Era de Ouro?

O ponta direita Augustín Valido é puro amor ao Flamengo.

Profissionalizado pelo Boca Juniors e atleta do Lanus em uma época em que mal se ganhava salários nos clubes de Buenos Aires, veio ao Rio para participar de amistosos com um selecionado de portenhos. Despertou interesse do América RJ, mas assinou contrato com O Mais Querido.

Começava uma história de paixão que inspiraria gerações. Quando se tornou técnico do Flamengo em 1995, o radialista Washington Rodrigues, conhecido como Apolinho, usava entrevistas de Valido para explicar para seu elenco o significado de jogar no clube.


Soldados do GMAC -- Grupamento Móvel de Artilharia da Costa -- invadem o campo para comemorar o gol do título rubro-negro: o primeiro tricampeonato rubro-negro foi acompanhado de fervor nacionalista em plena II Guerra Mundial


[É por isso também que alguns jogadores daquele grupo, Romário e Edmundo por exemplo, emocionados com a história que descobriam, deram declarações cada vez mais fortes de identificação com o Flamengo. Mas essa é outra história.]

No ano do centenário, em 1995, Valido dizia, “O que pode ser mais inesquecível do que essa bendita camisa do tricampeonato? Quer um momento mais bendito do que este? Queria botar a camisa do Flamengo nesse aniversário! Porque eu amo tanto meu clube! Não há ninguém que possa imagina o sentimento profundo que eu tenho em meu coração sobre o meu querido Flamengo. Ganhar, perder. De qualquer maneira!

Valido participou ativamente das conquistas dos Cariocas de 1939, 42/43. E então se aposentou aos 29 anos de idade, cuidando de sua Tipografia no Rio de Janeiro.



Foi então que decidiu visitar a Gávea, e a pedido de velhos conhecidos bateu uma “pelada” no clube. O treinador Flávio Costa não titubeou e convidou o ponta direita para participar dos últimos jogos do Carioca. Afinal, o time havia perdido Leônidas na temporada anterior. Perácio estava servindo o país na Segunda Guerra Mundial e alguns jogadores, como Pirilo, Zizinho e Modesto Bría, atuavam no sacrifício.

Valido estava há mais de um ano sem entrar em campo, mas sua paixão não lhe permitiu dizer não. Jogou o Fla X Flu, em que O Mais Querido aplicou uma surra de 6 a 1 sobre o rival das Laranjeiras. E estava presente no jogo decisivo pela taça em São Januário contra um Vasco que começava a montar seu famoso Expresso da Vitória, que seria o melhor time do país pelo restante da década.



Sofrendo com a falta de ritmo, com a pouca recuperação do esforço do jogo anterior, e com 39ºC de febre, Valido teve uma das piores atuações de sua vida. Até que aos 41 minutos do segundo tempo, a defesa cruz-maltina faz uma falta do lado esquerdo da área. Vevé bate para o meio da zona de agrião, e o ponta, mais alto do que a defesa adversária, sobe e desfere uma cabeçada certeira.

Mais tarde, os vascaínos choraram o resultado, disseram que o ponta se apoiou nas costas do lateral Argemiro. Mas nem os jornalistas presentes concordam com a versão, nem as imagens filmadas conseguiram captar qualquer irregularidade. Começava a tradicional choradeira da torcida arco-íris!

E assim, o mito d’O Mais Querido do Brasil, projeto iniciado pelo presidente José Bastos Padilha, se consolidava definitivamente em pleno território inimigo com a conquista do primeiro tricampeonato através de um improvável gol de cabeça de um atleta argentino que fez da camisa preta e encarnada a grande paixão de sua vida.



O gol do primeiro tricampeonato é um dos mais importantes de nossa história. Valido é um dos maiores heróis da Gávea. E também um dos que melhor captaram o significado do Manto Sagrado.

Segundo ele, “Nasci longe, mas Flamengo. Não há nada que se compare a esse clube. Imperfeito, como todos; onde, ao que se diz, mandam muitos, superado até em organização por outros. No entanto, vence sempre! Por que vence? Porque está na alma do povo. Porque é a própria alma do povo!"

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