quarta-feira, 6 de novembro de 2024

GÊNESIS, UM DOS PILARES DA DOUTRINA CRISTÃ, ou: E no princípio a soteriologia e a escatologia

 "É apropriado que peguemos as Escrituras Sagradas e descubramos nelas o que é, e de que maneira se dá, a vinda do Anticristo; e em que ocasião e tempo o ímpio se manifestará; e de que lugar e tribo ele virá; e qual é o seu nome, que está indicado pelo número nas Escrituras; e de que maneira ele vai espalhar o erro entre os povos, reunindo-os desde os confins da terra; e como ele suscitará a tribulação e a perseguição contra os santos; e como ele se exaltará como Deus; e qual será seu fim".

Santo Hipólito de Roma


O filho da perdição


Os cristãos costumam defender o Jardim do Éden e a Criação de Adão e Eva dos ataques da mentalidade materialista e iluminista dada a importância destes elementos para a cristologia, a soteriologia e a escatologia. O Glorioso Apóstolo São Paulo não deixa dúvidas que o pecado entrou no mundo por um homem, fazendo um paralelo com a vitória sobre a morte instanciada também em uma pessoa humana. São tópicos importantes da Teologia, que apontam que uma pessoa pode ser, de alguma maneira, a síntese das possibilidades e elementos de toda a humanidade. 


Mas não basta defender a historicidade/realidade/fisicalidade dos três primeiros capítulos de Gênesis para manter a integridade da Boa Nova. Saltar de Éden para Abrão, encarando os capítulos 4 a 11 como ''alegorias'' sem consistência histórica e corpórea, é tornar a Santa Tradição incompreensível, e se apartar inteiramente da mente da Igreja tal como exposta nas Escrituras e nos Santos Padres.


A Tradição fala de uma Apostasia que envolve ao mesmo tempo potências celestes e os homens. Apostasia tem o sentido de ''defecção'', mais ou menos como aquele soldado que abandona o posto, que desertou, que dormiu em serviço. Pode ser entendida, em termos místicos e espirituais, como uma dispersão do Nous, falta de sobriedade, de consciência alerta e focada naquela única coisa realmente importante. 


Mas o Cristianismo é também uma História Sagrada, não apenas um mapa do que ocorre na alma de cada homem em sua jornada de retorno para o Pai. É um drama cósmico em toda sua inteireza. A defecção, a apostasia, gera uma guerra, que é espiritual porque envolve o destino final de cada alma, mas é também histórica e cósmica, porque envolve toda a criação, incluindo a material. Este conflito é descrito em termos bélicos nas Escrituras e nos Santos Padres, e tem literalmente o homem no centro do campo de batalha e dos objetivos de guerra. 

Tubalcaim em sua forja


É que Apostasia dos Anjos se deu por inveja do homem, que é expressão da inveja pela Economia Divina e pelo Verbo. O diabo não pretende derrotar o Deus Absoluto ou tomar o lugar do Altíssimo, mas substituí-lo no coração do homem, rei da criação, e portanto governar o Cosmos. Gênesis não é um relato curioso de obscuras origens sobre as quais só poderíamos nos referir de modo alegórico. É uma Revelação sobre a declaração de guerra de anjos contra o homem, da tentativa de Satã de se tornar senhor da criação ao dominar a criatura que foi destinada para o reinado. Sem levar esta Revelação a sério, não é possível compreender a dimensão da guerra diabólica -- a Grande Apostasia, o Mistério da Iniquidade -- nem compreender a abrangência da resposta dada por Deus a esta querela. São João Teólogo é muito explícito sobre isso:

"Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato. Por isso, o mundo não nos conhece, porque não o conheceu. Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isso se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é. E todo aquele que nele tem essa esperança torna-se puro, como ele é puro. Todo aquele que peca transgride a Lei, porque o pecado é a transgressão da Lei. Sabeis que (Jesus) apareceu para tirar os pecados, e que nele não há pecado. Todo aquele que permanece nele não peca; e todo o que peca não o viu, nem o conheceu. Filhinhos, ninguém vos seduza: aquele que pratica a justiça é justo, como também (Jesus) é justo. Aquele que peca é do diabo, porque o diabo peca desde o princípio. Eis porque o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo. Todo o que é nascido de Deus não peca, porque o germe divino reside nele; e ele não pode pecar, porque nasceu de Deus. É nisso que se conhece quais são os filhos de Deus e quais os do diabo: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, como também aquele que não ama o seu irmão. Pois esta é a mensagem que tendes ouvido desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não façamos como Caim, que era do Maligno e matou seu irmão. E por que o matou? Porque as suas obras eram más, e as do seu irmão, justas. Não vos admireis, irmãos, se o mundo vos odeia. Nós sabemos que fomos transladados da morte para a vida, porque amamos nossos irmãos. Quem não ama permanece na morte. Quem odeia seu irmão é assassino. E sabeis que a vida eterna não permanece em nenhum assassino. Nisto temos conhecidos o amor: (Jesus) deu sua vida por nós. Também nós devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos." [I Jo 3:1 a 16]


Há muita profundidade nessa passagem do Discípulo Amado, mas eu gostaria de destacar os seguintes pontos ligados à nossa conversa: i. O homem foi criado para ser filho de Deus. A palavra filho aqui tem de ser entendida como ''imagem menor''. O filho é a imagem do Pai, pois filho de peixe, peixinho é. O homem é chamado a ser um ''Pequeno Iahweh''; ii. Trata-se de um mistério enorme, porque não é só o da imagem de Deus, mas tornar-se semelhante a Deus [theosis]; iii. O grande obstáculo para tanto são as obras do diabo, que em vez de nos tornar filhos de Deus nos tornam filhos do cramulhão, em vez de nos tornar deuses [pela Graça] nos tornam capirotos [pelo pecado]; iv. As obras do diabo são o pecado e a morte, e ambas estão associados ao homicídio. O diabo é o assassino original, homicida desde o princípio. Mas em termos humanos, o arquétipo do assassino mencionado por São João é Caim, que odeia seu irmão e o mata por inveja, o mata porque seu coração é mau, porque está dominado pelo pecado e pelo diabo; v. Caim se torna no relato o antípoda de Cristo, sua antítese: o homicida, que peca e portanto é filho do diabo, e que então só gera morte vs Jesus Cristo, que dá sua vida por amor de todos, e portanto propicia a vida eterna.

Ataque de um íncubo


Pois bem, todas as questões elencadas por São João Teólogo nesta passagem são conhecidas por meio de Gênesis. A morte entrou no mundo por meio do pecado ancestral, quando Adão é expulso do Éden, o Paraíso Terrenal. A consequência é que eles retoram ao pó, pois foram formados do pó da terra; e o Grande Dragão, a Serpente Primitiva [a serpente é a imagem dos Serafins], perde sua verticalidade e se arrasta se alimentando do po da terra, ou seja, se torna senhor do Hades, devorador de almas. 


Mas Adão não se torna ''escravo do pecado'', um transgressor, alguém dominado pelo diabo. Suas obras eram justas, assim como justas eram as obras de Abel. O arquétipo de transgressão, do homem que se deixa dominar pelo pecado -- no sentido dito pelo Apóstolo São João, de ''transgressão à Lei", ou seja, de 'anomia', 'iniquidade', 'caos', 'destruição' --, esse personagem é Caim, o primeiro homicida que, assim como o diabo invejou o sentido da criação do homem, inveja as obras justas de seu irmão e o mata. E assim, Caim se torna o protótipo do filho do diabo, aquele que se torna semelhante ao capiroto, que é o deus que governa seu coração. Este é um tema importante para a escatologia, porque se liga à figura do Anticristo. Estes eram os ensinamentos dos Padres, bastando exemplificar com Santo Irineu de Lyon em "Contra as Heresias":

"[H]á nesta besta [o anticristo], quando ela surgir, a recapitulação de todos os tipos de iniquidade e de todo o engano, de modo que o poder da apostasia, fluindo e sendo encerrado nele, possa ser enviado para a fornalha de fogo. De maneira apropriada, seu nome terá o número de seiscentos e sessenta e seis, já que ele resume em sua pessoa toda a mistura de maldade que teve lugar antes do dilúvio por causa da apostasia dos anjos. Pois Noé tinha seiscentos anos de idade quando o dilúvio veio à terra, varrendo o mundo rebelde devido à geração infame que viveu nos tempos de Noé. E o Anticristo também sintetiza todos os erros dos ídolos criados desde o dilúvio, juntamente com o assassinato dos profetas e o extermínio dos justos." [V:29:2]


Existe muita coisa importante nessa passagem, vamos abordar com calma algumas delas. Primeiro, a figura do Anticristo é a realização plena do protótipo que está dado em Caim: o homem cuja mente está dominada pelo diabo de modo que tudo nele se torne energia do próprio diabo. Daí que o anticristo é plenamente filho do cramulhão. Isto faz parte do plano diabólico contra o homem, a Igreja e Deus, o plano iniciado com a sedução de Eva e cuja etapa seguinte foi a possessão de Caim. Notem que usei a palavra possessão, porque é disto que se trata no fim das contas, o diabo domina e governa o Nous [coração] e as energias humanas são cada vez mais energias do cramulhão, de modo que o diabo substitua deus na criação. 

Asmodeus, demônio citado no livro de Tobit


As Escrituras Sagradas, os Gloriosos Apóstolos e os Santos Padres não tratam isso apenas de uma forma mística, embora  seja assim também. O Dilúvio é uma imagem do Batismo, que introduz o Espírito Santo no coração de cada cristão e expulsa o diabo lá de dentro. Mas quem está disposto a encarar isso só pela perspectiva do drama na alma humana está muito próximo de abandonar o Cristianismo. Pois o Batismo só ocorre porque Cristo encarnou e deificou as águas no Rio Jordão [Festa da Teofania]. Sem este evento histórico, sem Batismo, sem drama místico do Espírito Santo no Nous dos homens. E estes eventos são históricos porque os problemas que eles visam solucionar são igualmente históricos, físicos, corporais. 

"No que diz respeito à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e nossa reunião com ele, rogamo-vos, irmãos, não vos deixeis facilmente perturbar o espírito e alarmar-vos, nem por alguma pretensa revelação nem por palavra ou carta tidas como procedentes de nós e que vos afirmassem estar iminente o dia do Senhor. Ninguém de modo algum vos engane. Porque primeiro deve vir a apostasia, e deve manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição, o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no Templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus. Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando ainda estava convosco? Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando estava ainda convosco? Agora, sabeis perfeitamente que algo o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo. Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém. Então, o tal ímpio se manifestará. Mas o Senhor Jesus o destruirá com o sopro de sua boca e o aniquilará com o resplendor de sua vinda. A manifestação do ímpio será acompanhada, graças ao poder de Satanás, de toda a sorte de portentos, sinais e prodígios enganadores. Ele usará de todas as seduções do mal com aqueles que se perdem, por não terem cultivado o amor à verdade que os teria podido salvar. Por isso, Deus lhes enviará um poder que os enganará e os induzirá a acreditar no erro. Desse modo, serão julgados e condenados todos os que não deram crédito à verdade, mas consentiram no mal." [II Tessalonicenses 2:1 a 12]


O Anticristo, o filho da perdição, é também um homem que instancia toda transgressão [anomia, caos, perdição, pecado]. Ele é plenamente filho do diabo, que recebe suas energias diretamente de Satã. O protótipo desse homem histórico, que será derrotado pela Gloriosa Vinda do Senhor -- que é um evento que ocorre na alma mas também no cosmos e na História -- é outro personagem histórico: Caim e sua linhagem, que como ensinou Santo Irineu de Lyon, já operava o poder da Apostasia. Essa história é contada em Gênesis. Como Caim deixou que o pecado dominasse seu Nous, e como ele imitou o diabo em sua inveja pela justiça de seu irmão, e como o matou. E como ele se tornou maldito como a serpente, tão maldito que era repudiado pela própria terra, que foi obrigada a engolir sangue humano. Negado pela terra, ele se torna errante, como as estrelas móveis, e sua descendência inaugura um novo modo de existência, funda a primeira cidade, cujo nome está ligado ao da Babilônia [que se torna arquétipo da cidade fundada e governada pelo filho do diabo, símbolo que também será usado na escatologia cristã, e presente nas Escrituras do início ao fim]. 

Inscrição acadiana sobre o Rei Divino Shark-Kali-Sharri


O surgimento da civilização está diretamente associado à apostasia dos anjos. Não apenas ao diabo tentando Adão, mas os anjos liderados por Azazel na rebelião no Monte Hermón, e que estabelecem um intercurso blasfemo com mulheres, o paradigma da bruxa, e ensinam aos homens as ciências ocultas, e as artes industriais e tecnologias que levam ao avanço civilizacional. E que geram, DE FATO, filhos do diabo, os Gigantes, uma prole de amaldiçoados, gestados por este conhecimento proibido que os cainitas receberam das hostes celestes rebeladas. 


Por isto também estes Gigantes, os Nephilim, são figuras dos falsos mestres, daqueles que atingiram uma gnose demoníaca, e que são heresiarcas. As civilizações originais são fundadas e governadas por estes "homens divinos", na verdade filhos do diabo, que os parasitam e os canibalizam, e pecam contra toda a natureza. Deus colocou fim a esta orgia satanista que governava a humanidade por meio do Dilúvio, mas os espíritos dos Gigantes tiveram permissão para permanecer rondando a terra e levando os homens à destruição. São os espíritos sem corpos, os demônios, que possuem os homens, e a que me referi quando falei dos vampiros, demônios, mortos-vivos porque rejeitados pela terra, sedutores de mulheres, sugadores de sangue, parasitas que infestam o mundo.


Tudo isso é histórico para as Escrituras, os Gloriosos Apóstolos e os Santos Padres, não um drama que se dá exclusivamente na alma humana. Cristo efetivamente encarnou, efetivamente entrou no Jordão para santificar as águas e torná-las aptas ao batismo, efetivamente exorcizava os demônios. Ele conferiu aos Seus Apóstolos este poder de expulsar os demônios da criação e dos corpos. 

"Voltaram os setenta discípulos cheios de alegria, dizendo: "Senhor, até os demônios se sujeitaram a nós no teu nome". Disse-lhes ele: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Eis que vos dei poder para pisar aos pés serpentes e escorpiões e domínio sobre todo o poder do inimigo, nada vos lesará. Mas não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, por terem ficado os vossos nomes escritos no céu." [Lc 10:17 a 20]


Talvez seja demodé falar disso hoje em dia, mas estes exorcismos eram expulsões reais de demônios, que realmente se apossavam dos homens e que traziam doenças e que traziam aflições e que levavam comunidades à destruição. E autoridade de expulsá-los era considerada divina, um sinal da chegada do Reino de Deus: "Eis porque o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do diabo", como na passagem citada de São João Teólogo. E talvez seja demodé falar de satanismo, do diabo possuindo coração humano, e de ritos sinistros de orgia sexual e de sacrifícios, e de busca de uma imortalidade sacrílega, e de tiranos ''semi-divinos" com um conhecimento [gnose] proibido concedido por anjos caídos, e de infestações demoníacas. 

Exorcismo da Legião de Demônios

Mas se é demodé para o mundo, não o era para os Profetas, os Gloriosos Apóstolos e para os Santos Padres. Se Adão, o Pai Ancestral, é figura chave para entender como Cristo venceu a morte; Caim, os cainitas, os Gigantes, o Dilúvio são elementos igualmente importantes para entender como Cristo vence a anomia/iniquidade. Se Adão é fundamental para entender como o diabo aprisionou os homens no Hades, Caim e seus descendentes são fundamentais para entender toda a escatologia: "Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém."


Enfim, Cristo destruiu o aguilhão da morte/hades, e também exorcizou a infestação demoníaca da criação. Mas há outra fase da Grande Apostasia que também é relatada em Gênesis e que é fundamental para entender toda a História Sagrada e a Soteriologia. A terra é repovoada pelos filhos de Noé, e as Escrituras narram o episodio da Torre de Babel e da criação das nações. Estas nações, que ficaram sob cuidado de anjos, vão passar a cultuar demônios. À morte e à Iniquidade se junta a Idolatria. 


É claro que a Idolatria significa também o combate às imagens que impedem a hesíquia do asceta que quer dialogar com Deus. Mas tem um significado histórico, de modo similar à morte e ao Mistério da Iniquidade. A Grande Apostasia implica também que o culto público e a invocação ao Nome de Deus seja substituído pelo culto público a demônios. O problema da Idolatria tem um espaço enorme no cânone escriturístico, e é fundamental para a compreensão do Cristianismo, especialmente de Pentecostes.


Voltarei a esta conversa.

TRUMP FOI ACLAMADO IMPERADOR, ou: A República caminha para um Principado

 "Vamos curar nosso país. Vamos consertar nossas fronteiras, consertar tudo no nosso país. Fizemos história, superamos obstáculos considerados impossíveis. É uma vitória sem precedentes."

Donald Trump



A vitória de Donald Trump foi esmagadora e histórica, e fez dele o maior fenômeno da política norte-americana desde Franklin Delano Roosevelt. Repudiado pelo establishment como um ''perigo para a democracia norte-americana'', emblema da divisão e conflito no seio do Deep State, não conseguiu se reeleger, deixou a Casa Branca com pecha de golpista e semeador de uma guerra civil. Seus inimigos mobilizaram as instituições possíveis na tentativa de enterrá-lo politicamente, inclusive apelando para a Justiça e forjando um grande arco de ''resistência democrática'' que trazia desde o início a marca da paródia. Não podemos esquecer também as tentativas de assassiná-lo, que trouxeram várias questões sobre a omissão de agências de segurança.


E eis que Trump retorna com um discurso tão ou mais radical, varrendo os swing-states, surrando Kamala no voto popular [são pelo menos quatro pontos percentuais de vantagem, uma lavada nos EUA], e levando o Partido Republicano à conquista da maioria no Senado e na Câmara, além de maioria dos Governadores. Ele praticamente dividiu os votos latinos com os Democratas, fez um arrastão entre os eleitores negros, reconquistou o ''cinturão da ferrugem'', e transformou a Flórida [um swing state até a década passada] em um novo Texas.

De nada adiantou os identitários escolherem uma ''Janja ianque'', com origem na Califórnia, e uma narrativa de defesa do feminismo contra o avanço do Patriarcado por causa da derrocada do abortismo -- causada por uma das principais consequências do primeiro mandato de Trump, o domínio conservador na Corte Suprema.

A reviravolta foi possível porque Trump nunca confiou somente em uma suposta verve ''populista'' [ou seja, no seu carisma eleitoral]. O trumpismo ocupou espaços importantes nas instituições. Seu controle sobre o Partido Republicano avançou continuamente e a própria versão de que teria sido roubado nas eleições de 2020 serviu ao propósito de expandir esse domínio sobre um Partido que tem capilaridade imensa nas demais instituições e na sociedade norte-americana.

Trump perdeu a Casa Branca, mas manteve um poder que ia muito além de sua popularidade em parte do eleitorado, uma lição que a direita brasileira, atarantada em torno da figura de Bolsonaro, não entendia até pouco tempo atrás, e que já era gritada por Olavo de Carvalho -- ele mesmo -- décadas atrás: vitórias eleitorais fugazes são muito insuficientes, o segredo está na ocupação de espaços vitais. É isso, aliás, que mantém a existência do identitarismo mesmo diante de seu fracasso diante da população. É por isso que Olavo de Carvalho falava tanto, ainda que de modo intencionalmente caricatural, de "gramscismo". O "guru da nova direita" era um Calabar, mas estava longe de ser um idiota.

Trump não foi eleito Presidente. Ele foi aclamado como Imperador. Nos próximos dois anos [antes das eleições de meio-mandato], terá poder suficiente para reformular o que quiser. Desde Lyndon Johnson, que usufruía o prestígio do mítico John Kennedy, que um Presidente não reunia tamanho controle do Executivo, do Legislativo e da Suprema Corte. A hegemonia Democrata nos anos 1960 permitiu a implementação dos Direitos Civis, de Roe vs Wade, o avanço do Direito Humanitário Internacional etc. De modo similar, Trump poderá levar adiante o Projeto 2025, cujo objetivo é inflar o Poder Executivo, reeditando o "spoil system", muitas vezes atribuído a Andrew Jackson, e subordinar as organizações de segurança mais visíveis do Deep State, dando configurações mais unitárias e autoritárias aos EUA. O modelo liberal sofreria bastante impacto e se retrairia em prol de uma maior centralização em torno da figura presidencial.

A elite política e intelectual norte-americana sempre se viu, em certa medida, como uma reedição da República romana, principalmente em seu formato político oligárquico. Se esta analogia estiver correta, a nova Roma está perto de entrar agora em seu período cesarista. Diferente do Império original, no entanto, essa transformação institucional interna se dá em um momento de decadência econômica e geopolítica, além de profunda crise ideológica e de identidade nacional.

Escrevi anos atrás que, ainda que por um lado Trump represente a ascensão de uma direita norte-americana mais próxima do nacionalismo populista europeu, ele também tem raízes muito profundas nos EUA. O isolacionismo era consenso antes da I Guerra Mundial, e só foi abandonado de fato nos anos 1940. A ação imperialista ianque fora do continente americano sempre foi criticada por paleoconservatives. Tampouco é novo o discurso de que a ''guerra de costumes'' deva ser enfrentada prioritariamente nos estados. O federalismo norte-americano sempre foi muito poderoso, e muito mobilizado por forças racistas ou conservadoras e religiosas. Por fim, o crescimento industrial ianque se fundamentou, por um século, na aliança com os Robber Barons, pouco taxados e com carta branca pra explorar os trabalhadores e liderarem sem amarras impérios industriais; além de um severo protecionismo [o ''sistema americano''] para impulsionar a indústria nacional.

Nesse sentido, Trump tem um sabor de saudosismo da América Profunda em relação aos elementos que, de fato, deram prosperidade e poder ao país, um pathos arcaísta incompatível com a ideologia progressista mainstream, sempre apegada ao amor pelas novidades e à condenação anacrônica do passado. Como todo saudosismo, essa Era Dourada imaginada esconde uma multidão de problemas, o que não a torna menos legítima aos olhos da população. O Império hegemônico em crise enfrenta uma guerra interna sobre seu destino e essa América Profunda nas pequenas cidades, subúrbios e áreas rurais, já muito debilitada pelos rumos tomados no último meio século, ainda tem músculos suficientes para desafiar aquilo que se desenhava como o novo ''destino manifesto'' do cosmopolitismo, religião ''woke'', globalismo. Ela prefere um Império ianque mais tradicional, mesmo que para isto tenha de se tornar um Império menos abrangente em termos mundiais.

O impacto no Brasil vai ser grande, já que o establishment atual se abraçou de vez com o Partido Democrata. A estratégia da Nova República para impedir sua demolição pelo voto popular é o de que estaria ameaçada por uma grande conspiração fascista mundial centrada nos EUA e em Bannon, que tentaria ressuscitar o regime militar contra o qual, dizia a mitologia, toda a sociedade brasileira lutou nos anos 1980. Essa narrativa não colou, apesar de imposta por mecanismos autoritários centrados do STF, e que encontravam sua justificativa na tese da "Democracia Militante" [uma reedição juristocêntrica do conceito de Ditadura da ciência política mais clássica]. Com pouco apoio popular interno e confrontada pelo que acontece no plano internacional, os grupos de pressão que mantém a Nova República só conseguirão manter as instituições atuais se partirem pra uma autoritarismo ainda mais explícito, o que não parece nada viável sem apoio norte-americano.

Por fim, a legitimidade do discurso identitário desceu mais um degrau. Sua derrota para o trumpismo foi acachapante. Isso significa que a ideologia dominante do establishment brasileiro, da mídia às universidades, e incentivada pelas grandes empresas, vai estar mais na defensiva do que nunca. E que todas as desculpas que ela usou para se segurar no poder nos últimos dez anos ["vamos nos dar as mãos", "vamos defender a democracia", "combate contra as forças do caos", "cuidado que Hitler está voltando"] não surtiram muito efeito na população. Reeditá-las seria expor ainda mais o desgaste, anacronismo e decadência esquerdeira.

Que discurso alternativo existe na sociedade brasileira para desafiar os espaços deixados pelo identitarismo que bate em retirada? Eis a grande questão. No momento, só um nacionalismo de discurso cristão teria força suficiente para ocupar o lugar.

domingo, 3 de novembro de 2024

O CAMINHO DE CAIM, ou: os filhos do diabo

"Ai deles, porque andaram pelo caminho de Caim"

Epístola de São Judas Tadeu 1:11



Nunca gostei de RPG [Role-Playing Game], o que não me impediu de, ainda adolescente, ler e reler o livro de regras "Vampiro, a Máscara", lançado em 1991. A  temática do morto-vivo/demonho que ataca e parasita o sangue humano sempre me fascinou, e esse cenário de jogo oferecia uma mitologia que ligava o surgimento do vampiro com a história bíblica de Caim. Essa é uma sacada genial e exemplifica como a cultura popular pode veicular tradições que escapam a um olhar superficial. No cristianismo, Caim é o ''protótipo'' acabado do filho do diabo, pai de artes e figuras demoníacas que se dedicam a seduzir e escravizar mulheres e homens, e o símbolo do Mistério da Iniquidade. Se é verdade que a morte entrou no mundo com Adão e Eva, é verdade também que só com Caim é que o diabo e o pecado passaram a reinar no coração humano. 



No texto sobre a Rebelião dos Anjos [clique], usei a literatura enoquiana para ne referir à apostasia de poderes angélicos. Ela se inicia ainda no primeiro dia criação, quando um anjo se pretende superior ao próprio Altíssimo. Determinadas versões do Mito apontam que o anjo se recusou a venerar Adão, a imagem criada de Deus, alegando que, por ter prioridade, era Adão que deveria se prostrar diante dele [do anjo]. Há um repúdio à Economia Divina, que gira em torno da Encarnação do Verbo e da deificação do homem [theosis]. Existem muitas descrições metafísicas sobre o 'estranhamento' entre Lúcifer e o Verbo, mas nas imagens fornecidas pela História Sagrada da Igreja, o anjo rebelado, chamado de Grande Dragão, é derrotado pelo Arcanjo Miguel e atirado na direção da terra à semelhança de um relâmpago. 




Uma vez derrotado, resta ao Dragão direcionar sua ira contra a imagem de Deus na terra. No texto sobre a Astrologia [clique para ler], publiquei uma imagem sobre o mapa do cosmos de Dante Alighieri, que tem muitas ressonâncias, mais indiretas que diretas, das tradições enoquianas, mostrando a terra cercada por dez esferas celestes. Adão e Eva estavam no Paraíso Terrenal, a montanha santa da qual fala o Profeta Ezequiel, Jardim regado por uma fonte que descia para a terra na forma de quatro rios. Segundo os Santos Padres, e a imagem ajuda também a indicar isto, o modo de existência de Adão e Eva era semi-angélico. A mente e o corpo do homem se encontravam entre a corruptibilidade e incorruptibilidade. Sua corporeidade era de uma matéria mais espiritualizada.


Adão foi criado sem pecado e puro, gozando de todas as benção da vida. Não conhecia nem doença nem sofrimento. Nada temia, e todas as feras se submetiam a ele, o tinham por mestre. Adão não sentia nem frio nem calor. Apesar de ter deveres, pois cuidava do Jardim do Éden, fazia isso com prazer. Sua alma estava preenchida pela consciência da presença Divina, e ele amava seu Criador cm todo o coração. Adão era sempre calmo e feliz, e não conhecia desconforto, tristeza e preocupação. Todos os seus desejos eram puros, justos e ordenados; sua memória, intelecto, e todas as demais faculdade estavam em harmonia e eram constantemente aperfeiçoadas. Sendo puro e inocente, estava sempre com Deus, e conversava com ele como com um Pai, e em troca Deus o amava como a um filho querido. Resumindo, Adão estava no Paraíso, e o Paraíso estava dentro dele. [Santo Inocêncio do Alasca, "O Caminho para o Reino dos Céus"].

 

Adão estava de tal maneira imune à ação dos elementos que a água não poderia afogá-lo, o fogo não poderia queimá-lo, a terra não poderia engoli-lo no abismo, e o ar não poderia causá-lo nenhum tipo de mal. Tudo estava submetido a ele como amado de Deus, como rei e senhor da criação, e todas as coisas viam nele a coroa perfeita da criação divina. [São Serafim de Platina, "Sobre a Criação": aula em audio]


"Antes da queda, Adão não conhecia dor ou doença. Não estava sujeito ao envelhecimento. Não estava submetido aos elementos; não podia ser ferido fisicamente. Não conhecia a corrupção." [Hieromonge Damasceno, "O que Deus realizou na Cruz"]

 


O Diabo usa a serpente como instrumento para enganar a Mulher e, por meio dela, levar Adão à Queda. Há todo um paralelo profundo entre as árvores no centro do Éden e a cruz de Cristo que não é meu objetivo explorar nesse momento [o mesmo poderia ser dito entre a serpente aprisionada à terra e a serpente levantada no deserto pelo Profeta Moisés, o Vidente de Deus]. O importante aqui é que, com a tentação, a morte entrou no mundo. Ocorreu uma transformação ontológica do homem e da própria criação. Adão foi banido do Éden, e seu corpo adquiriu o emblema da animalidade e da mortalidade na forma de vestes de pele [e de um novo modo de reprodução, por meio da cópula sexual]. A terra se torna maldita, ou seja, também ela corrompida, pois sua cabeça [o homem, ponte entre o mundo visível e invisível] foi ferido.



 O diabo também foi punido na forma da serpente, que perdeu suas pernas [e portanto sua verticalidade]: "andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida." [Gen 3:14]. A sentença dada à serpente se liga diretamente à mortalidade de Adão e Eva ["porque és pó, e pó te hás de tornar"]. Satã é agora o devorador de almas, o senhor do Hades. Ele está aprisionado ao chão, e se alimenta do novo ciclo de reprodução e morte que contribuiu para dar origem.


No filme 'Noé', de Aronofsky, vemos o corpo luminoso de Eva estendendo a mão para colher o fruto proibido, que tem a forma de um coração pulsante


Nada na História Sagrada indica, no entanto, que Adão e Eva se tornaram escravos do diabo. Estavam aprisionados pela morte, sem dúvida, mas não pela transgressão, pelo pecado. Se nos apoiarmos na imagem dos cosmos de Dante, fica mais fácil entender o ensinamento de Padres de que Adão e sua família continuaram habitando a Montanha Santa, nas proximidades do Éden. O Paraíso Terrenal era ainda visível para eles, que também se comunicavam comumente com Deus. A condição espiritual e corporal dos Pais Ancestrais era muito superior à da humanidade atual, mesmo que estivessem banidos e proibidos de adentrar o Jardim por causa do Querubim com espada flamejante. A própria duração da vida dos Patriarcas indica a diferença entre a condição existente então e a nossa. Os ícones da Conquista do Hades mostram Cristo libertando Adão e Eva da morte, indicando não só a salvação e abertura do Reino dos Céus para toda a humanidade, mas também que nossos Pais Ancestrais eram Justos. O personagem ligado à transgressão e a perversidade não é Adão, e sim Caim.


Todos conhecem a história do primeiro homicídio, de modo que não é necessário me alongar a respeito. São João Teólogo faz de Caim o emblema da escravidão ao pecado tanto em seu Evangelho quanto em suas epístolas. 

"É nisso que se conhece quais são os filhos de Deus e quais os do demônio: todo o que não pratica a justiça não é de Deus, como também aquele que não ama o seu irmão. Pois esta é a mensagem que tendes ouvido desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não façamos como Caim, que era do Maligno e matou seu irmão. E por que o matou? Porque suas obras eram más, e as do seu irmão, justas." [1Jo 3:10 a 12].

 

Nos ícones da Igreja, Adão, nosso Pai Ancestral, é representado com um halo e chamado de Justo


O epíteto ''filho do diabo'' é comum nos escritos de São João em vinculação com a figura de Caim, o homicida. Em Gênesis, ele toma o lugar da serpente, que por inveja levou Adão à morte. Adão e Eva não são amaldiçoados por Deus. A serpente sim é amaldiçoada. E Caim também é amaldiçoado:

"O Senhor disse-lhe: "Que fizeste! Eis que a voz do sangue de teu irmão clama por mim desde a terra. De ora em diante, serás maldito e expulso da terra, que abriu sua boca para beber de tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, ela te negará os seus frutos. E tu serás peregrino e errante sobre a terra." [Gn 4:10 a 12]

 

Não estou aqui referendando a leitura de certos gnósticos, para quem Caim é filho da serpente do Éden, ou ''semente da serpente'', e portanto filho direto do capiroto, pois as Sagradas Escrituras deixam nítido que ele é de fato filho dos Pais Ancestrais. Mas nele temos a prefiguração do Mistério da Iniquidade, que tratei no texto sobre o Anticristo [clique para ler]. A terra repudiou o primeiro homicida, não lhe dá seus frutos mesmo que ele a cultive. Caim é "errante" como as estrelas móveis. Segundo Santo Efraim, o Sírio, Caim abandona o topo da Montanha Santa, deixa de viver próximo ao Éden, e desce para o sopé, se estabelecendo em terras malditas. 


Ícone de Caim escravizado pelo diabo e cometendo fratricídio


É uma ''nova queda'', em certo sentido, e que traz diferenças também físicas entre a linhagem de Adão no topo da Montanha [a linhagem de Seth] e a linhagem cainita. Santo Agostinho chama essas duas ''tribos'' de Cidade de Deus e Cidade dos Homens. A tradição considera os sethistas como os ''filhos do paraíso'', e os cainitas como ''filhos dos homens". O sétimo patriarca depois de Adão é Enoque, que se torna símbolo da theosis na literatura apocalíptica que mencionei no texto anterior, um personagem deificado na figura de Metatron. Já o sétimo vindo na linhagem de Caim é Lamec, que surge em Gênesis se vangloriando de ser um grande assassino: 

"Lamec disse às suas mulheres: "Ada e Sela, ouvi a minha voz: mulheres de Lamec, escutai as minhas palavras: Por uma feridade matei um homem, e por uma contusão um menino. Se Caim será vingado sete vezes, Lamec o será setenta e sete vezes." [Gn 4:23 e 24]


Os cainitas dão origem a um novo modo de existência, ainda mais corrompido: a vida civilizada, girando em torno de artes industriais, do saque, do comércio, da violência. Essas artes e cidades são fundadas a partir do intercurso com os "filhos dos anjos", que pode significar uma rebelião dentro dos próprios descendentes de Seth como também uma invocação de anjos caídos. É bem possível que signifique as duas coisas, conforme mencionei alhures:

Até o século III, todos os Padres interpretaram o trecho escriturístico sobre os Nefilins, Gigantes que seriam frutos das relações entre os Filhos de Deus e as filhas dos homens, como a união sexual entre anjos decaídos e mulheres, seguindo a interpretação presente nos relatos de Enoque. São Metódio dizia, ''Os demais permaneceram nas posições para as quais Deus os criou e apontou; mas o diabo era insolente, e tendo nos invejado, agiu de modo perverso no dever que lhe foi confiado; como também assim fizeram aqueles que subsequentemente se enamoraram por pecados carnais e entraram ilicitamente em intercurso com as filhas de homens. Para estes também, assim como ocorre com os homens, Deus concedeu o fruto de suas próprias escolhas.'' São Justino Mártir foi ainda mais direto: ''Nos temos antigos, demônios perversos apareceram e defloraram mulheres.'' Depois do século III, muitos Padres encararam os ''Filhos de Deus'' como homens poderosos que haviam atingido uma gnose demoníaca. Mas essa explicação não entra em conflito com a anterior, como se depreende das explicações e profecias sobre o nascimento do anticristo. [aqui]


O Dilúvio


Os homens aprendem os ''segredos do céu'' que os anjos caídos trazem na forma de ciências ocultas e feitiçarias, e também a guerra e técnicas metalúrgicas, mas o maior de todos os segredos está na geração dos gigantes, ''filhos do diabo'', falsos mestres e governantes que tiranizam os próprios homens, que destroem a terra e pecam contra a natureza, e canibalizam, e bebem sangue. Os Nefilim, os espíritos destes monstros, vão continuar pelos ares, possuindo e atacando e destruindo mulheres e homens, em atividade demoníaca incessante até o fim dos tempos.


O Mistério da Iniquidade é detido por Deus por meio do Dilúvio, que inunda toda a terra e céu, só deixando o Éden de fora das águas. A criação é renovada em Noé, que é um novo Adão e um tipo de Cristo, e que vai repovoar a terra. Este mundo pós-diluviano é diferente, com uma atmosfera modificada, em que se enxerga o Arco-Íris, mas não mais o Paraíso Terrenal. O número de anos dos homens diminui rapidamente geração após geração, e Deus permite que eles se alimentem de animais nessa nova condição inferior.


Mas a apostasia não chega ao fim e temos mais uma etapa do plano diabólico, que é contada nas Escrituras Sagradas no episódio da Torre de Babel, na divisão da humanidade em 72 nações, cada uma delas sob cuidado de um anjo, um intermediário divino, que mais tarde será abandonado por estes povos, que vão preferir entronizar e cultuar demônios.


Mas essa é outra história. Comecei falando de como Caim é um signo da escravidão ao pecado, da gnose demoníaca e dos filhos do diabo, associando-o a demônios mortos vivos que seduzem as mulheres e bebem o sangue dos homens, a saber, a figura emblemática do vampiro. Explorei este tema no texto Sobre o Vampirismo [clique para ler]. Mas seria necessário também ligá-lo ao paradigma da bruxaria, com iniciações femininas a segredos diabólicos que envolvem cópula com Satã e canibalismo. É necessário também lembrar que parte considerável das civilizações antigas viam em seus fundadores deuses ou semi-deuses. As Escrituras estão dizendo que, na verdade, todos eles trazem a marca de Caim.

sábado, 2 de novembro de 2024

Gênesis, as Rebeliões Angélicas e Enoque

"E Ele me chamou de O YHWH menor na presença de toda Sua Corte Celeste; pois assim está escrito [Ex 23:21]: ''Porque meu nome está nele''."

III Enoque 12:5







Esta semana, escrevi bastante sobre o livro de Gênesis em algumas redes sociais. Noutra oportunidade vou reunir as postagens e republicá-las de modo mais organizado neste blog. O propósito era divulgar entre a meia dúzia de três que me leem a posição que os Santos Padres tem sobre Genesis, indicando que: i) eles evitam distorcer o livro para adequá-lo à ciência de seu tempo; ii) eles encaram os relatos como 'literais', no sentido de 'físicos', 'corpóreos', 'históricos'.


Na minha opinião, estes ponto estão bem estabelecidos, sequer são difíceis de contra-argumentar. Evidente que eles desagradam muita gente, que gostaria de encontrar uma conciliação entre a Revelação e o espírito vigente de nossa época. Mas eu penso que nós cristãos temos de fazer como ensinou o Glorioso Apóstolo e, antes de qualquer coisa, transmitir aquilo que recebemos. A conciliação é uma coisa menor, e até mesmo dispensável.


Mas é possível ir além no aprofundamento do texto de Gênesis -- ainda que por própria conta e risco --, o que nos leva sem pestanejar à literatura enoquiana e apocalíptica que circulava nos séculos imediatamente anteriores ao Nascimento do Senhor. Estes textos traziam 'crenças' sobre a História Sagrada que foram obscurecidas no decorrer dos séculos, dificultando para muitos a compreensão do contexto de composição das Escrituras.


Um dos exemplos mais marcantes é o Primeiro Livro de Enoque, também chamado de Enoque etíope -- porque a versão mais completa que nos chegou está na língua Ge'ez e porque é considerado canônico na Igreja Ortodoxa etíope, que é pré-calcedoniana.




I Enoque era considerado por muitos Padres como obra de fato redigida pelo Profeta Enoque, o sétimo Patriarca depois de Adão, pai de Matusalém, e que foi 'arrebatado' por Deus segundo Gênesis:


"Enoque viveu sessenta e cinco anos e gerou Matusalém. Após o nascimento de Matusalém, Enoque andou com Deus durante trezentos anos e gerou filhos e filhas. A duração total da vida de Enoque foi de trezentos e sessenta e cinco anos. Enoque andou com Deus e desapareceu, porque Deus o levou." [Gênesis 5:21 a 24]


Uma questão a ser explorada, portanto, é o destino de Enoque. O que significa esse desaparecimento/arrebatamento? O Glorioso Apóstolo São Paulo escreve na Epístola aos Hebreus que Enoque não passou pela morte.

"Pela fé Enoque foi arrebatado, sem ter conhecido a morte: e não foi achado, porquanto Deus o arrebatou; mas a Escritura diz que, antes de ser arrebatado, ele tinha agradado a Deus" [Hebreus 11:5]


A retirada de Enoque da terra tem similaridades com a ascensão do Profeta Elias, que também é levado para o alto em uma carruagem de fogo. Os Santos Padres divergem sobre o paradeiro destes personagens, mas concordam que eles não foram para o Reino dos Céus, o Paraíso Celestial. Ou Deus os levou para o Éden ou para algum lugar inacessível para os mortais comuns.


Estas tradições eram bastante difundidas no judaísmo pós-exílico, e estavam presentes na literatura apocalíptica da qual os livros atribuídos a Enoque fazem parte. Não é à toa, inclusive, que a tradição patrística tenha visto Enoque e Elias nas duas testemunhas do Apocalipse de São João Teólogo. Eles retornarão à terra no fim dos tempos para denunciar o anticristo, ocasião em que serão martirizados. Há similaridades nessa abordagem e as crenças muçulmanas que se desenvolveriam em torno do retorno de Cristo para combater o Djalal, bem como no Imã oculto, o que dá ainda mais credibilidade à ideia de São João Damasceno de que o Islam seria uma ''heresia cristã".





Retornado a I Enoque, podemos ler na Espístola de São Judas Tadeu:

"A respeito deles profetizou Enoque, o sétimo dos patriarcas a contar de Adão, quando disse: "Eis que o Senhor veio com suas santas milícias exercer o julgamento sobre todos os homens e arguir os ímpios de todas as obras de impiedade que praticaram e de todas as palavras duras que proferiram contra ele os pecadores ímpios." [Judas 1:14 e 15]


Muitos cristãos titubeiam mas essa é, com toda a certeza, uma citação ipsis litteris de I Enoque 1:9:

"Veja! Ele vem com miríades de santos para executar o julgamento sobre todos, destruir os pecadores e pedir conta às pessoas sobre todos os seus trabalhos pecaminosos que cometeram e todas as coisas duras que os pecadores falaram contra ele."


Enfim, talvez não seja tão importante saber se São Judas Tadeus citava diretamente do livro ou de uma perícope da tradição oral que também foi incluída em I Enoque, embora a primeira alternativa seja imensamente mais plausível. E sim que a ausência de I Enoque do cânone tem de ser entendida sob o pano de fundo da influência de 4 Ezra/Esdras, também chamado de 2 Esdras e de Apocalipse de Esdras, e que não por acaso também faz parte do cânone da Igreja etíope. A obra relata como Esdras recebeu de Deus a missão de recompor as Escrituras após o Exílio da Babilônia. Elas não teriam sido salvas pela tradição oral, mas reveladas de novo ao Profeta em uma visão divina. Esdras ditou a escribas 94 livros, recebendo ordem de que os 24 primeiros se tornassem públicos no culto, e que os 70 últimos circulassem de maneira discreta, conhecidos apenas pelos mais preparados.

"O Altíssimo deu inteligência [também] aos cinco homens, e o que lhes era dito, passo a passo, escreviam-no com caracteres que não conheciam, ficando lá durante quarenta dias, escrevendo durante o dia, e comendo pão durante a noite, enquanto durante o dia falava, mas durante a noite não me calava. Foram escritos, nestes quarenta dias, noventa e quatro livros. Acontece que, quando se completaram os quarenta dias, o Altíssimo falou-me dizendo: “Os vinte e quatro livros que escreveste antes torna-os públicos, que os leia quer quem é digno quer quem é indigno; mas os setenta escritos por último conserva-os, para os entregar aos sábios do teu povo, porque neles está a fonte da inteligência, a fonte da sabedoria e o rio do conhecimento!” [4 Esdras]


Daí o ímpeto de cristãos [e também dos judeus] de adequarem o cânone do Antigo Testamento ao número de 24 livros públicos, adaptando-o ao número de letras do alfabeto hebraico ou grego [um signo de perfeição na Antiguidade]. O sentido de ''apócrifo'' se coadunava igualmente com as espiritualidades mistéricas: obras reservadas aos mais preparados, e não aquelas lidas publicamente no culto diário.


Independente do acerto ou não dessas considerações, mais de uma passagem neotestamentária se refere diretamente a ensinamentos presentes nestas obras enoquianas e apocalípticas, como se pode depreender não apenas de Sâo Judas, mas também de São Pedro e São Paulo. E a partir dessas crenças do Judaísmo do Segundo Templo podemos entender melhor os primeiros capítulos de Gênesis:

"Quando os homens come­ça­ram a multiplicar-se sobre a terra, e lhes nas­ceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas, e escolheram esposas entre elas. O Se­nhor então disse: “Meu espírito não perma­necerá para sempre no homem, porque todo ele é carne, e a duração de sua vida será só de cento e vinte anos”. Naquele tempo viviam gigantes na terra, como também daí por diante, quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e elas geravam filhos. Estes são os heróis, tão afamados dos tempos antigos. O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos de seu coração estavam continuamente voltados para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o coração ferido de íntima dor. E disse: “Exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e as aves do céu, porque eu me arrependo de tê-los criado”. Noé, entretanto, encontrou graça aos olhos do Senhor." [Gênesis 6:1 a 8]



A narrativa é sucinta mas repercute de modo muito poderoso as tradições enoquianas. Mesmo depois que muitos Padres concluíram que I Enoque era um pseudopígrafo [ou seja, um livro falsamente atribuído a Enoque], e mesmo depois que a maior parte deles passou a ver nos ''filhos de Deus'' uma linhagem de descendentes de Seth e não mais anjos decaídos, Santo Ambrósio de Milão ainda escrevia:

"Os autores das Escrituras Divinas não tinham intenção que estes gigantes fossem considerados ao modo dos poetas, como filhos da terra, mas ele se refere aos que nasceram [do intercurso] de anjos e homens, que os autores nomeiam ''gigantes'' para apontar a grandeza de seus corpos." [Sobre Noé, 4:8]



A história conta um avanço desmedido da corrupção e da degeneração humana, que foi contido pelo Dilúvio. A narrativa é explicada em I Enoque, mais especificamente no primeiro dos cinco livros menores que o formam, o "Livro dos Vigilantes":


"E naqueles dias, os filhos dos homens se multiplicaram e nasceram filhas bonitas e agradáveis. E os anjos, os filhos do paraíso, as viram e desejaram e disseram uns aos outros: "Vamos escolher esposas dentre as filhos dos homens e ter filhos com elas". E Samyaza, que era o líder deles, disse: "Receio que vocês não concordarão com este ato e eu sozinho tenha que sofre o castigo por um grande pecado". E eles todos disseram. "Vamos fazer um juramento e um pacto nos ligando por imprecações mútuas para não abandonarmos estes plano, mas para concluí-lo". E todos eles juraram juntos e se ligaram por imprecações mútuas. E eram ao todo duzentos; que desceram nos dias de Jarede no pico do monte Hérmon e o chamaram Monte Hérmon porque foi onde todos juraram e se ligaram por imprecações mútuas. [...] E todos os anjos escolheram esposas e cada um escolheu uma, e começaram a ter relações sexuais com elas e a conviver com elas e ensinaram a elas encantamentos e feitiços, o corte de raízes e o conhecimento das plantas. E elas engravidaram e conceberam gigantes cuja altura era de 3 mil côvados [Nota: cerca de 150 metros de altura]. Eles consumiam todas as produções dos homens. E quando os homens não conseguiam mais sustentá-los, os gigantes se voltaram contra eles e devoraram as pessoas. E começaram a pecar contra as aves, os animais, os répteis e peixes, e a devorar a carne uns dos outros, e a beber o sangue. Então a terra apresentou uma acusação contra os iníquos. E Azazel ensinou os homens a construírem espadas e facas e escudos e couraças e ensinou a eles sobre os metais da terra e a arte de trabalhá-los e os braceletes e os ornamentos e o uso do antimônio, e o embelezamento das pálpebras, todos os tipos de pedras caras e todas as tinturas colorantes. E surgiu muita impiedade e eles cometeram fornicação e foram desviados de todas as formas". [I Enoque 6:1 a 8:2]

O relato ajuda a entender o véu das mulheres nas Igrejas [por causa dos anjos], e também o paradigma mais básico da bruxaria. O mais fundamental, porém, é o tema da transgressão de seres 'celestes', que ensinam aos homens a guerra, as artes, as ciências ocultas. E que iniciam as mulheres em segredos vetados, e tem relações sexuais com elas e geram toda uma linhagem de seres, os Gigantes, que governaram os homens como se fossem deuses, e o parasitaram e os exploraram, e em determinado ponto passaram a assassiná-los e canibalizá-los.


O livro prossegue relatando como Deus sentenciou estes rebeldes e enviou Arcanjos para derrotá-los e aprisioná-los. E como enviou Enoque para admoestá-los e avisá-los da sentença. O Dilúvio visava destruir a humanidade corrompida e os Gigantes. Outros pontos podem ser lido na seguinte passagem:

"E agora, os gigantes, que foram geados por espíritos e pela carne, serão chamados espíritos maus sobre a terra e a terra será a habitação deles. Espíritos maus vieram do corpo deles; porque nasceram de mulheres e dos que eram Vigilantes santos em sua origem primordial e inicial; eles serão espíritos maus na terra e assim serão chamados. Os espíritos dos gigantes, os Nefilim, eles oprimem, causam prejuízo, atacam, lutam, destroem a terra e trazem tristeza, não se contentam com alimentos, nem com a sede. E esses espíritos se levantarão contra os filhos dos homens e contra as mulheres, porque vieram deles. Nos dias da matança, destruição e morte dos gigantes, onde quer que saírem os espíritos de seus corpos, eles continuarão a destruir sem julgamento até o dia da consumação, o grande julgamento, quando será consumada esta era e será o fim dos Vigilantes e dos ímpios, a consumação total. E para os Vigilantes que o enviaram para que interceda por eles, que viviam no paraíso, diga a eles: "Vocês viviam no paraíso, mas nem todos os mistérios lhe foram revelados e vocês conheciam os menos importantes e, na dureza de seus corações, vocês os revelaram a mulheres e através desses mistérios, as mulheres e os homens multiplicaram o mal na terra". Portanto, diga a eles: "Não há paz para vocês". [I Enoque 15:8 a 16:4]

Antes de continuar, é muito interessante comparar o trecho acima com a seguinte passagem de exorcismo realizada por Cristo. Os demônios se dirigem a Ele nos seguintes termos:

"E eis que gritavam, dizendo: "O que há de comum para nós e para ti, filho de Deus? Vieste aqui antes do tempo para nos torturares?" [Mt. 8:29]


Enoque faz então uma jornada pelo cosmos, e em certo momento vislumbra o local da prisão dos Vigilantes:

"E além desses abismo, vi um lugar que não tinha firmamento do céu acima dele e não havia terra afundada abaixo: não havia água nem pássaros, mas era um lugar vazio e horrivel. Vi ali sete estrelas como grandes montanhas envolvidas em fogo quando perguntei sobre elas, o anjo me disse: este lugar é o fim do céu e da terra, ele serve como prisão para as estrelas e legiões que vivem no céu. E as estrelas envoltas em fogo são as que transgrediram o mandamento do Senhor no início do nascimento delas, porque não nasceram no horário marcado. E ele se enfureceu com elas e as prendeu até o tempo que a culpa seja consumada; por dez mil anos." E Uriel me disse: "Aqui ficarão os anjos que tiveram relações sexuais com mulheres, cujos espíritos assumirão muitas formas diferentes pervertendo a humanidade e desviando as pessoas a ponto de fazerem sacrifício para demônios como se eles fossem deuses, até o dia do grande julgamento quando serão julgados. E as mulheres dos anjos chorarão por eles." [I Enoque 18:12 a 19:2]

Em algumas cópias, as mulheres que choram são chamadas de sereias ou corujas do deserto. O fundamental, no entanto, é o seguinte:

i. Embora os Gigantes tenham sido mortos pelo Dilúvio, seus espíritos permaneceram atrelados à terra. E estes espíritos vão atacar os homens até o dia do juízo final. Os Nefilim, portanto, são os espíritos maus dos Gigantes mortos, a progênie dos filhos dos paraíso e das bruxas, que atormentam os homens até o fim dos tempos. Há uma demonologia implícita no livro.

ii. Os Vigilantes estão presos em um lugar terrível. Mas não estão sozinhos. Eles tem a companhia de Anjos ['estrelas' são associadas a anjos na literatura sacra] culpados de outro tipo de transgressão que não é especificada pelo Arcanjo Uriel mesmo sob perguntas insistentes de Enoque.




Quem são estes anjos que "transgrediram o mandamento do Senhor no início do nascimento delas"? A resposta pode estar no Segundo Livro de Enoque, ou seja, em outra obra atribuída ao mesmo autor, e que é conhecida como "Enoque eslavônico", por causa da língua em que encontramos sua cópia mais antiga. Ela traz o relato de outra rebelião, anterior à descida dos Vigilantes que arderam em luxúria pelas filhas dos homens.

Nesta obra, Enoque é guiado por anjos psicopompos através de dez esferas celestes [dez céus]. No segundo céu, vê prisioneiros em tormentos, que se afastaram de Deus e seguiram seus próprios desejos, condenados porque ouviram os conselhos do "Príncipe deles, que também está aprisionado no quinto céu". Outro lugar de tortura para fornicadores e feiticeiros e outros perversos se encontra no lado norte do terceiro céu. O mais impressionante, porém, é o que o Patriarca assiste no quinto céu: legiões de anjos silentes chamados Grigori [Vigilantes], ligados aos do segundo céu mas ainda assim diferentes:

"Estes são os Grigori, que seguiram seu príncipe Satanael na rejeição ao Senhor da Luz, e que foram acompanhados por aqueles que são mantidos nas trevas do segundo céu, três dos quais desceram do Trono de Deus até a terra, para o lugar chamado [monte] Hermon, e quebraram seus votos na colina ao verem as filhas dos homens, que tomaram para si como esposas. E contaminaram a terra com suas ações, espalhando a ilicitude e se misturando, e do qual nasceram gigantes e homens poderosos e grandes inimizades. E portanto Deus os julga de modo terrível, e eles choram por seus irmãos e serão punidos pelo Senhor no grande dia. [...]" [II Enoque 18:3 a 5]


Satanael seria, portanto, líder daqueles que se rebelaram em Hermon e desposaram mulheres, que foram iniciadas na bruxaria e pariram os Gigantes. Mas estes Vigilantes não estão juntos com os punidos no segundo céu. O relato prossegue com a ascensão de Enoque até o décimo céu, quando fica diante do próprio Deus, de quem recebe conhecimentos sobre a cosmogonia:

"E assim rapidamente fiz o firmamento. E chamei a este dia de primeiro [Domingo]. E fiz todas as tropas celestes à imagem e essência do fogo. E meu olho se fixou na rocha dura e firme, e do brilho deles [dos olhos] o relâmpago recebeu sua natureza maravilhosa, que é tanto fogo na água quanto água em fogo, sem que um apague ou seque o outro. E assim o Raio é mais brilhante que o sol, mais suave que a água, e mais duro que a Rocha. E da rocha tirei um imenso fogo, do qual criei as dez ordens de tropas de anjos incorpóreos. E suas armas são de fogo e suas vestimentas de chama ardente; e ordenei que cada um deles permanecesse em sua ordem. E um dos anjos, se rebelando junto da ordem que estava sob seu comando, concebeu um pensamento impossível, o de colocar seu trono ainda mais elevado que as nuvens que cobrem a terra, de modo que ele se tornasse igual a mim em poder. E eu o arremessei do alto junto com seus anjos, e ele está voando no ar continuamente acima do abismo sem fundo." [II Enoque 29:1 a 4]





Esta rebelião é descrita de forma diferente daquela do Monte Hermón. Ela não consistem em anjos ardendo em luxúria pelas mulheres, mas em uma versão que depois se tornaria clássica e famosa no cristianismo, a de Lúcifer desafiando Deus, sendo derrotado e arremessado à terra. As imagens do relato apresentam o anjo feito à semelhança de um Raio/Relâmpago, a partir de um Fogo retirado da Rocha. São símbolos que ecoam nas próprias Escrituras:

"Disse-lhes: 'Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago'." [Lucas 10:18]

"Houve uma batalha no céu. Miguel e seus anjos tiveram de combater o Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E já não houve lugar no céu para eles. Foi então precipitado o grande Dragão, a primitiva Serpente, chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Foi precipitado na terra, e com ele os seus anjos." [Apocalipse 12:7 a 9]


É possível que o autor do livro estivesse conciliando tradições diversas sobre a queda dos anjos, ou é possível também que estas tradições já estivessem conciliadas em seu tempo. Os historiadores consideram ambos os livros como do século II antes de Cristo. Esta datação é complicada, porque se baseia fundamentalmente na premissa de que as profecias presentes nessas obras só poderiam ser escritas depois que os próprios eventos tivessem ocorrido [afinal, não existiria predição do futuro]. É bem possível que as tradições por trás de ambos os livro tenham adquirido forma escrita um ou dois séculos antes. Mas isto é pouco relevante para nossa discussão. O fato é que as obras são contemporâneas, e que faziam parte das crenças e mitologias judaicas pós-exílicas, das quais saíram a redação final das Sagradas Escrituras, a literatura apocalíptica, as tradições sobre o Trono de Deus e o Filho do Homem, e toda a ambiência intelectual e espiritual em que surgiu a Igreja e com a qual os Santos Apóstolos e os Padres do primeiro século dialogavam.


Para dar um panorama completo dessas crenças faltou falar de uma terceira versão para a Queda dos Anjos, igualmente mais complementar do que excludente daquelas descritas acima. Ela está presente em uma série de textos [Vida de Adão e Eva, Apocalipse de Moisés etc.] cujas cópias e fragmentos mais antigos pertencem ao século III da era cristã, mas que remontam também a tradições contemporâneas à enoquiana. Nestas obras, Satã explica a Adão a razão de seu ódio pelos homens. Uma vez criado o homem, Deus e Miguel pediram aos anjos que se ajoelhassem e venerassem Sua imagem. Lúcifer e seus anjos se recusaram, alegando terem sido criados primeiro: era Adão quem devia adorá-los:


"Se Deus se ira contra mim, colocarei meu assento mais alto que as estrelas do céu e serei como o Altíssimo" [Vida de Adão e Eva 15:3]



O relato não é inteiramente consistente com os anteriores. A Queda de Lúcifer em II Enoque é anterior à Criação de Adão. Elas se coadunam, no entanto, com o próprio cerne da literatura enoquiana, que vai desembocar na deificação da humanidade na figura do Filho do Homem, o ''pequeno Iahweh'', o Metatron, já indicado em II Enoque, quando Deus decide revelar os segredos da cosmogonia ao Patriarca:

"Ouça, Enoque, e leve em conta minhas palavras, pois não contei meu segredo nem para os meus anjos, não lhes contei sobre o surgimento deles, nem sobre meu reino ilimitado, e eles tampouco entenderam meu ato criativo, que vou te contar hoje." [II Enoque 24:3].


O retrato completo é melhor conhecido em III Enoque, ou o Enoque hebraico, cuja doutrina é tão próxima à da Igreja que foi durante muito tempo considerado obra cristã, mas que é provavelmente composto por algum rabino ligado ao misticismo do trono [Merkabah] e certamente conhecedor da tradição enoquiana e dos livros anteriores atribuídos ao Patriarca.


A versão da queda de Lúcifer por sua recusa a se prostar diante de Adão é desenvolvida no Islamismo, adquirindo uma outra feição de acordo com o ramo desta religião [sufismo, ismailismo etc.]. Mas para os cristãos ela obviamente sugere o caráter cristocêntrico da Criação e da futura Encarnação do Verbo. O que acrescenta um sentido ao episódio da tentação de Cristo no deserto:

"O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: "Eu te darei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares". Respondeu-lhe Jesus: "Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor, e só a ele servirás (Dt. 6:13)". Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram dele para servi-lo." [Mt 4:8 a 11]


O que um cristão poderia retirar de bom de todos estes livros? Não sei e não pretendo dar uma solução definitiva, já que a Santa Tradição é aquele ensinada pelos Santos Padres, pelas Escrituras e pela Igreja, e estas abordagens servem apenas de ''moldura'' para estes temas. Mas esta ''moldura'' está longe de ser desimportante. Eu opinaria que é até mais do que apenas uma moldura, que dá tom ao próprio quadro, que fornece as cores da História Sagrada.


FLÁVIO DINO E OS LIMITES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, ou: A Censura e o Bem Comum

 


Flávio Dino ordenou a censura de livros por suposta homofobia, ato que o STF enquadrou como crime de racismo, e portanto incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, já que o racismo é crime imprescritível e que exige reclusão segundo o artigo 5º da Constituição Federal, que muitos defendem ser cláusula pétrea.


Ora, a interpretação do que é homofobia é suscetível de reformulação e ampliação contínua segundo os juízos dos movimentos progressistas. Daí a importância crucial da decisão de Dino, que indica que a liberdade de expressão para discordar da homofobia depende das definições da abrangência deste crime.


A consequência mais direta é a retirada de livros de circulação, o que não é nada incomum no mundo contemporâneo, bastando lembrar dos mecanismos de controle de livros e de mídia no Irã e na China.


Ora, a censura de livros não foi inventada pelo socialismo ou por regimes contemporâneos. Basta recordar o Index Librorum Prohibitorum, instrumento de censura adotado pela Igreja Católica Romana em meados do século XVI para evitar a difusão de livros protestantes. A Igreja Católica abandonou o Index nos anos 1960, quando a reedição do documento já proibia cerca de quatro mil obras. A censura não era especificidade católica-romana, já que reações similares à invenção da imprensa ocorreram em países cristãos ortodoxos. A censura comia solta no czarismo russo dos séculos XVI e XVII, e estava permeada também de motivações religiosas.


De modo que a prática de censura e de restrição da liberdade de expressão e difusão de ideias é muito antiga, o que distingue esta ou aquela ação específica é o critério de censura. Como o discurso da esquerda tem forte influência nas principais instituições do país, sofremos todos com o perigo de uma prática de censura ilegítima. Se tivesse força o suficiente, a esquerda já teria proibido obras clássicas do cânone ocidental, com a desculpa fajuta de que X ou Y eram racistas, ou machistas, ou alguma outra denúncia moralista retirada de sua própria tábua de Dez [ou Dez Mil] Mandamentos.


Seria possível dar inúmeros exemplos da para indicar que a esquerda política nunca tergiversou na hora da censura. Ela sempre exerceu essa prerrogativa quando julgou necessário, sem qualquer drama de consciência, e sempre em nome de seus próprios horizontes de ''bem comum". De modo que, neste sentido mais geral, não há qualquer ruptura entre o progressismo e os Estados pré-modernos ou orientados por sistemas de ideias pré-modernas.




O episódio é uma oportunidade para que guardemos no coração o princípio defendido por Dino de que ''a liberdade de expressão não é absoluta", ao mesmo tempo em que buscamos perceber qual o critério usado pelo discurso dominante para restringi-la. Concordo com o Ministro que a liberdade não é um princípio absoluto, e pode ser delimitada pela força do Estado. Não concordo é com os fundamentos antipopulares mobilizados pelo STF, uma suposta casta de iluminados que é uma das novas versões possíveis da vanguarda revolucionária esquerdista, para decidir estas questões. Um regime nacionalista e popular deveria estabelecer critérios de censura mais condizentes com a nossa cultura política e com a noção de bem comum de nosso povo.