quarta-feira, 10 de março de 2021

Lula e o mito do paraíso perdido

 O mito mais estapafúrdio difundido em certo círculos do sistema político-partidário não é o fanatismo em torno de chavões e rompantes toscos de Bozó. E sim a narrativa esdrúxula de um suposto paraíso perdido do governo Lula.



O primeiro mandato do PT, entre 2002 e 2006, foi quase que uma continuação das políticas macro-econômicas de Fernando Henrique Cardoso. Para ser justo com o sapo barbudo, temos de admitir que ele foi muito melhor que seu rival uspiano. Existiram de fato diversos itens em seu governo que o tornavam bem superior a tudo que se viu na destruição nacional empreendida pelo PSDB.

A maior virtude foi conseguir enterrar a ALCA. Conduzida com mão de ferro por diplomatas do nível de um Celso Amorim, o Brasil rompeu com a subserviência ao unilateralismo ianque e se tornou líder na construção de mecanismos multilaterais que poderiam apontar, futuramente, para uma multipolaridade: os Brics, a aposta no Mercosul, os investimentos nos vizinhos, os diálogos da UNASUL. Houve também dedicação ao programa nuclear e à defesa do país.

Mas todas essas iniciativas, por melhores que fossem, sofriam uma restrição muito forte: a base industrial cada vez menor. E nosso processo de desindustrialização era alavancado justamente pela política macroeconômica neoliberal a que Lula sempre esteve abraçado.

É verdade que ele buscou apoiar, principalmente em seu segundo mandato, a construção civil. Mais uma vez, por mais que a existência de políticas industriais seja preferível a política industrial nenhuma, as do governo Lula foram evidentemente insuficientes.



E ele deu sorte. A partir de 2005, as commodities viveram um boom no mercado internacional, permitindo aliviar as contas públicas e dar ao petista a oportunidade de sustentar políticas de transferência de renda que impulsionaram o consumo da ''Ralé" como nunca visto depois do primeiro Plano Cruzado. O país cresceu a um ritmo que não conhecia desde o fim dos anos 1970.

Mas era um crescimento ilusório. Não havia aumento da produtividade, a indústria não participou da festa. Os setores que se expandiram eram os de serviços de baixa qualificação. Aquilo que alguns economistas apontaram como ''economia de shopping''.

Mas o PT vendeu a miragem como símbolo da formação de uma ''nova classe média''. Essa ''Ralé'' e essa classe popular periclitante, que dava ''rolê em shoppings'', e que trabalhava como lojistas, cabelereiros e garçons, seriam a marca da ascensão popular e da nova sociedade igualitária que o PT estaria criando. O próprio critério da divisão das classes em faixas de renda já denunciava toda a ideologia nacional-consumista que estava por trás do olhar petista. Para mostrar que acreditava de fato na estupidez, o PT decidiu realizar um acordo com as principais lideranças evangélicas, abandonando a antiga base católica-romana que foi um dos esteios de construção do partido.

Sim, a força política da IURD e de Silas Malafaia se consolidou no governo Lula. Foi ele quem abriu as portas dos palácios do governo para essa gente. A teologia da prosperidade era a versão religiosa do nacional-consumismo petista. Nesse sentido, o PT caía na esparrela propagandeada por Mangabeira Unger.



Entusiasmado por ter descoberto que a revolução viria do consumo, Lula deu entrevistas dizendo que o brasileiro deveria parar de esperar que a indústria se recuperasse. Que o agronegócio, vendendo carne e soja, poderia sustentar a prosperidade do país e os rolêzinhos em shoppings. Poucas declarações foram tão ridículas e patéticas.

Do mesmo modo, os mecanismos de transferência de renda e os empregos precários em um comércio de baixa qualificação não possuíam base para alterar em nada a estrutura perversa de propriedade e renda. Quem mais perdeu na brincadeira foi a baixa classe média e as classes populares mais estabelecidas, açoitadas pela inflação de serviços que se originava por causa de um consumo desenfreado sem base produtiva real. A concentração de propriedade nas classes mais abastadas continuou, fortalecidas pela financeirização dos agentes econômicos, que atingiu não só a pequena burguesia, mas mesmo as indústrias, que, afinal, tinham de sobreviver de alguma forma.



Pouco adiantou também construir universidades a rodo pelo país afora. Sem emprego para absorver a mão de obra que saía dessas instituições, tudo o que se conseguia era aumentar o número de desempregados de diploma nas mãos e acentuar a perda de cérebros para outros países.

As pequenas mudanças de rumo econômico no segundo mandato, com a adoção de políticas anticíclicas de matiz keynesiano, não alteraram em nada o quadro geral. O Brasil dependia cada vez mais da exportação de matérias primas e do agronegócio, sua economia se tornava refém do rentismo [financeirização] e de um poderoso cartel de bancos, os mecanismos de financiamento do Estado eram viciados e uma bomba a explodir a curto prazo, o consumismo não possuía base produtiva real, a desigualdade de propriedade e renda estava intacta.

Em meio a essa brincadeira, Lula deu voz no governo a todas as ONGs pós-modernas e identitáias liberais que destruíram a imagem da esquerda diante da população. Financiamento de paradas gays, abraço à ideologia de gênero, ''marchas das vadias'' que invadiam igrejas, tentativas de legalizar o abortismo por meio do STF: a parafernália completa da lacração encontrou terreno propício para proliferar no pântano petista.



É verdade que Lula não destruiu o Estado, como o funesto PSDB. Ele revalorizou o serviço público. Mas não o suficiente para retirar a Petrobrás da Bolsa de Nova Iorque, por exemplo, ou para reverter a política de terceirização dos quadros da empresa [os terceirizados eram maioria no fim da era Lulla-lá].

No terreno político, o petista tentou o mesmo que Bozó: não depender do Centrão. Não queria dar cargos em estatais pra todo aquele fisiologismo. Para sobreviver, inventou o mensalão, crime a que Bozó não esteve disposto. Depois que ''deu ruim'', fez também o mesmo que seu atual rival, se rendeu por completo às oligarquias parlamentares. A roubalheira que se sucedeu nos anos posteriores foi mera consequência desse arranjo. O Rio de Janeiro, governado por Cabral, Picciani, Eduardo Paes etc., todos com forte apoio lullista, sabe muito bem o que é isso.

Lula fez um governo muito melhor do que Fernando Henrique e Bozó. Mas isso porque está sendo comparado com dois dos piores governantes que já tivemos em nossa história. De modo geral, seus mandatos não passaram de uma grande perda de tempo. O Brasil perdeu tempo com Lula. Saímos de seu governo piores do que entramos, delirando com um inexistente potencial revolucionário do bolsa-família, dando postos chaves da política para Edir Macedo, acreditando em unicórnios e elefantes cor-de-rosa que nos tornariam uma potência mesmo sem indústria, copiando as políticas identitárias do partido democrata ianque, e criando um fosso difícil de ser superado entre a sensibilidade do partido governante e a população de valores conservadores.



Não há paraíso perdido nenhum. O governo Lula foi capítulo da Nova República, elo que, de Fernando Henrique, nos levou ao Reino dos Bozós. Seu sentido profundo é a camisa de força liberal que nos agrilhoa nas últimas quatro décadas.

Quem pensa qualquer coisa diferente disto, ou é liberal como Lula, ou está fantasiando em total desconexão com a realidade.

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