segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A VONTADE ANSIANDO POR 'SER', ou: implicações da psicologia de Tomás de Aquino quando contrastada a de Santo Agostinho

 Desejo, necessidade, vontade .

Necessidade, desejo, necessidade, vontade

Bebida é agua
Comida é pasto
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte.

[''Comida'', Titãs]



Comparar Santo Agostinho e Tomás de Aquino ressalta um aspecto muito importante da obra do Bem Aventurado Bispo de Hipona. Ele se tratava de um grande psicólogo, no sentido tradicional desse termo. Suas exposições se fundamentavam num mergulho preciso em sua própria psique. Era um grande conhecedor da alma humana.


Não me parece que Tomás de Aquino tenha entendido isso muito bem, porque quando trata de Santo Agostinho o faz não só com aquela aridez logicista característica -- distante até do que percebo em Aristóteles -- como também desvirtua certas considerações do Mestre latino.

Não é que seja uma redução ou adaptação de Santo Agostinho à análise formalista e à busca por exatidão presente na Summa. Muitas vezes me parece incompreensão da experiência relatada pelo Bispo de Hipona.

A relação entre a vontade e a beatitude é um exemplo muito nítido. Santo Agostinho diz que o coração do homem está eternamente insatisfeito, busca nas coisas do mundo, de modo sempre frustrado, aquela Bem-Aventurança sem fim que só pode ser satisfeita no próprio Deus.

Evidente que existem concepções metafísicas por trás, mas a afirmação é antes de tudo descoberta em um experimento meditativo, em um mergulho n'alma, típica de uma tradição de psicologia ascética que até mesmo Descartes [fingiu] seguir.

Mas no tomismo se torna um ensinamento amarrado por uma metafísica aristotélica rigorosamente amarrada e sistemática, que traz inúmeros problemas pra avaliação do homem e que, se seguida à risca, é 'anti-iniciática'.

Pra Tomás, a vontade é um apetite 'intelectual', uma 'fome', uma 'sede', mais ou menos como outros apetites de outros âmbitos da alma. Existem apetites da alma vegetativa, existem apetites da alma animal. Assim, um homem pode sentir 'fome' dos elementos bioquímicos que existem num alimento, e ansiar por ele. Mas pode sentir fome pelos aspectos 'sensíveis', saborosos, de um prato -- fundamento da arte culinária -- e buscar essa satisfação.

Mas a 'vontade' é fome de 'ser', sua sede é ontológica. Trata-se da ânsia que opera no âmbito intelectual da alma por mergulhar fim último do homem, que no tomismo é a Visão Beatífica.

O 'tesão ontológico' [chamarei assim] é tão poderoso que a vontade adere à Beatitude [com maiúscula] de modo absolutamente necessário. Não há possibilidade da vontade humana ficar diante da Visão Beatífica e não agarrá-la eternamente. [por isso também não existe possibilidade de 'queda' no mundo da ressurreição, já que a vontade não é livre para 'desprezar' a Beatitude Plena.]

Ora, a Visão Beatífica só vai se apresentar ao homem depois do Juízo Final. No nosso mundo, a vontade está diante de 'bens particulares', cada um deles com certo 'ser', certa 'substância', e portanto, na adaptação neoplatônica de Tomás ao aristotelismo, 'bons' em algum ponto da escala ontológica. Só que como um determinado bem pode ser bom sob um aspecto e 'não-bom' sob outro, e como estamos mergulhados numa multiplicidade infinda de bens particulares, a vontade não adere necessariamente a nenhum deles. O homem se torna livre para escolher.

Mas aí é que está: como se dá a decisão por um bem em detrimento de outro? Esse é um dos maiores problemas da análise tomista.

Tomás de Aquino dizia que a vontade era uma potência da alma capaz de movimentar todas as demais, inclusive o intelecto [que aqui é sinônimo de razão 'natural', isto é, nossa capacidade de raciocinar, de abstrair etc.]. E que, por sua vez, só era movida por si mesma em seu ''tesão ontológico'' [o que torna Deus o principal motor da vontade, já que é o Bem que a vontade busca em toda e qualquer coisa] ou pelo próprio Intelecto.

A vontade não adere necessariamente a um bem particular nesse mundo, e precisa então que o intelecto lhe apresente o bem a ser desejado. Em termos ideias, em que o homem tem a virtude da prudência, e portanto está sob império da razão, é o Intelecto que vai avaliar o melhor fim a ser atingido, e depois disso, os meios mais adequados para atingir aquele fim.

Agora, vejam, quando Tomás fala de intelecto, ele está querendo dizer 'capacidade de abstração' ou 'capacidade de raciocinar logicamente'. Trata-se de raciocínio. A pessoa conclui, baseada em seus raciocínios, que determinado fim traz mais Bem do que outro, e que tais meios para alcançá-lo tem também mais 'substância' que os demais, e apresenta o resultado à vontade.

A vontade é livre para aderir ou não à conclusão do intelecto. Um problemão para toda a rigorosa análise tomista, porque não fica claro o critério por qual a vontade seria movida então, já que não se move necessariamente para bem particular nenhum, e já que não está necessariamente vinculada à conclusão apresentada pela razão.

Pra não entrar em um regresso infinito de causas, Tomás vai criar uma ideia curiosa sobre ''resquícios de influência'' da vontade no intelecto e do intelecto na vontade, já que essas duas potências do homem estão em interação constante.

No entanto, o verdadeiro nó de sua psicologia/metafísica, e que ele não consegue romper, é a falta de uma instância livre desse dilema e que realize essa decisão. Tomás acredita na Pessoa humana, no sujeito unificado, no 'Eu' por trás da alma, mas esse sujeito não aparece no formalismo seco de sua psicologia. Ele é substituído por uma análise da relação de operações psíquicas sem qualquer âmbito real que decida pela ação.

É um problema que vai acompanhar toda sua psicologia, mas não é o único.

Pois quem acredita de fato que a psicologia humana funciona dessa maneira? O homem prudente em Tomás de Aquino é um computador analisando o tanto de bem e de mal que existe em cada coisa, em cada fim e em cada meio, e apresentando-o à Vontade a fim de conduzi-la 'segundo a natureza'.

Se é prudente, ele faz isso a todo momento em que um dilema moral se lhe apresenta [já contando que no dia a dia ele será movido pela força do hábito construído]. É um robôzinho, uma gigantesca máquina calculadora.

A verdadeira ação humana é essa descrita aí em cima. Sem isso, não temos ação humana, mas ação realizada por homens.

Voltando a Santo Agostinho, não parece que ele estivesse falando nada parecido. Não apenas o conteúdo mas o próprio 'sabor' de seus escritos estão muito apartados desse tipo de análise. O Bispo de Hipona apresenta um drama existencial, Tomás retruca com um silogismo estéril.

Pra terminar, a Summa também explica que quase nunca o homem age segundo esse modelo. A razão é obstruída pela força de uma paixão [luxúria, digamos] e por isso não é capaz de avaliar corretamente os bens. Nesse caso, a vontade não é movida. O homem age baseado nos apetites 'irracionais', isto é, nos apetites das almas vegetativa e sensitiva, principalmente pelo Eros e pelo Temperamento [Ira], ou desejo e irascibilidade. Age como um 'animal irracional', como eu disse lá em cima: ação de um homem, mas não ação propriamente humana.

Daí porque as paixões da psique tem de ser moderadas pela própria razão, cristalizadas em hábitos, para permitir o florescimento da prudência. [estou dizendo em grosso modo].

Uma das consequências é que a ação de um homem mergulhado nas paixões não é exatamente voluntária. Ela é voluntária em um sentido meramente derivado, comparativo, já que a vontade mesma, como apetite racional, não é movida.

[É curioso lembrar também que, para Tomás de Aquino, existem movimentos da alma/corpo que não estão nem poderão jamais estar sob poder da razão -- que ele praticamente sinonimiza ao Intelecto --, o que também torna suas ideias incompatíveis com o ascetismo dos Santos Padres].

É impossível entender o fenômeno e a vitalidade da mística alemã -- tanto católica-romana quanto luterana -- sem entender essas insuficiências e essa prisão anti-tradicional da psicologia exposta pelo tomismo e pela escolástica.

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