sábado, 5 de abril de 2014

Humanas intenções e o fuso das Moiras; ou: a encruzilhada na vida das crias de Getúlio

A ditadura getulista do Estado Novo possuía dois grandes pilares. O primeiro deles era a burocracia civil construída por meios meritocráticos e que era parte do projeto de Vargas de, por um lado, proporcionar meios de fortalecimento e centralização do Estado, revertendo seu caráter federativo e conferindo ao governo uma base administrativa técnica e competente, capaz de planejar e aplicar os projetos necessários ao país; por outro, de promover um golpe fatal no clientelismo em que se baseava grande parte da força das oligarquias regionais no aparato estatal [1]. O segundo pilar, ainda mais importante, eram as Forças Armadas, que possuíam inclusive um projeto próprio e que exigia, para ser cumprido, um Estado também forte e autônomo em relação às pressões centrífugas das elites políticas estaduais. Mas a partir do início da década de 1940 o gênio político de Vargas, vislumbrando já a possibilidade de uma futura redemocratização, começou a apostar em outro apoio, o das massas populares urbanas. O presidente possuía uma formação positivista, típica da geração gaúcha da qual fazia parte, e para a qual o operariado deveria ser integrado à política nacional pelas mãos de um líder paternal e protetor. Nas novas condições da política, economia e sociedade brasileiras, Vargas construiu um movimento populista, o trabalhismo, que teve importância capital no país pelos próximos cinquenta anos.

Uma consequência indesejada, no entanto, foi perder o apoio das Forças Armadas. Os antigos aliados de Vargas, que desenvolviam uma mentalidade cada vez mais anticomunista, desde o início desconfiaram de todo aquela relação com o povão vinda de um político nada democrático, nada liberal, acostumado a uma política de gabinetes e não de massas, e que chegou a se assustar quando, no fim da Revolução de 1930, chegou ao Rio e descobriu que havia uma multidão esperando que desembarcasse do trem. Operários e lumpemproletariado nas ruas gritando ''Queremos Vargas'' em 1945? Para Góes Monteiro só podia ser sinal de golpe no ar. O resultado foi a intervenção militar que retirou Getúlio do Palácio do Catete muito antes do que ele esperava, e levou o ''pai dos pobres'' para o seu ''exílio em São Borja''. 

Mas não foi a única consequência. Duas crias da revolução política ligada ao nome de Vargas passaram a se digladiar a partir dali. De um lado, o populismo que se tornou base do PTB; do outro, o papel moderador que as Forças Armadas, constituídas como instituição hierárquica e política durante o Estado Novo, possuíam no sistema político pátrio. Claro que a relação possuía idas e vindas, não era de ódio constante e inabalável. Foi assim que Getúlio só pôde se candidatar a presidente em 1950 com anuência do amigo Góes Monteiro, o mesmo que o havia retirado do poder poucos anos antes. Foi assim também que Castelo Branco, que havia apoiado o general Lott quando este interviu a favor da posse de Juscelino Kubitschek, rompeu com o companheiro d'armas quando o dito cujo recebeu um prêmio de organizações sindicais; não foi surpresa que mais tarde Castelo participasse na linha de frente da intervenção militar que colocou fim ao governo de João Goulart nos idos de março. 

Eu havia dito alhures que as intervenções militares na política dependiam, para ser bem sucedidas, de um certo consenso entre os generais sobre que lado apoiar. Esse consenso era cada vez mais difícil na medida em que grupos diferentes de oficiais se dividiam em suas relações com o populismo. Os ascendentes de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, eram generais que participaram dos governos trabalhistas, ou como ministros de Vargas ou como partícipes do PTB. E em 1961, um golpe contra a posse de Jango foi abortado porque o comandante do III Exército resolveu apoiar a ''Cadeia da Legalidade'' de Leonel Brizola, o mais combativo político getulista de então. O consenso que faltou naquele momento foi criado em 1964 justamente por causa da investida nos sindicatos entre soldados e sargentos, que ameaçava fazer desabar, pelo menos assim pensavam os generais, a cadeia de comando construída pela Doutrina Góes e que tão essencial era ao papel das FFAA. Militares nacionalistas em conflito com o mais nacionalista dos movimentos políticos brasileiros, divididos em torno da herança de Getúlio e sobre um grupo político cuja origem possui traços que se explicam por causa do peso dos militares na elite gaúcha e na ocupação do Rio Grande. 

Em meio a esse cenário, muitas escolhas pessoais que mais tarde se tornaram dramas. Lembrei hoje de Costa e Silva. Difícil afastar a imagem de um brucutu golpista que mergulhou o país nas trevas com o AI 5, um sujeito que, segundo muitos, instaurou a linha dura no poder afastando os ''castelistas'', corrente de oficiais que seria consciente da necessidade de devolver o poder aos civis. Há um quê de verdade nestas imagens, misturadas com muito estereótipo. Costa e Silva era um general de pulso, que, diferente de Castelo, se distanciava da figura de acadêmico e possuía um perfil de ação, um verdadeiro comandante de tropas que todos gostariam de ter ao lado durante uma guerra ou, por que não dizer?, um período revolucionário. Mas não era um politico e foi engolido pelas conjunturas nas quais estava imerso. Não parecia querer fechar o Congresso, mas tampouco teve resposta à provocação irresponsável do parlamentar Márcio Moreira Alves, que, em discurso explosivo em setembro de 1968, pediu aos brasileiros que boicotassem os desfiles militares do 7 de setembro e às donzelas do país que evitassem se envolver com os homens de farda, um discurso que forneceu aos que desejavam medidas extremas para combater os protestos e ataques de esquerda que tomaram o país em 1968 a oportunidade de que precisavam. O médico que cuidava de Costa e Silva o avisara que sua pressão estava alta quando da votação no Congresso que, apesar de toda a manipulação do governo, negou a suspensão da imunidade parlamentar do deputado abusado. Costa e Silva respondeu, ''hoje eu preciso dela alta mesmo!''

É possível que não desejasse também o AI 5. Na reunião de líderes que convocou para decidir o que fazer, Pedro Aleixo, seu vice-presidente, foi o único a se posicionar contra a medida. O famoso jurista Gama e Filho, na época Ministro da Justiça -- e que votou a favor do Ato fazendo um sinal com o polegar invertido, como se falasse a um César no Coliseu--, perguntou-lhe ironicamente, ''Mas o senhor desconfia das mãos honradas do presidente Costa e Silva, aqui presente?'' O vice-presidente respondeu, ''Não, ministro, das mãos honradas do presidente eu não desconfio, eu desconfio é do guarda da esquina.'' [2]

Todo mundo sabe que Costa e Silva decidiu pelo Ato Institucional. Mas poucos sabem que desde março do ano seguinte vinha tentando revogá-lo, bancando inclusive um ante-projeto que abolia a má afamada arbitrariedade, cuja elaboração se encontrava nas mãos do próprio Pedro Aleixo. Mas sofria resistência dos militares que foram a base de apoio que o colocaram no cargo. Ainda assim fez a escolha ousada de abrir o país. Sobre aqueles dias, conta o jornalista Carlos Chagas:

''Porque os militares, amicíssimos dele -- Rademaker, Lyra Tavares, Márcio Mello, Portella, Sizeno --, todos estavam contra o que ele estava fazendo. Diziam: ''Costa, você não pode abrir, não pode, é muito cedo. Não pode, não pode.'' [...] ele já tinha tomado a decisão de não passar à história como ditador. ''Eu vou abri de qualquer maneira. Só eu tenho condições de abrir. Só eu mando nesse pessoal.'' E mandava mesmo. Então, dentro do inconsciente dele, aquele conflito foi se agravando, até que o inconsciente escolheu a saída. Que foi ele ficar fora de tudo. Ele teve o primeiro processo de ''insulto'', como eles chamam o derrame, no dia 27 de agosto de 1969. Foi lá no Palácio do Planalto. Depois o segundo, à noite. Depois no dia seguinte. O médico percebeu. Era um capitão do Exército, muito bom médico. Percebeu e lhe disse que era uma coisa grave, que teria que ficar deitado. ''Vamos chamar os neurologistas do Rio de Janeiro imediatamente. O senhor tem de ficar de repouso.'' Isso foi na quarta ou quinta-feira. Ele queria ir para o Rio na sexta para assinar a legislação da abertura. A mulher, dona Yolanda, estava lá. O capitão-médico vai ao general Portella, de madrugada, e lhe diz que o negócio é muito grave. É derrame. Aconselha-o a chamar imediatamente os neurologistas e a dopar o presidente, porque, ele estando na horizontal e dopado era possível que os ''insultos'' viessem mais fracos. ''Se ele começar a se mexer muito é fatal; o derrame será muito grave''. Aí o Portella disse: ''É, mas o presidente quer ir para o Rio amanhã de qualquer maneira''. [...]Porque no Rio estava o foco de resistência à abertura. Então o presidente vai para o Rio, numa viagem dramática de avião. Vai com um cachecol enrolado no pescoço, para fingir que era gripe, que estava afônico. Na verdade, ele já estava sem poder falar, já estava semi-paralisado de um dos lados. Desce a escada do avião, chega ao Palácio das Laranjeiras. Aí é o clímax. Chega lá ao meio dia, mais ou menos, vai para os seus aposentos, chama o ajudante-de-ordens, o Ariel, acho que hoje está na reserva da Aeronáutica. Chama-o e pede papel. Pega a caneta e começa a tentar a assinar o nome. Só que o comando do cérebro não chega mais na ponta da mão. Então não sai mais Arthur da Costa e Silva. Sai A. Silva, Co e Silva, e não sei mais o quê. Depois de algumas tentativas, a caneta cai da mão e ele começa a chorar copiosamente. Entra em estado de coma daí a meia hora. Processo total. Meses depois, ele tinha se recuperado em parte. Quer dizer, nem a fala nem o lado esquerdo, mas entendia tudo. O drama era o seguinte: o ''aparelho receptor'' dele recebia mais ou menos bem tudo o que estava em volta. Ele escutava rádio bem. Mas o ''aparelho transmissor'' estava em curto-circuito. Quando ele queria falar dava um nó. Deve ser horrível isso. Mas esse Ariel, esse ajudante-de-ordens, quando ele, Costa e Silva, estava deitado, num belo dia, já o Médici no governo e tudo, esse Ariel pergunta: ''Presidente, o senhor se lembra daquele dia em que o senhor adoeceu?'' Ele faz assim com a cabeça [Concorda]. ''O que o senhor queria?'' Era sexta-feira: ''O senhor estava querendo fazer uma apostazinha nos cavalos?'' Ele jogava nos cavalos todo fim de semana. Ele faz assim [Nega]. O rapaz já sabia o que perguntar. Então pergunta: ''O senhor queria assinar a Constituição e abrir o Congresso?'' Ele concorda e começa a chorar.'' [3]

Pedro Aleixo não assumiu a presidência. Uma junta militar chegou ao poder, mexeu na emenda do anterior vice-presidente e um sucessor foi escolhido a partir de uma consulta a oficiais.


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[1] Foi a instituição de um ''universalismo de procedimentos'' na burocracia, a partir dali formada por concursos públicos. Foi dessa forma que o  avô materno daquele que vos escreve, que trabalhou durante a vida em plantações de cana e depois como operário de uma fábrica de cartuchos do Exército, em Realengo, adentrou o serviço público federal como funcionário da Casa da Moeda. A reconstrução do Estado realizada por Getúlio vai possibilitar o planejamento da economia e do governo que foram marcas dos anos JK e do período militar. Por outro lado, deve-se dizer que teve por efeito não previsto não o fim do clientelismo mas sua nacionalização.

[2] Um diálogo interessante entre dois civis que possuíam trajetórias políticas bem distintas. Pedro Aleixo apoiou a Revolução de 1930, havia sido o nome a substituir Vargas durante o Estado Novo, mas se voltou contra o trabalhismo e se tornou ferrenho adepto da UDN na década de 1950. Gama e Filho, pelo contrário, esteve do lado da oligarquia paulista quando da Revolta de 1932 mas depois seguiu carreira acadêmica na USP.

[3] Entrevista concedida a Ronaldo Costa Couto em 30 de abril de 1995 e publicada no livro ''Memória viva do Regime militar''.

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