Continuação da série dos maiores da história do Flamengo, apresentada por posição e em ordem cronológica. Gaúcho, formado nas divisões do Flamengo mas que caminhou por outros caminhos, retornou ao clube de coração no fim da década de 1980 para se tornar um vencedor. E um Flamengo "falido" em meados dos anos 1990 foi capaz de tirar o maior jogador do mundo e craque da Copa de 1994 daquele que era então o clube mais badalado do mundo: Romário vinha aí, e o Bicho ia pegar.
7) GAÚCHO [1984; 1990/93]
A primeira vez que ouvi falar a sério de Luís Carlos Tóffoli foi na Copa União de 1988. Ele era então centroavante do Palmeiras, que jogava contra o Flamengo no Maracanã. Depois das duas substituições então permitidas, o goleiro alviverde se machucou. E lá se foi Gaúcho pro gol pra tentar segurar o empate contra o Campeão Brasileiro.
Conseguiu, mas não para por aí. O regulamento era estranho. Com a justificativa de que o jogador brasileiro tinha de se acostumar com disputas de pênaltis [a eliminação na Copa da França deixou traumas], todo jogo que terminasse empatado naquela competição acabava sendo decidido por penalidades máximas.
Funcionava assim: o vencedor da partida levava 3 pontos [em vez dos 2 tradicionais até então]. Se empatasse, os times levavam um. Mas iam pra disputa de penais, e quem ganhasse levava mais um. [num total possível de 2.] Pois não é que Gaúcho pegou duas cobranças, de Zinho e Aldair, marcou a dele e saiu como o herói do dia?
Ainda bem que ele baixou na Gávea dois anos depois, já aos 26 anos de idade, ainda com tempo pra se redimir daquela jornada inusitada. Mas, eis a surpresa: não era sua primeira passagem pelo Flamengo. Jogou nas divisões de base do clube entre 1982 e 84, e foi profissionalizado n’O Mais Querido. Sem chances na equipe, partiu para outras.
Quando voltou, revelou uma faceta já vista em outros atletas: assim como Renato Portaluppi [e do portenho Doval antes dele], Luís Carlos, nascido em Canoas, Rio Grande do Sul, “cariocou”. Boêmio, com fama de mulherengo e cervejeiro, se tornou amigo do peito de Renato, que estava em sua segunda passagem no Flamengo. Juntos, ganharam a Copa do Brasil e se tornaram uma das duplas dinâmicas mais famosas do ambiente esportivo pátrio.
Com a bola no pé, Gaúcho era um “cintura dura”. Que não lhe pedissem para driblar adversários, pois não sabia. Tinha passe ruim, e péssima mobilidade. Seu chute de canhota era até forte, mas sua principal qualidade era outra: era mortífero no jogo aéreo. Não apenas se posicionava de modo perfeito, como tinha excelente tempo de bola, capacidade de finalização e, ainda mais letal, um cabeceio poderoso.
Virou ídolo e acumulou artilharia de campeonatos. Mesmo sem Renato ao lado, foi fundamental na conquista do Carioca de 1991 e do Brasileiro de 1992. Nesse último, foi pivô da confusão que afastou Portaluppi do Botafogo e o levaria de volta à Gávea no ano seguinte. Depois da derrota alvinegra contundente no primeiro jogo da final, os dois amigos apareceram sorridentes em um churrasco juntos à beira da piscina. Nada demais, se não jogassem em times diferentes e a torcida do Glorioso não estivesse prestes a amargar aquele que é seu mais doloroso vice diante do Flamengo.
No ano seguinte, a ligação com a torcida arrefeceu. Gaúcho saiu do Mengão, rodou por clubes [alguns com ajuda de Renato, como sua ida para o Atlético Mineiro em 1994 e para o Fluminense em 1995]. Se aposentou cedo dos gramados, com apenas 32 anos, e foi realizar seu sonho de fundar um clube em Mato Grosso, o atual Cuiabá.
Gaúcho está entre nossos vinte e dois principais goleadores, com exatos 99 gols. Faleceu ainda muito jovem, com apenas 52 anos, vítima de um câncer. É estrela nos Céus da Nação Rubro-Negra.
8) ROMÁRIO, “O BAIXINHO”, O “GÊNIO DA GRANDE ÁREA” [1995/96; 1996/97; 1998/99]
Os valores para os ingressos do Maracanã tinham sido severamente majorados para o Fla vs Flu daquele dia 12 de fevereiro de 1995. As arquibancadas chegaram ao incomum preço de 10 reais. Filas imensas se formavam nas bilheterias do estádio. Eu estava em uma delas, aguardando com ansiedade a vez de garantir meu lugar no jogo dos sonhos da minha geração.
Deixe-me voltar no tempo: Um ano antes, um Flamengo quebrado, e que havia vendido a preço de banana uma das gerações mais talentosas de suas divisões de base, penava com salários atrasados e com um time de garotos imaturos incapaz de fazer frente aos principais times brasileiros. Naquela mesma temporada, a seleção brasileira carregou a esperança de um país machucado por um jejum de 24 anos na Copa do Mundo. A redenção do nosso futebol aconteceu principalmente pelos pés de um ponta-de-lança/Atacante que havia sido qualificado por Cruyff de “O Gênio da Grande Área”, e que era um dos rostos mais típicos do mestiço malandreado do Rio de Janeiro.
Eram tempos em que o rádio ainda tinha uma penetração enorme no dia a dia das grandes metrópoles, principalmente no futebol. As transmissão de TV não eram nem de longe tão fartas quanto hoje em dia, muito menos os programas dedicados ao futebol. Eu ouvia rádio durante boa parte do dia [e da noite], para saber das notícias e análises do Flamengo e principais competições.
Em um programa de uma fria madrugada durante a Copa do Mundo, o repórter Elso Venâncio, da Rádio Globo, conseguiu uns segundos com Romário. E fez uma pergunta surpresa, dando a entender que o atleta havia sido procurado por dirigentes do Flamengo. Romário riu e não confirmou nem desmentiu.
Contei para todos do meu círculo o que escutei. Todos riram, é claro. Ninguém acreditou na possibilidade. Romário era simplesmente o maior jogador do mundo, atuando no maior time do planeta, um dos clubes europeus mais endinheirados, e no auge de sua forma física e técnica. Naquele mês, levantaria a Copa do Mundo.
Mas eis que em janeiro de 1995, semanas antes da cena que descrevi no primeiro parágrafo, uma chamada urgente do Jornal Nacional soltava a bomba: Kleber Leite, recém empossado Presidente do Flamengo, e ex-repórter da Rádio Globo, estava na Espanha tentando fechar a contratação do Baixinho.
Não era como se um grande craque, já em fim de carreira, idoso, ou sem espaço na Europa, estivesse voltando para o Brasil. O Flamengo, mesmo ''falido'', estava tirando da Europa aquele que acabava de ser eleito o melhor jogador da temporada de 1994. Era incrível.
Voltando para o meio dos cem mil pagantes daquele Fla vs Flu, lembro quando um grito, no início tímido, começou a se formar no “povão” [ele não vinha das torcidas organizadas]. Era uma resposta à animada torcida tricolor que desafiou a rubro-negra com cânticos meia hora antes da partida. Os versos, simples como o “povão”, ganharam corpo e tomaram o estádio. Eram um canto de guerra, mas também catarse, em tom de ameaça, mas também de festa, que não só os flamenguistas, mas aquela geração inteira de brasileiros, que descobrira recentemente o que era ser campeã do mundo, podia entoar com prazer.
“Ô-lê-lê, Ô-la-lá
Romário vem aí
E o bicho vai pegar”
A contratação de Romário foi a pioneira em uma era do futebol pátrio que, se apoiando em parte na ficção cambial estabelecida por Fernando Henrique Cardoso [e que praticamente equiparava o Real ao dólar, iniciando uma farra de importações e de destruição da indústria nacional], permitia que os nossos clubes, já não mais protegidos pela Lei do Passe – a desregulamentação dos “mercados” atingiu todos os âmbitos --, pudessem oferecer salários próximos aos do Velho Mundo, seduzindo parte considerável dos principais atletas do país. Foi um cenário que durou até a implosão completa do câmbio fixo, em 1999/2000.
Deixando de lado o contexto econômico, Romário foi o jogador tecnicamente mais completo que tive o prazer de acompanhar [peguei só o final da carreira de Zico, já a do Baixinho vi praticamente inteira, desde sua explosão no Vasco da Gama em 1985/86].
Sua habilidade era lendária, a explosão no pique dos primeiros trinta metros impossível de acompanhar. Ele tinha tudo. Drible, passe, cruzamento, posicionamento, jogo aéreo impecável [mesmo com apenas 1,68m de altura] e uma capacidade de finalização absurda.
O Romário que vestiu o Manto Sagrado já estava em declínio físico, que se acentuou ainda mais depois de uma cirurgia em maio de 1995, depois de pisar em um buraco no gramado do Maracanã na partida de ida das semifinais da Copa do Brasil, contra o Grêmio. Já não era mais o Ponta-de-Lança/Atacante, mas um centroavante absolutamente mortal. E, como centroavante, foi o melhor que vi jogar também.
A identificação com a Magnética foi brutal. Mesmo sem cumprir todas as expectativas de títulos que carregava, nunca vi a torcida do Flamengo comprar a briga de um jogador como comprou as de Romário.
Primeiro, o Baixinho brigou com toda a imprensa. Virou o inimigo número um da grande mídia, que achava que podia construir e destruir ídolos. Repito que eu escutava muito as rádios, e sou testemunha da campanha da imprensa contra Romário. Ainda que os jornalistas conseguissem prejudicar a imagem e a carreira do Baixinho com o público mais geral, era ela quem tinha o filme queimado com a torcida que acompanhava o dia a dia e frequentava os estádios.
Quando a grande mídia criou uma [falsa] polarização entre Romário e Sávio, após a perda do Carioca de 1995, a torcida do Flamengo comprou a briga do camisa 11. Sávio foi vaiado no Maracanã, para desespero de Gílson Ricardo, um dos repórteres da Globo daqueles tempos. Depois Kleber Leite decidiu vender o Baixinho para o Valencia e “trocá-lo” por Bebeto. Pois o baiano foi apupado sem misericórdia em sua estréia no clube, inviabilizando sua permanência a médio prazo. O público inteiro clamou por Romário naquele dia.
A Magnética exigiu o retorno de Romário à seleção, dobrando Zagallo, que, por birra, o deixou de fora da Olimpíada de 1996 [que perdemos]. E tínhamos certeza absoluta que, naqueles dias em que só se falava de Ronaldo Fenômeno, o verdadeiro monstro da Pátria era o baixinho folgado. Não à toa, em 1997, o maior goleador da dupla Rô-Rô foi o centroavante d'O Mais Querido.
O amor não foi abalado nem mesmo quando Romário brigou com Zico por causa do corte do craque na preparação para a Copa da França em 1998.
O Baixinho retribuiu efusivamente essas manifestações de carinho. Sentiu na pele a frustração e angústia da torcida com a falta de título no ano do Centenário. Quando o radialista Washington Rodrigues, até então um grande crítico de Romário, se tornou técnico do time em 1995, criou um vínculo de amizade forte com o “espeto assassino” [como ele chamava o camisa 11], e o ensinou o que era ser rubro-negro.
A partir de então, Romário, que nunca foi de meias palavras ou concessões, escancarou sua identificação com a torcida rubro-negra, uma paixão que nunca teve fim. No jogo das estrela que Zico faz todo ano, e que em 2010 marcou a reconciliação entre os dois ídolos, Romário foi o jogador mais festejado pela Magnética. Depois de um de seus gols, chegou perto do setor em que ficavam as organizadas do clube, apontando alternadamente para o seu coração e depois para as arquibancadas. Pequenos gestos que dizem muito.
Infelizmente, o Baixinho teve de sair do clube por causa do plano de Edmundo Santos Coelho de se livrar da herança de Kleber Leite e fundar uma nova era a partir dos contratos com a ISL. Era um jogador que eu gostaria de ter visto encerrar sua carreira no Flamengo.
Mas se não nos legou nenhuma profusão de taças, Romário deixou para os flamenguistas momentos inesquecíveis, e que seria bobagem citar um a um. Ele foi a cara do clube, um legítimo representante da torcida, e um símbolo vivo da grandiosidade a que o Flamengo estava destinado.
Foi artilheiro dos Cariocas de 1996, 97, 98, 99, do Rio São Paulo de 97, da Copa do Brasil de 1998 e 1999, da Mercosul de 1999. É simplesmente o 5º maior artilheiro da nossa história, com o mesmo número de gols de Pirillo [204], mas média ligeiramente inferior [0.86 a 0.85].
Foi campeão da Taça Guanabara em 1995/96 e 1999; Campeão Carioca em 1996 [invicto] e 1999; Campeão da Conmebol em 1996 e da Mercosul em 1999.
É responsável pelo orgulho flamenguista [e brasileiro!] de uma geração inteira de torcedores. Nesse sentido, foi o Leônidas da Silva de uma era em que o clube não se preparou estruturalmente para mudar de patamar profissional.
Naqueles loucos anos de seu reinado na Gávea, o bicho pegava mesmo.
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