domingo, 28 de janeiro de 2024

O VASCO NÃO É PIONEIRO NA ESCALAÇÃO DE JOGADORES NEGROS , E SIM O BANGU

 

O Vasco da Gama NÃO FOI o primeiro clube a escalar negros no time e a combater o racismo. É necessário repetir e espalhar essa verdade até os confins do universo.


A pesquisa histórica e o Estado do Rio de Janeiro reconhecem o Bangu Atlético Club como o primeiro a contar com jogadores negros. Desde 1905, um ano antes da criação do Campeonato Carioca, a equipe da Zona Oeste contava com Francisco Carregal no time.

Francisco Carregal era mulato, filho de pai português e mãe preta. Era tecelão, operário da fábrica, e membro do time de futebol, criado e mantido pela direção da Companhia, e formado por operários: pobres de diversas nacionalidades [havia portugueses, italianos etc.]


Em 2001, A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro concedeu ao Bangu Atlético Club a Medalha Tiradentes pelo pioneirismo na inclusão de mulatos e negros no futebol.

[http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro99.nsf/d1b99e6346101855832567040007dd94/9d5b06472529aa8103256a5d005af5c5?OpenDocument]





Alguns podem alegar que o Bangu fazia isso de maneira um tanto envergonhada. Que era antes uma exceção, não uma causa do clube. Mas isto também é falso.


No início de 1907, a Liga de futebol do Rio de Janeiro estipulou regras para barrar a participação de não brancos nas equipes de futebol. O ofício enviado aos clubes era muito direto: "Comunico-vos que a direção da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade de votos, que não serão registrados como amadores nesta Liga as pessoas de cor".




Nenhum clube se levantou oficialmente contra esta regra segregacionista a não ser o Bangu Atlético Club, que respondeu com ofício em que se dizia ''ofendido'' e se recusando a participar do campeonato daquele ano.


Estamos em 1907, quase uma década antes do Vasco criar seu Departamento de Futebol, e cerca de 15 ano antes do cruzmaltino subir à primeira divisão carioca.


Outros podem lembrar da oposição sofrida pelo Vasco logo que chegou à Primeira Divisão, em 1923, e o abraço de toda a cidade ao Flamengo no memorável "Jogo da Vingança", que levou, dizem algumas fontes, quase 50 mil pessoas ao Estádio das Laranjeiras, a maior parte torcendo freneticamente pelo fim da invencibilidade dos "camisas negras".


Mas diferente da tradição inventada por Mário Filho e consolidada na memória e na identidade vascaínas, a oposição ao Vasco da Gama na ocasião NÃO TINHA MOTIVAÇÃO RACIAL.


A prova máxima disso é que o time do Vasco da Gama de 1923 era, em boa parte, contratado de equipes do subúrbio carioca. Aqueles negros e mulatos que atuavam pelo Vasco já atuavam normalmente em outros clubes da cidade, sem problema algum.

O América campeão em 1922

O escândalo foi o Vasco tê-los contratado e estabelecido um regime de profissionalismo, o grande debate que movimentava aqueles tempos. Havia uma questão social aí, além de uma discussão sobre a natureza do próprio esporte? Certamente. Era um problema de segregação racial? De forma nenhuma. Boa parte dos times do Rio já contavam com negros e mulatos em sua equipe, ainda que não fizessem disso uma questão ideológica.


A principal motivação do "Jogo da Vingança", em que a Capital da República apoiou o Flamengo contra o Vasco, era nacionalista, como muito bem exposta pelo próprio Mário Filho em diversas crônicas. A oposição ao Vasco não se voltava contra os negros da equipe, mas pelo fato de ser um time lusitano. O sentimento mobilizado foi um proto-nacionalismo, que no Rio de Janeiro tomava contornos, naqueles tempos, de um certo anti-lusitanismo popular.


[Lembrando que o Rio de 1920, primeira metrópole brasileira, tinha 20% da sua população formada por portugueses.]


A torcida vascaína no Rio nunca foi associada pelo imaginário dos rivais aos ''negros'', e sim aos portugueses. A caricatura que se usava contra os vascaínos era a do 'dono da mercearia' ou da 'padaria', figura do comércio carioca tradicionalmente associada a portugueses. O escudo do clube, a Cruz Pátea [que erroneamente é chamada de 'cruz de malta'], o nome da instituição, o símbolo do Almirante, tudo faz menção às Grandes Navegações Portuguesas. O apelido depreciativo usado contra os vascaínos é ''bacalhau".

O pioneirismo quanto à presença de negros e mulatos nos times do Rio de Janeiro pertence ao time de operários do Bangu Atlético Clube, equipe da Zona Oeste suburbana da Gloriosa Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. O time de Francisco Carregal.


E antes que os vascaínos lembrem daquilo que eles convencionaram chamar de "Resposta Histórica" [a carta do Presidente do Vasco à AMEA, em 1924], convém lembrar que ela não era um documento contra o racismo. Não existe nada contra o racismo neste documento.






E não sou o único afirmando isto. Ricardo Pinto, doutor em História Comparada pela UFRJ, faz o mesmo no artigo abaixo.

[https://www.netvasco.com.br/n/277038/fundador-do-centro-de-memoria-do-vasco-diz-em-artigo-que-nenhum-grande-clube-do-rio-lutou-contra-o-racismo-no-futebol]


Seria uma conspiração? rs...Não, são tendências no interior da pesquisa histórica.


"Inicialmente, devo reforçar que a famosa carta de 1924, na verdade um ofício enviado a AMEA[4] e publicado pela imprensa, apresentada também por Mario Filho, em seu livro, ficou conhecida como grande marco da luta contra o racismo no futebol, foi um evento importante para o cenário futebolístico do Rio de Janeiro. No entanto, a partir das pesquisas, verificamos que o fato não apresentou nenhuma ressonância fora das fronteiras do Estado do Rio e em nada tem a ver com a luta contra o racismo, seja no esporte ou fora dele."

Claro que gera muita paixão por mexer com a memória construída em torno de um clube de massas. Mas é necessário reafirmar o pioneiro do Bangu contra a pseudo-narrativa consolidada em torno do Vasco da Gama.


Isso é conhecimento banal dentro dos debates acadêmicos sobre História Social e Cultural do futebol carioca. Citei a posição de Ricardo Pinto, professor de História Comparada da UFRJ. Mas o marco recente mais notável neste tema é Antônio Jorge Soares, em artigo publicado em 2001.


Em "O Racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma história de identidade" o autor afirma, dentre outras coisas:

1) A visão de que o Vasco saiu da AMEA em 1924 por causa de um conflito contra o racismo é uma TRADIÇÃO INVENTADA por Mário Filho e outros, e que é reproduzida acriticamente por torcedores, imprensa e até por pesquisadores. É uma história de construção de identidade, não necessariamente a explicação correta para o que aconteceu no período;

2) A pesquisa demonstra que o debate em 1923/24 era sobre o problema do amadorismo/profissionalismo, que traz à tona questões de ordem classista e distinções sociais, mas não necessariamente raciais.


Quem estiver interessado neste debate acadêmico especifico pode recorrer à leitura do artigo. Eu separei imagens de alguns trechos. E também faço as seguintes citações:




"Observe-se que não são poucos os textos acadêmicos que reproduzem a “história do Vasco” como o clube que rompeu com o racismo no futebol. Tais artigos utilizam exclusivamente as interpretações contidas no livro de Mário Rodrigues Filho (1947, 1964), “O negro no futebol brasileiro” Esse livro se tomou “uma fonte inesgotável de dados”, que mais têm servido à construção de histórias de identidade do que auxiliado o processo de levantamento de novas fontes e de elaborações mais rigorosas sobre a dinâmica da instituição e popularização do futebol no Brasil (Soares, 1998, 1999). [...]Observe-se que, para ser justificada, a história do Vasco como o clube que rompeu com o racismo necessita apresentar indícios sobre as barreiras raciais existentes no futebol da época. Não se pode justificar tal história pelo simples fato do Vasco ter formado em 1923 uma equipe com negros, mulatos e brancos, por vários motivos: a) se existisse segregação, diretamente relacionada à questão racial, o Vasco não teria participado com essa equipe no Campeonato de 1923; b) o Vasco não foi o primeiro clube de futebol a ter negros e mulatos em suas equipes de futebol (Rodrigues Filho, 1964; Soares, 1998); c) na década de 20, negros e mulatos, ainda que poucos, já habitavam outros espaços sociais mais valorizados do que o esporte [...]Por exemplo, Mattos (1997, p. 87) afirma um processo de segregação explícita, no primeiro plano de sua narrativa, sem apresentar nenhum novo indício: a AMEA teria exigido que o Vasco retirasse os jogadores negros do time; depois atenua sua afirmação, dizendo que a AMEA “não proibiu que os negros fossem escalados nos times, mas criou uma série de regras a serem obedecidas pelos clubes” Entre tais regras figurava a de que os times só poderiam ser formados por trabalhadores que não exercessem funções subalternas e por estudantes. Para Mattos e os autores supracitados, o “ethos” do amadorismo funciona apenas com elemento dissimulador do racismo e da segregação. Devemos destacar que as atuais narrativas sobre esses eventos confundem, não distinguem ou não apresentam nuanças sobre os conceitos de: racismo, segregação, preconceito racial e distinção social. Assim, a repetição dessa história ou quase história, sem dados empíricos e sem fineza conceituai, valida e legitima a versão a ponto de transformá-la em um mito. "


Bom, eis aí o estado da questão.


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