quinta-feira, 21 de maio de 2015

A PÁTRIA EDUCADORA — PARTE I: O PROJETO DE BRASIL DE MANGABEIRA UNGER

Originalmente publicado no blog Brasil Multipolar.


A presidente Dilma Rousseff pediu ao professor Roberto Mangabeira Unger que elaborasse um novo projeto para a educação brasileira. Missão dada, missão cumprida, foi publicado no início desse mês o documento ”Pátria Educadora: A qualificação do ensino básico como obra de construção nacional” [1], que delineia os principais objetivos e medidas a serem tomados para mudar radicalmente o panorama da rede pública de ensino. A proposta se divide em três pontos principais, o primeiro e mais fundamental deles, aquele que vai orientar todos os demais, o estabelecimento de um ideário, de um projeto de nação que proporcione um norte para as políticas públicas.
Mangabeira Unger é um intelectual poderoso e original. Embora não faça reivindicações de pertencimento ideológico, seu pensamento se dedica a encontrar meios de impulsionar a modernidade progressista através da democratização cada vez maior da economia e da política das sociedades ocidentais. Crítico do neoliberalismo e das medidas a ele vinculadas, nem por isso se acomodou com as alternativas em que desembocaram os críticos da sociedade capitalista. Tanto a esquerda social-liberal quanto a social-democrata se tornaram para ele estéreis, principalmente quando se trata de abordar e intervir na realidade nacional [2]. A ideologia que moveria os principais partidos e movimentos políticos brasileiros teria por escopo a construção de uma impossível ‘Suécia tropical’, a importação de um modelo alienígena incapaz de dar conta da energia do país.
Essa energia vital pátria teria sido quase sempre reprimida e desperdiçada por causa de elites e instituições que não lhe proporcionariam meios de expressão. Seria esse o principal drama da história brasileira, o cerne de sua ”frustração democrática”. Durante algum tempo, Mangabeira Unger viu na classe média tradicional o agente sócio-cultural capaz de romper esse estado perene de malogro. Teria sido ela a principal responsável pelo avanço da modernidade no país, ainda que por vezes tenha se aliado a uma plutocracia deletéria e ao colonialismo. Até o início da década passada, suas esperanças de mudança estavam na inclusão dessa classe média nos sistemas públicos de educação e saúde, a fim de que ela se visse instada a exigir uma crescente democratização e qualificação das instituições, que, talvez, despertasse a mobilização necessária à reconstrução da nação. Mas as expectativas de Unger nas possibilidades desse grupo social se modificaram desde então, ele passou a enxergá-lo como esgotado e por demais permeado pelas tendências eurocêntricas que teriam sido sempre uma de suas maiores seduções e desvios. [3]
Mangabeira pensa discernir uma nova expressão histórica da energia fundamental brasileira, um novo agente sócio-cultural: uma pequena burguesia emergente, setor das camadas populares que é portador de uma nova mentalidade e ethos, marcado pelo empreendedorismo, a iniciativa individual, a desconfiança da política, e a construção de redes de auto-ajuda [4]; e que se expressa na vida social por uma multiplicidade de pequenos e micro-negócios que pendem entre a economia formal e a informal e uma nova religiosidade — ligada à expansão das igrejas evangélicas, a adesão a elementos da teologia da prosperidade, e ao sentimentalismo carismático que vem mudando a face do catolicismo nos principais centros urbanos [5]. Segundo Unger, esse novo agente sócio-cultural já é o centro do imaginário popular; embora proporcionalmente pequeno na população, a maior parte das massas já almejaria pertencer a esse setor dinâmico da sociedade.
O projeto de reconstrução brasileira deveria ser pensado em torno dessa nova classe média empreendedora, vanguarda da política e do imaginário do povo, manifestação atual de sua vitalidade. As instituições seriam reformuladas para que essa pequena burguesia pudesse realizar todo o seu potencial, pondo um fim em nossa ”frustração democrática”. Essa reformulação passaria pelo ‘Produtivismo Includente’, uma transformação da base econômica do país, que passaria a ter o foco em uma miríade de pequenas empresas que, com acesso ao crédito e à tecnologia de ponta, se converteriam na fundação do novo ciclo de desenvolvimento nacional. O escopo é democratizar a economia de mercado, de modo a incluir a população brasileira pelo lado da oferta, da produção. [6]
É dentro dessas linhas que Unger esboça seu plano para o sistema de educação, encarado com um dos meios de capacitar a classe média emergente para seu novo papel econômico e social. O discurso escolhido para expor o diagnóstico e mudança necessária ao sistema se vincula à  ‘Escola Nova’, teoria da educação cujo maior expoente no país foi Anísio Teixeira, homenageado no texto com a proposta de uma rede de escolas federais que levaria seu nome. A escolha da retórica ‘escolanovista’ não é casual, já que suas origens e pressupostos teóricos nos levam mais uma vez ao cenário liberal-progressista norte-americano do início do século XX e às idéias do filósofo John Dewey, que não escondia o conteúdo político de suas propostas pedagógicas e da psicologia que lhe serviam de base: a democratização da sociedade de trabalho americana por meio da construção de um capitalismo inclusivo e de um cidadão com disposições democráticas. [7]
Antes de analisar de forma mais pormenorizada as iniciativas defendidas pelo documento para adequar a educação aos objetivos acima definidos, convém refletir no ideário e no projeto de país que vem sendo exposto por Mangabeira Unger — e que, diz ele, seria a única alternativa à disposição dentro do debate político brasileiro . O professor de Harvard pode estar correto quanto ao caráter único de seu projeto no atual cenário nacional, mas isso não o torna por si só desejável.
O professor aposta em um agente sócio-cultural que possui traços mais antigos do que ele dá a entender. O brasileiro pobre das grandes cidades é intrinsecamente empreendedor; ele tem de se virar desde a época do Império, quando ”escravos de ganho” sobreviviam nas cidades brasileiras sob os olhares nem tão próximos nem tão distantes de seus senhores. Isso não refuta as considerações de Unger, já que esse pobre urbano passou realmente por uma transformação nas últimas décadas, tornando-se exposto às influências da sociedade capitalista globalizada e da cultura média americana. [8] Nesse sentido, é de fato um elemento novo na paisagem social brasileira e cuja existência é inquestionável.
Coisa diferente é admitir que esse fenômeno se encontre no centro do imaginário brasileiro e que deve ser o fim para o qual todo o povo deve tender e no qual tem de se transformar. A emergência desse novo tipo sócio-cultural é muito mais forte nas periferias das grandes metrópoles, de modo que se trata de um recorte arbitrário considerá-lo como eixo em torno do qual giram as aspirações da população. Pior ainda tê-lo como manifestação mais autêntica da energia vital e fundamental do país. Para que isso possa ser levado a sério, é necessário antes que conheçamos essa energia de base, que, segundo Unger, foi sempre frustrada em sua expressão institucional e nacional. Sua análise passa ao largo desse problema, sua perspectiva se move dentro de parâmetros modernistas e progressistas que não vislumbram nenhum dinamismo que não o da contínua integração brasileira ao fluxo sócio-político-econômico que construiu o Ocidente contemporâneo. Unger critica o papel conservador e passivo que o país assume nesse fluxo, mas não questiona seus fundamentos. [9]
Só uma ampla análise cultural e filosófica da identidade brasileira permitiria que identificássemos quais são as características da energia de base do povo brasileiro. O Brasil talvez tenha menos a ver com os Estados Unidos da América do que pensa o professor Unger. Os agentes sócio-culturais que ele vislumbra como pioneiros e impulsionadores da modernidade no país podem ser justamente aqueles que mais nos afastam de nossas aspirações algo inconscientes e mais sufocam nosso verdadeiro dinamismo.
Unger critica a classe média tradicional por seu eurocentrismo, o sistema político partidário pátrio por sua ideologia social democrata, e nossas formas institucionais por sua importação de parâmetros estrangeiros pouco adequados a nossas reais necessidades. Mas não problematiza as próprias metas e horizontes de sua visão; a razão da frustração democrática brasileira pode estar na insistência de seus intelectuais e elites na busca por integrar o país a um Ocidente que não reconhece o Brasil como tal e com o qual sua população pouco tem a ver.
O sistema educacional brasileiro precisa ser pensado nesse patamar, como meio de realizar um encontro do país consigo, e não a partir de um projeto nacional economicista que nos daria mais do mesmo e cada vez menos de nós. Não basta ser potência, temos de ser Brasil. E o ideário e projeto nacional com que Unger pretende orientar a educação brasileira é, com perdão do trocadilho, por demais subdesenvolvido nesse ponto. [10]
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[2]  “O que prevalece nos dois lados do Atlântico, na cabeça das elites mais iluminadas, é o projecto de fazer uma espécie de síntese entre a protecção social dos europeus e a flexibilidade económica dos americanos. Uma flexibilização da social-democracia tradicional. E portanto é o mundo imaginativo em que todo o mundo finge ser social-democrata ou social-liberal. O que é o social? Social é o açúcar, o açúcar com que se pretende dourar a pílula do modelo económico.” A origem disso, adianta, está no compromisso histórico da social-democracia, tomado em meados do século passado, que levou “ao abandono de qualquer esforço de reinventar a organização institucional da produção e do poder, e em troca disso permitir ao Estado atenuar as desigualdades através de políticas compensatórias, manejar a economia por políticas contracíclicas keynesianas e assegurar o lucro das empresas”. Mantendo-se este compromisso, não há solução possível para “nenhum dos problemas fundamentais das sociedades contemporâneas… Temos de reabrir os termos desse compromisso, inovar nas instituições que organizam a economia de mercado e a democracia política”. [O Profeta da Nova Esquerda]
[3] Mangabeira Unger descreve a classe média tradicional como branca — embora implicitamente mestiça –, eurocêntrica, formada por funcionários públicos e profissionais, liberais ou não, da sociedade de trabalho.
[4] ”Hoje a vitalidade brasileira está encarnada sobretudo no surgimento de uma segunda classe média. A classe média tradicional sempre foi o principal agente político na história do país. Tudo que de mais importante ocorreu em nossa história aconteceu nos momentos em que essa classe média tradicional se desgarrou da plutocracia de orientação colonial e passou a protagonizar uma outra ideia para o futuro do Brasil em nome de todos. Assim foi com a abolição, o movimento republicano, a aliança liberal, o desenvolvimentismo dos anos 1950 e a redemocratização. Essa classe média tradicional está fragilizada, econômica e espiritualmente. Espiritualmente porque ameaça assimilar dos países ricos do Atlântico Norte a cultura do desencanto com a política. Não somos a Suíça ou a Dinamarca. Em nosso país, tudo continua a depender do encaminhamento coletivo de soluções coletivas para problemas coletivos. Precisamos desesperadamente de política. Surge ao lado da classe média tradicional uma segunda classe média, composta de milhões de brasileiros vindos de baixo. Que lutam para abrir ou para manter novos empreendimentos. Que estudam à noite, que se filiam a novas associações e igrejas, e que inauguram uma cultura de auto-ajuda e de iniciativa. Esta outra classe média já está no comando do imaginário popular. É o horizonte que a maioria do nosso povo quer seguir.” Um adendo: a razão porque Unger aposta que a nova pequena burguesia brasileira seria uma solução para o desencantamento com a política — um problema grave enfrentado por todos os sistemas liberais no Ocidente — ainda não está clara; ela parece repousar em uma vaga esperança de associação comunitária que se vislumbra na sociabilidade religiosa das novas igrejas. Há um tanto de ingenuidade aqui, já que o próprio Unger admite que essa nova camada popular vem se vinculado politicamente ao projeto econômico social consumista levado adiante pelos governos do PT. Talvez daí as críticas de Mangabeira Unger a esse aspecto dos governos Lula e Dilma, porque frustra algumas de suas esperanças nesse novo segmento social [Alternativa Nacional]
[5] ‘‘A vida política do povo brasileiro é pobre, mas sua vida religiosa é rica. Trava-se hoje entre nós conflito desconhecido de formas de fé. Surge nova cultura de auto-ajuda e de iniciativa. Seu maior protagonista social é uma classe média de emergentes, que desenvolve, longe da política, exemplos de vida que representam a antítese daquela mistura de subjugação e de doçura — aquela sentimentalização das trocas desiguais — que marcou a sociedade brasileira tradicional. Cultuam o esforço e a responsabilidade individuais ao mesmo tempo que revelam pendor para as práticas de associação. Abraçam uma fé que dispensa intermediários entre Deus e a humanidade e que insiste no sacerdócio de todos. Procuram uma teologia de sacrifício e de libertação que não se esgote em sectarismo de esquerda. Avançam tanto por obra do movimento evangélico quanto por meio de de uma tentativa, ainda sem voz ou doutrina, para reconstruir o catolicismo brasileiro.” [Religião e Política]
[6] Um exemplo da democratização da economia de mercado seria a união entre bancos regionais e pequenos produtores rurais nos Estados Unidos do fim do século XIX, uma forma de ”concorrência cooperativa” — expressão que ele usa para a relação entre as pequenas empresas no ‘Produtivismo Includente’ — que Unger gostaria de ver aplicada ao Brasil: ‘‘Exemplo histórico mostra o quanto está em jogo. Além da lua a respeito da escravidão, os dois grandes conflitos de economia política na primeira metade do século 19 nos Estados Unidos versaram agricultura e finanças. Os americanos rejeitaram o caminho da concentração agrária, que a Inglaterra tinha vivido e que Karl Marx sustentaria ser inerente ao capitalismo. Distribuíram terras. Organizaram coordenação estratégica entre os governos e os produtores rurais de padrão familiar, com políticas de garantia de preço e extensionismo tecnológica. E estimularam entre esses produtores práticas que hoje chamaríamos de concorrência cooperativa: cooperando ao mesmo tempo que competiam entre si, ganhavam acesso a economias de escala. O resultado foi, por muito tempo, a agricultura mais eficiente do mundo. Nas finanças, destruíram e proibiram os bancos nacionais, substituindo por instituições locais de crédito. Com isso, construíram o sistema mais descentralizado de crédito para o produtor que havia existido, até aquele momento, em qualquer lugar.” [Aprofundamento do Mercado pelo Estado]
[7] No período entre o fim do século XIX e o início do século XX, os Estados Unidos atravessaram a chamada ‘Progressive Era‘, um conjunto de movimentos no campo econômico, político e social que criticava o suposto desvio que a sociedade de trabalho americana passava após a Guerra de Secessão, com a hegemonia de grandes oligopólios e de Robber Barons, ausência de proteção trabalhista adequada, falta de integração dos ex-escravos, concentração de renda etc. A sociedade americana se tornava majoritariamente urbana e vivia uma onda de imigração que mudava aspectos de sua composição cultural, com a chegada maciça de irlandeses, poloneses e alemães. Esse pano de fundo permite uma melhor compreensão do alcance político das novas teoria psicológica e pedagógica de John Dewey.
[8] Os novos grupos emergentes das camadas médias populares das metrópoles brasileiras tem de ser alvo de intensa pesquisa sociológica e antropológica, mas é fácil notar que a descrição realizada por Mangabeira Unger não passa da transposição de certa sociabilidade e mentalidade evangélica americana, com uma mistura de traços individualistas e comunitaristas, para a periferia brasileira. Não é surpreendente, pois a classe média tradicional, segundo admite o próprio Mangabeira Unger, também havia sido modelada por traços estrangeiros, no caso a Europa.
[9] Unger critica o aprisionamento do Ocidente em uma dicotomia ideológica marcada pelo liberalismo e pela social democracia porque seria um obstáculo ao aprofundamento da revolução modernista e progressista, não porque discorde dessa última. Da mesma forma, a busca por uma política externa brasileira independente não escapa de uma análise economicista da qual fica ausente ou é minimizada qualquer análise mais ampla sobre os aspectos culturais das disputas e conflitos no interior da ordem global.
[10] Daí não se conclui que as idéias de Unger sejam todas elas descartáveis. Pelo contrário, tamanho é o seu vigor intelectual que seus diagnósticos, ainda que intencionalmente apegados aos limites estreitos aqui criticados, portam também vários pontos positivos. Alguns deles serão discutidos nos próximos textos dedicados ao documento ”Pátria Educadora”, mas convém adiantar que a crítica ao reducionismo do projeto educacional de Unger não significa discordância quanto a necessidade de uma maior distribuição e acesso aos meios de produção no seio da sociedade.

sábado, 9 de maio de 2015

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico III


Continuação do ''Tratado sobre a Práxis''. Evágrio trata agora das paixões da acídia, vanglória e orgulho.





Contra os Oito Logismoi [pensamentos apaixonados]: Continuação




27 Quando caímos nas mãos do demônio da acídia, devemos então, entre lágrimas, dividir a alma em duas partes, uma que consola e a outra que é consolada, semeando boas esperanças em nós mesmos e entoando esse encantamento do Santo Davi: ''Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: Ele é minha salvação e meu Deus.’' [Sl 41, 6.] [1]

28 Não se deve abandonar a cela no momento das tentações, tecendo pretextos supostamente razoáveis, mas antes deve-se sentar dentro da cela e suportar paciente e corajosamente todos aqueles [demônios] que vem para cima de si, e, mais especialmente, o demônio da acídia, que, sendo o mais pesado de todos, seguramente testa extremamente a alma. A esquiva de tais lutas ensina a mente a ser inábil, covarde e fugitiva. [2]


29 Nosso maior e mais santo mestre [na vida prática] [3] costumava dizer: ''Assim, o monge deve se preparar como alguém que vai morrer amanhã; e então, mais uma vez, usar o corpo como um companheiro [do monge] com quem estará junto por muitos anos. Aquela [prática] corta os pensamentos da acídia e torna o monge mais zeloso, enquanto esta última guarda o corpo inteiro e em igual medida preserva a continência para com ele''. [4]

30 É difícil escapar do pensamento da vanglória. Pois aquilo que você faz para destruí-lo se torna para você o início de um outro [pensamento de vanglória]. Os demônios não se opõe a cada um de nossos retos pensamentos, mas alguns dele sofrem oposição também daqueles vícios com o qual temos nos conformado. [5]

31 Vi o demônio da vanglória sendo atormentado por todos os demais demônios e permanecendo de pé, insolente, sobre o cadáver dos demônios que o perseguiam, e manifestando ao monge a grandeza de suas [do monge] virtudes. [6]

32 Aquele que alcançou a gnose e colheu o prazer que dela vem não será mais persuadido pelo demônio da vanglória ainda que lhe sejam apresentados todos os prazeres do mundo -- pois o que o demônio pode apresentar que seja maior do que a contemplação espiritual? [7] Na medida em que não temos o gosto da gnose, trabalhemos na vida prática de boa vontade, mostrando a Deus que nosso objetivo em tudo é a busca de Sua [de Deus] gnose. [8]



33  Traga à recordação seu modo anterior de vida e suas falhas antigas e como você, que era apaixonado, passou, por Misericórdia de Cristo, para a impassibilidade e como mais uma vez deixou o mundo que havia te humilhado em muitas coisas. E também avalie isso para mim: quem é que te guarda no deserto e quem expulsa os demônios que rangem os dentes para você? Pois, por um lado, estes pensamentos trabalham a humildade; e, por outro lado, eles não admitem o demônio do orgulho.

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[1] O conselho é dirigido para aqueles que estão sendo tentados pelos demônios e não apenas por seus próprios hábitos apaixonados. Essa distinção é exposta por Evágrio mais adiante. Os próximos parágrafos terão por foco o logismoi da acídia. A salmodia aqui citada não é exatamente a oração incessante, embora alguns vejam na passagem sinais disso.

[2] Segundo o comentário de um monge athonita, ''podemos discernir a fisiognomonia do asceta realizado. Ele possui uma perseverança adquirida na batalha; possui um auto-controle que lhe permitir direcionar seus pensamentos de acordo com as boas práticas ascéticas e contra os demônios que o atacam; possui um auto-controle que lhe impede de tolerar a paixão da ira contra seus irmãos; ele possui uma amabilidade sincera que o torna atrativo aos demais. Um homem difícil de ser derrubado pelos demônios. Nenhuma tolice aqui. Nenhuma auto-indulgência. Nenhum sentimentalismo. O homem escolheu a estrada -- ascetismo -- com conhecimento pleno dos perigos, e ele viaja com amor como um guerreiro que busca pelo Deus de Abraão, Isaque e Jacó.''
[3] São Macário de Alexandria.
[4] O asceta deve viver com a contemplação da morte, de modo a espantar os pensamentos da acídia; mas deve possuir o discernimento necessário na realização do ascetismo para não comprometer seu corpo em vãs e imoderadas mortificações.
[5] Evágrio passa a tratar de um novo logismoi nesse ponto, a vanglória. Ele aproveita para notar que nem toda tentação tem por origem o ataque de um demônio, ou seja, de uma inteligência angélica decaída. A origem dos pensamentos apaixonados podem ser hábitos mentais arraigados e com os quais nos deixamos modelar ao longo de nossas vidas.
[6] Passagem muito importante, pois o demônio da vanglória ataca aqueles que possuem realizações e conquistas espirituais. Essas realizações, adquiridas pela vitória sobre outras paixões, podem não ter sido objeto da luta de uma vontade direcionada para Deus e sim para a própria auto-glorificação.
[7] Evágrio fala do 'prazer espiritual' que advém da intuição direta dos logoi dos entes visíveis, dos anjos e das energias divinas, resultado da purificação das paixões e da iluminação do Nous, que é implicitamente contrastado com os prazeres e satisfações oriundos das sensações e, de forma mais ampla, das paixões decaídas.
[8] Aquele que ainda não possui a experiência da gnose deve se concentrar na luta espiritual pela purificação das paixões, a vida prática, mas de boa vontade, tendo por objetivo o amor a Deus, de modo a não ser enganado pela vanglória. O asceta deve purificar suas intenções, confrontando-as continuamente em meio à vida de oração.

segunda-feira, 23 de março de 2015

A hora da onça beber água, ou: O momento de Novak Djokovic

A rivalidade entre Roger Federer e Novak Djokovic se tornou a segunda maior da História em números de jogos disputados na Open Era do tênis. Domingo passado os dois se enfrentaram pela 38° vez na final do Master de Indian Wells. O confronto só perde em frequência para o embate entre o sérvio e Rafael Nadal, que, até aqui, colidiram em 42 oportunidades. Mas não é sobre a história dessas rivalidades que pretendo comentar nessa postagem, e sim sobre o futuro dourado de Djokovic.



Djokovic levanta o seu quarto troféu em Indian Wells, o maior e mais tradicional torneio da Master Series

Nole se encontra no auge de sua forma física, técnica e mental, naquele ponto mágico em que a destreza se encontra com a experiência. Seus principais adversários, por sua vez, declinam a olhos vistos e caminham para a aposentadoria [1]. Ao conquistar o Australian Open no início dessa temporada, Novak chegou ao seu oitavo major, o que o coloca no patamar de lendas do esporte, como Ivan Lendl, André Agassi e Jimmy Connors. Relativamente jovem, seus números podem crescer bastante nos próximos dois anos, que serão cruciais para a definição de seu peso definitivo nos arquivos do esporte dos reis. 


O sérvio já possui algumas marcas notáveis. Possui quatro Master Cup, três delas seguidas [2]. Já terminou três temporadas como número um do mundo [3]. É o sexto tenista com maior número de semanas na liderança do ranking da ATP [4]. Em Indian Wells conquistou seu vigésimo primeiro master, empatando com Lendl no número desses torneios e ficando a apenas seis do recorde atual de Nadal [5]. Levantou seu 50° torneio de nível ATP. Fora alguma contusão, o atual número 1 do mundo tem tudo para continuar galgando novos patamares na íngreme montanha da glória.


A partida contra Federer domingo também diz muito sobre o jogo de Djokovic. Em primeiro lugar, ele é capaz de um nível de defesa tão mítico quanto o de Rafa Nadal. Ainda que não seja forte emocionalmente como o espanhol, encara o jogo com o mesmo olhar olhar estratégico e disciplina tática. Percebeu claramente que o nó górdio de suas derrotas recentes para Roger em Shanghai e Dubai foi a tática de constantes subidas à rede adotada pelo suíço. Ele sabe que a nova versão do Federer tem pressa, que parte para o abafa. Novak se concentrou então no que tem de melhor e, sabendo que a superfície lenta das quadras da Califórnia agora o favoreciam, deu um show de devoluções que manteve Roger sempre sob pressão e preso à linha de base. Obrigando seu rival a trocar bolas do fundo da quadra, mostrou sua já mítica consistência e capacidade de mudar a direção da bola, alternando golpes magistrais tanto de forehand quanto de backhand


Novak possui pontos vulneráveis em seu jogo. Ele não é completo, diferente do que gosta de alardear um famoso comentarista de tênis do Sportv. Seu slice é medíocre. Quando exigido em alto nível, falha constantemente na rede. E seu smash é bastante inseguro [6]. A ausência desses golpes dificulta sua performance em quadras mais rápidas, principalmente na grama, quando a máquina sérvia perde a aura de invencibilidade [7]. Ele tem também outras dificuldades, que Roger explorou -- embora menos do que deveria -- no segundo set: o suíço abaixava a bola no meio da quadra, com slices no revés de Nole, conquistando assim muitos pontos preciosos. 

As comparações com Rafa Nadal estão apenas no começo

Mas, na velocidade média das quadras do atual circuito, não se pode dizer que tais detalhes sejam suficientes para ameaçar sua posição no ranking ou suas vitórias sucessivas, pelo menos não em um futuro próximo. Se aproveitar bem o momento que tem à sua disposição, Djokovic pode surpreender a muitos que chegaram a acreditar que Nadal seria o centro em torno do qual giraria a peludinha nessa década. Nole, se mantiver o foco, pode vir a ter um nome maior na história do tênis do que o espanhol [8], e pode dar, no fim das contas, razão aos seus pais, que o proclamaram, bem antes do tempo adequado, o ''sucessor de Federer''. Essa história ainda a ser escrita nunca esteve tanto nas mãos do próprio Djokovic.


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[1] Andy Murray vem enfrentando dificuldades depois da operação nas costas no fim de 2013 e do fim de sua parceria com Ivan Lendl. Seu jogo regrediu em muitos aspectos nesse período e ele claramente não tem o fôlego necessário para enfrentar o desafio fisico colocado por Djokovic por mais do que três sets. Rafa Nadal enfrenta o ocaso de sua fortaleza física, em torno da qual construiu sua gloriosa carreira. Sem esse diferencial, ele perdeu inclusive a clara superioridade que possuía diante de Novak no saibro. O último castelo a ser conquistado é a Phillip Chartrier, no qual a mística espanhola vem resistindo tenazmente, embora não se saiba até quando. Tecnica e estrategicamente, o espanhol não oferece muita resistência para o sérvio em outras superfícies. Roger Federer é o tenista cujo jogo mais incomoda Novak atualmente, e o único que se torna favorito contra ele em superfícies mais rápidas. Mas, na média do atual circuito, tem muita dificuldade de enfrentar a consistência de fundo de quadra e o ritmo de jogo imposto por Nole. Sua idade também o compromete em Grand Slams, torneios em que as partidas são em melhor de cinco sets, o que exige uma capacidade e recuperação física muito mais acentuada.

[2] O recordista nessa competição -- que é a mais importante da ATP e a de maior prestígio no tênis depois dos Grand Slams -- é Roger Federer, que possui seis conquistas, uma a mais do que Lendl e Sampras, ambos cinco vezes campeões do torneio.

[3] O americano Pete Sampras terminou seis temporadas como o número um do mundo, uma a mais do que Roger Federer, que conseguiu o feito por cinco vezes.

[4] O recordista absoluto, com mais de trezentas semanas na liderança, é Roger Federer. Com mais de duzentas e cinquenta semanas estão Pete Sampras, Ivan Lendl e Jimmy Connors. John McEnroe possui pouco mais de cento e setenta semanas, e pode ser ultrapassado ainda esse ano por Novak Djokovic.

[5] Nadal possui 27 masters, seguido dos 23 de Federer.

[6] Tanto o slice e o voleio de Djokovic melhoraram muito nos últimos anos. O sérvio sentiu necessidade de acrescentar esses golpes em seu repertório após ter perdido a liderança do ranking para Rafa Nadal em 2013. No entanto, ele continua bem abaixo do nível top nesses quesitos. Recentemente tenho reparado que Nole tem preferido retirar a força do seu smash, executando-o em velocidade mais baixa para diminuir a probabilidade de erro, apostando no quique alto da bola para ganhar o ponto.

[7] Seria, no entanto, uma inverdade dizer que Djokovic é um jogador de quadras lentas e média-lentas. O sérvio possui bom saque e um grande forehand, sabe ser bem agressivo também, e possui excelente desempenho em superfícies mais velozes. 

[8] A técnica de Djokovic é seguramente superior do que a de Rafa Nadal, que, em sua própria biografia, já confessou que o sérvio é um jogador mais completo. Ele também ultrapassou Rafa em alguns números muito importantes, como o de semanas como número um da ATP. Caminha também para igualar ou, quem sabe, inverter a vantagem que o espanhol possui no head to head. Permanecendo na liderança do ranking até o fim do ano, cenário mais provável, vai superar Nadal também em temporadas como número 1. Se diminuir de modo significativo a dianteira que Nadal possui no número de masters e majors, Nole terá composto um quadro muito favorável em uma comparação com aquele que já proclamou ser ''seu maior rival''. 


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico II

Continuação da tradução do ''Tratado sobre a Práxis'', iniciada na postagem anterior. Nesse trecho, Evágrio Pôntico começa a ensinar sobre o tratamento às diferentes paixões apresentadas nos tópicos anteriores.






Contra os Oito Logismoi [pensamentos apaixonados]



15 A leitura,  a vigília e a oração interrompem o Nous errante (1). A fome, o trabalho e a vida eremítica secam [murcham] o desejo inflamado (2). A salmodia, a paciência e a misericórdia colocam fim ao temperamento excitado (3). -- E tais práticas em períodos e medidas apropriadas. Pois o excessivo e inapropriado são apenas para períodos curtos; e aquelas [práticas] que duram mais que um curto período são mais prejudiciais do que úteis.


16 Sempre que a alma aspirar por diversos alimentos, deixe-a restrita a pão e água, de modo que se torne grata até por esse pequeno bocado. Pois é a saciedade que leva ao desejo de muitos alimentos; a fome, no entanto, vê como benção sua provisão de pão.


17 A privação de água contribui muito para a castidade. Que os trezentos israelitas que acompanhavam Gideão e que conquistaram Midiã te convençam [Juízes 7:5 a 7].


18 Assim como a ocorrência simultânea da vida e da morte de alguém não se encontra entre as coisas possíveis, assim também a coexistência em uma pessoa da caridade (4) e da avareza é impossível. Pois a caridade é não somente destruidora do dinheiro mas até mesmo de nossa própria vida temporal.


19 Aquele que se afasta de todos os prazeres mundanos é uma torre inacessível ao demônio da tristeza. Pois a tristeza é a privação do prazer presente ou expectado (5). É impossível repelir esse inimigo quando se tem apego a algo mundano. Porque ele [o demônio] certamente estabelece a armadilha e opera a tristeza onde quer que veja inclinação [ao apego].





20 A Ira e o ódio fazem o temperamento (6) crescer (7): os atos de misericórdia e a mansidão diminuem até o temperamento já existente (8).


21''Não deixe o sol se pôr sobre sua ira'' [Ef 4:26] para que os demônios não aterrorizem a alma durante a noite, acovardando a mente para a guerra do dia seguinte. Pois as temíveis aparições [demoníacas] surgem naturalmente dos distúrbios do temperamento (9); não há nada que torne mais o Nous um desertor do que o temperamento perturbado.


22 Quando, conseguindo um pretexto, a parte irascível de nossa alma é perturbada fortemente, então os demônios sugestionam que é bom que nos tornemos eremitas (10), de modo que não solucionemos as causas de nossa tristeza e nos livremos da perturbação. Quando a parte erótica [da alma] é fortemente aquecida, então nos tornamos de novo amantes de nosso semelhante (11), nos considerando duros e selvagens (12), para que, uma vez que desejamos corpos, encontremos corpos. Não nos deixemos persuadir, mas façamos o oposto [do sugerido] (13). 


23 Não se entregue ao pensamento da ira, combatendo em sua imaginação aquele que te entristeceu; nem tampouco ao pensamento da luxúria, imaginando prazeres ainda maiores. Pois o primeiro [pensamento] obscurece a alma e o segundo inflama a paixão (14); ambos, no entanto, tornam o Nous imundo e incapaz de ofertar a Deus uma oração pura (15), fazendo com que se caia imediatamente nas mãos do demônio da acídia, a partir do qual todos os demais [demônios] surgem para se aproveitar dessas condições e despedaçar a alma como cães selvagem diante de um cervo.




24 É da natureza do temperamento lutar contra os demônios ou lutar tendo em vista algum prazer (16). Assim, os anjos nos sugerem os prazeres espirituais e suas bençãos, nos exortando a voltar nosso temperamento contra os demônios. Os demônios, por sua vez, nos atraem aos prazeres mundanos, pressionando o temperamento para que, contra a natureza,  lute contra os homens, de modo que o Nous, obscurecido e decaído da gnose, traia as virtudes (17).


25 Cuidado para nunca deixar um irmão ir embora depois de lhe ter provocado a ira, ou você não será capaz em vida de evitar o demônio da tristeza durante a oração: ele se tornará sempre para você um espinho (18).


26 As doações minoram o rancor. Que Jacó te convença, ele que obteve para si as graças de Esaú com presentes. Esaú que havia saído para encontrá-lo com quatrocentos homens [Gen 32:7]. Mas que nós, que somos pobres, atendamos essa necessidade com uma refeição (19).



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(1) Evágrio usa uma divisão tripartite da alma: primeiro cita as práticas necessárias à terapia do Nous. A leitura a que ele se refere é a das Sagradas Escrituras, e em voz alta, tal como recomendado por ele em outras obras. A vigília não implica necessariamente abandono completo do sono, mas no hábito regular de se levantar à noite para a realização de orações, prostrações e meditações. Evágrio não faz referência, em suas obras, à oração incessante por meio da repetição de passagens dos salmos -- embora seja seguro que conhecesse essa prática, que é mencionada por discípulos seus. A oração aqui tem o caráter de petição ou de agradecimento.
(2) Práticas voltadas para a cura da parte erótica, ou concupiscível, da alma. A fome, ou jejum, inclui a abstenção de água, conforme esclarecido mais à frente, quando se menciona especificamente a fornicação. O trabalho diz respeito ao labor manual e a longas caminhadas. A vida eremítica ao hábito de buscar a solidão. O desejo inflamado citado pelo autor tem um conteúdo principalmente sexual, trata-se antes de tudo da luxúria.
(3) Práticas voltadas ao tratamento da parte irascível da alma, ou temperamento. A salmodia inclui também o modo como se recita os salmos.
(4) Evágrio usa nesse ponto a palavra 'ágape', ou seja, amor, e não 'esmola'.
(5) A tristeza pode ser causada também pela frustração do homem que, irado contra o próximo, se vê impossibilitado em sua vingança.
(6) A parte irascível da alma, que é de onde surgem a ira e o ódio.
(7) Em um sentido estrito: o elemento irascível pode 'aumentar', 'inchar', vindo a ser fonte de distúrbios psíquicos de várias ordens.
(8) A adoção de determinados comportamentos externos contribui para a aquisição de uma dada disposição, que não é uma 'sentimentalidade' ou 'afetividade' mas sim uma ordem interior que possibilita a liberdade diante das paixões.
(9) Evágrio não faz menção apenas a um ataque por meio de sonhos, mas a aparições também em estado de vigília.
(10) O homem irado busca a solidão e se afasta dos demais.
(11) Uma mudança em relação ao estado anterior provocada por uma disposição para a luxúria.
(12) Ou seja, os demônios sugerem que a vida na solidão do eremitério é cruel e uma forma de indiferença com o próximo.
(13) Não nos deixarmos levar à solidão por causa da ira nem a sair da solidão por causa da luxúria. É necessário discernimento para perceber os planos demoníacos em cada contexto.
(14) Seja ela a ira ou a luxúria.
(15) O Nous tomado por logismoi [pensamentos passionais] não consegue ascender até ao estado de oração pura.
(16) A ira ou a parte irascível da alma não é ruim em si mesma, mas possui uma função: o combate ao mal, ou antes, a luta ou esforço para alcançar ou se adequar ao Bem. A orientação ao prazer, por sua vez, é função da parte erótica ou concupiscível da alma.
(17) O Nous, saindo da contemplação dos logoi, ou razões essenciais dos entes visíveis e invisíveis, engendra não as virtudes mas os vícios.
(18) Uma das atividades do demônio da tristeza: trazer ao homem a memória de seus pecados.
(19) A caridade é uma terapia contra o nosso próprio rancor e o rancor que é dirigido contra nós. Mas o que conta é a disposição amorosa do coração, não o valor do presente em si.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico 1

Abaixo, uma pequena e modesta tradução de um trecho de um das obras mais importantes do monasticismo, escrita por Evágrio Pôntico, eremita e discípulo de São Macário do Egito e de São Gregório Teólogo, e cujos livros possuem grande peso nos ensinamentos patrísticos. Evágrio foi anatematizado pelo V Concílio Ecumênico por conta de sua cosmologia herética. No entanto, a psicologia ascética desenvolvida em seus escritos está na base de toda a Filocalia, sendo perfeitamente ortodoxa. [1]







1 O Cristianismo é o dogma de nosso Salvador Cristo composto das partes prática, natural e teológica. 


2 O Reino dos Céus é a impassibilidade da alma com verdadeira gnose das coisas existentes. 


3 O Reino de Deus é a gnose da Santissima Trindade coextensiva com a constituição do Nous e superior à sua incorruptibilidade.


4 Aquilo que alguém deseja [passionalmente] certamente aspira, e aquilo a que aspira luta por conquistar. O desejo [passional] é a origem de todo prazer: o desejo, então, gera a percepção sensorial, pois aquilo que não tem parte na percepção sensorial está também livre de paixão.


5 Os demônios combatem nus contra os eremitas; eles armam os [monges] mais negligentes da comunidade contra aqueles nos mosteiros e formam grupos [de demônios] contra os que estão trabalhando na virtude. A segunda guerra é muito mais leve do que a primeira já que não é possível encontrar sobre a terra homens mais cruéis que os demônios, ou que aceitem a um só tempo toda sua vilania.




Sobre os Oito logismoi [Nota: pensamentos apaixonados]


6 Os logismoi [2] mais gerais são oito no todo, os quais contém os demais logismoi. Primeiro, o pensamento da gula; e, depois, o pensamento da fornicação [luxúria]; em terceiro, o da avareza; o quarto, o da tristeza; quinto, o da ira; sexto, o da acídia; sétimo, o da vanglória; oitavo, o do orgulho. Se esses logismoi afligem ou não a alma é uma das coisas que não estão em nosso poder; mas se persistem ou não, se colocam ou não as paixões em movimento, é algo que está em nosso poder.


7 O logismoi da gula sugere ao monge que rapidamente caia de seus esforços ascéticos, encarnando o estômago, fígado, baço e hidropisia, e então uma doença duradoura, [e sugestionando] a raridade das coisas necessárias e a ausência de terapeutas. Frequentemente leva também o monge à recordação de determinados irmãos que caíram nessas paixões. Às vezes seu pensamento persuade essas mesmas pessoas que sofreram tais coisas a se reunirem com os castos e a narrarem suas desventuras, como se aquelas coisas tivessem acontecido por conta da ascese deles.


8 O demônio da fornicação [luxúria] força [o monge] a desejar vários corpos: e ataca com ferocidade ainda maior aqueles que são castos, para que parem com a continência como se ela não os levasse a nada; e, poluindo a alma, as dobra em direção a esses atos; e faz a alma dizer certas palavras e também ouvi-las como se o objeto estivesse presente e sendo visto.


9 A avareza sugestiona uma longa velhice e a fraqueza das mãos para o trabalho, fomes que virão e doenças que acontecerão, e a amargura da pobreza, assim como a vergonha de aceitar de outros aquelas coisas que são necessárias.


10 Então a tristeza ocorre às vezes como resultado da privação dos desejos, e às vezes implica na ira. Como consequência da privação dos desejos ocorre da seguinte maneira: certos logismoi levam, por antecipação, a alma a recordar da casa, dos pais e do seu modo anterior de vida. E quando [os logismoi] vêem que a alma não resiste mas que os seguem e que se dissipa em prazeres que ocorrem no intelecto [imaginação], então tomam a alma e a submergem na tristeza e na imaginação de que tais coisas não mais existem e nem podem existir por causa do modo presente de vida. E a alma desafortunada, na medida em que se dissipou naqueles primeiros pensamentos, humilhando-se, diminui a si mesma por causa desses últimos pensamentos.


11 A Ira é uma paixão muito ativa: diz-se que é um movimento fervente do temperamento [3] contra aquele que cometeu uma injustiça ou aquele de quem se pensa que cometeu uma injustiça. Essa coisa mesma, a ira, torna a alma selvagem por todo o dia, e, mais ainda, aprisiona o Nous durante as orações, espelhando o rosto da pessoa que ofendeu [o monge]. Isso acontece quando a ira persiste por longo tempo e se transforma em ódio, levando a distúrbios noturnos, definhamento do corpo, palidez, e ataques de animais peçonhentos. Essas quatro coisas podem ser encontradas ocorrendo depois que o ódio se seguiu de vários pensamentos.


O demônio do meio dia
12 O demônio da acídia, que também é chamado de ''demônio do meio dia'' [Sl 90:6], é o mais pesado de todos os demônios. Aparece ao monge por volta da hora quarta e circula ao redor de sua alma até a hora oitava. Primeiro, faz o sol parecer lento ou sem movimento, como se o dia tivesse cinquenta horas. Depois pressiona [o monge] a olhar continuamente para as portas e pular para fora de sua cela, se fixar no sol para ver quanto falta para a hora nona, e procurar aqui e ali, talvez por um dos irmãos. Mais ainda, torna presente um ódio pelo lugar e com respeito a esse modo de vida e ao trabalho manual; e [torna presente] o pensamento de que a caridade abandonou os irmãos e que não há ninguém que console [o monge]; e se, durante esses dias, há alguém que tenha entristecido o monge, o demônio acrescenta isso para aumentar o ódio. Leva o monge também ao desejo por outros lugares em que ele poderia facilmente encontrar as coisas necessárias e exercitar uma arte ou o comércio, aquilo que é mais fácil e avançado; e, acrescenta, agradar o Senhor não depende de um lugar; mas, diz, em todo lugar o Divino deve ser adorado [Jo 4:21 a 24]. Junta também a essas coisas a recordação dos familiares e do modo anterior de vida; faz o tempo de vida parecer longo, trazendo diante dos olhos as dores do ascetismo; e, como se diz, coloca em movimento tudo quanto faça o monge abandonar sua cela, abandonar a arena. Nenhum demônio se sucede imediatamente a esse; uma condição de paz e uma alegria indescritível toma a alma depois da luta.


13 O logismoi da vanglória é um tipo muito sutil de pensamento que ocorre àqueles que tem realizações, e que tendem facilmente a tornar públicas suas lutas e a correr atrás das glórias que vem dos homens [1 Tess 2:6]: representando demônios lamentando e mulheres sendo curadas e algum tipo de multidão tocando as vestes do monge. Então profetiza ao monge o sacerdócio e lhe faz imaginar sendo procurando nas portas, e a maneira como, caso ele não vá por vontade própria, será carregado amarrado. E então deixando o monge exaltado nessas vãs esperanças que o levam para longe, para a tentação ou pelo demônio do orgulho ou então pelo demônio da tristeza, que traz a ele pensamentos contrários a essas esperanças vãs; acontece também às vezes de entregar ao demônio da fornicação [luxúria] o santo sacerdote já atado.


14 O demônio do orgulho se torna para a alma a fonte da mais severa queda. Seduz a alma a não confessar que Deus é quem a ajuda, a pensar que ela mesma é a causa das realizações e a se inflar contra os irmãos como se fossem ignorantes porque não sabem essa coisa mesma a seu respeito. A Ira e a tristeza se seguem a esse demônio e, como último dos males, um êxtase das faculdades mentais, loucura e à visão de multidões de demônios no ar.



[Continua]


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[1] Minha tradução foi realizada em cima da tradução realizada pelo monge Teophanes [Constantine], do Monte Athos, Grécia.

[2] O termo significa, no ascetismo ortodoxo, ''pensamentos apaixonados'', ou seja, já permeados pelos movimentos das paixões, ou pelas faculdades da alma movidas a partir do apego ao mundo.

[3] A Psicologia Patrística, seguindo Platão, divide a alma humana em três partes principais: a erótica ou apetitiva [também chamada de concupiscente ou desejante], a irascível ou tímica, e a Intelectiva ou noética. O temperamento é uma operação da parte irascível da alma.