segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico 1

Abaixo, uma pequena e modesta tradução de um trecho de um das obras mais importantes do monasticismo, escrita por Evágrio Pôntico, eremita e discípulo de São Macário do Egito e de São Gregório Teólogo, e cujos livros possuem grande peso nos ensinamentos patrísticos. Evágrio foi anatematizado pelo V Concílio Ecumênico por conta de sua cosmologia herética. No entanto, a psicologia ascética desenvolvida em seus escritos está na base de toda a Filocalia, sendo perfeitamente ortodoxa. [1]







1 O Cristianismo é o dogma de nosso Salvador Cristo composto das partes prática, natural e teológica. 


2 O Reino dos Céus é a impassibilidade da alma com verdadeira gnose das coisas existentes. 


3 O Reino de Deus é a gnose da Santissima Trindade coextensiva com a constituição do Nous e superior à sua incorruptibilidade.


4 Aquilo que alguém deseja [passionalmente] certamente aspira, e aquilo a que aspira luta por conquistar. O desejo [passional] é a origem de todo prazer: o desejo, então, gera a percepção sensorial, pois aquilo que não tem parte na percepção sensorial está também livre de paixão.


5 Os demônios combatem nus contra os eremitas; eles armam os [monges] mais negligentes da comunidade contra aqueles nos mosteiros e formam grupos [de demônios] contra os que estão trabalhando na virtude. A segunda guerra é muito mais leve do que a primeira já que não é possível encontrar sobre a terra homens mais cruéis que os demônios, ou que aceitem a um só tempo toda sua vilania.




Sobre os Oito logismoi [Nota: pensamentos apaixonados]


6 Os logismoi [2] mais gerais são oito no todo, os quais contém os demais logismoi. Primeiro, o pensamento da gula; e, depois, o pensamento da fornicação [luxúria]; em terceiro, o da avareza; o quarto, o da tristeza; quinto, o da ira; sexto, o da acídia; sétimo, o da vanglória; oitavo, o do orgulho. Se esses logismoi afligem ou não a alma é uma das coisas que não estão em nosso poder; mas se persistem ou não, se colocam ou não as paixões em movimento, é algo que está em nosso poder.


7 O logismoi da gula sugere ao monge que rapidamente caia de seus esforços ascéticos, encarnando o estômago, fígado, baço e hidropisia, e então uma doença duradoura, [e sugestionando] a raridade das coisas necessárias e a ausência de terapeutas. Frequentemente leva também o monge à recordação de determinados irmãos que caíram nessas paixões. Às vezes seu pensamento persuade essas mesmas pessoas que sofreram tais coisas a se reunirem com os castos e a narrarem suas desventuras, como se aquelas coisas tivessem acontecido por conta da ascese deles.


8 O demônio da fornicação [luxúria] força [o monge] a desejar vários corpos: e ataca com ferocidade ainda maior aqueles que são castos, para que parem com a continência como se ela não os levasse a nada; e, poluindo a alma, as dobra em direção a esses atos; e faz a alma dizer certas palavras e também ouvi-las como se o objeto estivesse presente e sendo visto.


9 A avareza sugestiona uma longa velhice e a fraqueza das mãos para o trabalho, fomes que virão e doenças que acontecerão, e a amargura da pobreza, assim como a vergonha de aceitar de outros aquelas coisas que são necessárias.


10 Então a tristeza ocorre às vezes como resultado da privação dos desejos, e às vezes implica na ira. Como consequência da privação dos desejos ocorre da seguinte maneira: certos logismoi levam, por antecipação, a alma a recordar da casa, dos pais e do seu modo anterior de vida. E quando [os logismoi] vêem que a alma não resiste mas que os seguem e que se dissipa em prazeres que ocorrem no intelecto [imaginação], então tomam a alma e a submergem na tristeza e na imaginação de que tais coisas não mais existem e nem podem existir por causa do modo presente de vida. E a alma desafortunada, na medida em que se dissipou naqueles primeiros pensamentos, humilhando-se, diminui a si mesma por causa desses últimos pensamentos.


11 A Ira é uma paixão muito ativa: diz-se que é um movimento fervente do temperamento [3] contra aquele que cometeu uma injustiça ou aquele de quem se pensa que cometeu uma injustiça. Essa coisa mesma, a ira, torna a alma selvagem por todo o dia, e, mais ainda, aprisiona o Nous durante as orações, espelhando o rosto da pessoa que ofendeu [o monge]. Isso acontece quando a ira persiste por longo tempo e se transforma em ódio, levando a distúrbios noturnos, definhamento do corpo, palidez, e ataques de animais peçonhentos. Essas quatro coisas podem ser encontradas ocorrendo depois que o ódio se seguiu de vários pensamentos.


O demônio do meio dia
12 O demônio da acídia, que também é chamado de ''demônio do meio dia'' [Sl 90:6], é o mais pesado de todos os demônios. Aparece ao monge por volta da hora quarta e circula ao redor de sua alma até a hora oitava. Primeiro, faz o sol parecer lento ou sem movimento, como se o dia tivesse cinquenta horas. Depois pressiona [o monge] a olhar continuamente para as portas e pular para fora de sua cela, se fixar no sol para ver quanto falta para a hora nona, e procurar aqui e ali, talvez por um dos irmãos. Mais ainda, torna presente um ódio pelo lugar e com respeito a esse modo de vida e ao trabalho manual; e [torna presente] o pensamento de que a caridade abandonou os irmãos e que não há ninguém que console [o monge]; e se, durante esses dias, há alguém que tenha entristecido o monge, o demônio acrescenta isso para aumentar o ódio. Leva o monge também ao desejo por outros lugares em que ele poderia facilmente encontrar as coisas necessárias e exercitar uma arte ou o comércio, aquilo que é mais fácil e avançado; e, acrescenta, agradar o Senhor não depende de um lugar; mas, diz, em todo lugar o Divino deve ser adorado [Jo 4:21 a 24]. Junta também a essas coisas a recordação dos familiares e do modo anterior de vida; faz o tempo de vida parecer longo, trazendo diante dos olhos as dores do ascetismo; e, como se diz, coloca em movimento tudo quanto faça o monge abandonar sua cela, abandonar a arena. Nenhum demônio se sucede imediatamente a esse; uma condição de paz e uma alegria indescritível toma a alma depois da luta.


13 O logismoi da vanglória é um tipo muito sutil de pensamento que ocorre àqueles que tem realizações, e que tendem facilmente a tornar públicas suas lutas e a correr atrás das glórias que vem dos homens [1 Tess 2:6]: representando demônios lamentando e mulheres sendo curadas e algum tipo de multidão tocando as vestes do monge. Então profetiza ao monge o sacerdócio e lhe faz imaginar sendo procurando nas portas, e a maneira como, caso ele não vá por vontade própria, será carregado amarrado. E então deixando o monge exaltado nessas vãs esperanças que o levam para longe, para a tentação ou pelo demônio do orgulho ou então pelo demônio da tristeza, que traz a ele pensamentos contrários a essas esperanças vãs; acontece também às vezes de entregar ao demônio da fornicação [luxúria] o santo sacerdote já atado.


14 O demônio do orgulho se torna para a alma a fonte da mais severa queda. Seduz a alma a não confessar que Deus é quem a ajuda, a pensar que ela mesma é a causa das realizações e a se inflar contra os irmãos como se fossem ignorantes porque não sabem essa coisa mesma a seu respeito. A Ira e a tristeza se seguem a esse demônio e, como último dos males, um êxtase das faculdades mentais, loucura e à visão de multidões de demônios no ar.



[Continua]


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[1] Minha tradução foi realizada em cima da tradução realizada pelo monge Teophanes [Constantine], do Monte Athos, Grécia.

[2] O termo significa, no ascetismo ortodoxo, ''pensamentos apaixonados'', ou seja, já permeados pelos movimentos das paixões, ou pelas faculdades da alma movidas a partir do apego ao mundo.

[3] A Psicologia Patrística, seguindo Platão, divide a alma humana em três partes principais: a erótica ou apetitiva [também chamada de concupiscente ou desejante], a irascível ou tímica, e a Intelectiva ou noética. O temperamento é uma operação da parte irascível da alma.


domingo, 7 de setembro de 2014

Patrícia Moreira e a institucionalização do culto a Azazel

Patrícia Moreira foi escolhida como vítima a ser sacrificada em nome do ''ódio aos racistas''


Cresci em um sub-bairro de Senador Camará, região pobre da antiga ''Zona Rural'' do Rio de Janeiro e que com o tempo foi se tornando uma dúzia de ruas cercadas por favelas e mais favelas. Era um local tipicamente habitado por classes populares e repleto, claro, de mulatos e caboclos. Não só cariocas da gema, mas também migrantes do Nordeste, de Minas, de São Paulo, do interior do Estado do Rio. Lembro ainda hoje quando a primeira família negra se mudou para minha rua. Eu era criança, foi lá pra meados da década de 1980, e notei um certo burburinho que havia se formado. Alguns ficaram inconformados com os vizinhos pretos. Era como se de repente o status social do bairro estivesse periclitando, decaindo, ainda que fossem boa gente, trabalhadora, que compartilhavam os mesmos valores e possuíssem mais ou menos o mesmo nível sócio-econômico. Aprendi então que havia racismo no coração de parte do povo brasileiro, no coração de parte dos populares que queriam se diferenciar, d'algum modo, dos demais pobres, dos miseráveis e dos favelados [porque quando a favela chegou a Senador Camará, anos antes, foi outro burburinho....]. 


Travei outro contato com o racismo na Faculdade de Direito da UFRJ, este ainda mais pessoal. Quando prestei vestibular em 1994, o curso da UFRJ era tido como o mais tradicional do Rio e quiçá do país, embora alguns já dissessem que a qualidade da UERJ era maior. Havia status em estudar no prédio em que funcionou o Senado Imperial, no qual se assinou a Lei Áurea, ali do lado da casa em que havia morado o Marechal Deodoro da Fonseca e do Campo de Sant'Anna,  onde foi feito o anúncio da Proclamação da República. A turma era formada por noventa alunos, dos quais menos de cinco por cento podiam ser descritos como não brancos -- e estou incluindo aí um colega de ascendência japonesa. Não havia nenhum preto.  [No colégio em que fiz o antigo ginásio -- hoje segundo segmento do ensino fundamental --, uma escola tradicional de Campo Grande pela qual sempre tive muito amor, em uma turma de mais de cinquenta alunos também só havia um preto, e menos de vinte por cento não brancos, contando aí os descendentes de coreanos]. Eu possuía uma boa relação com a maioria, mas sofri agressões verbais de um aluno que havia sido eleito representante da turma. Nenhuma 'racista' em sentido estrito, deixo claro, mas a motivação por detrás delas ficou óbvia pra mim. O sujeito não foi com minha cara; ou melhor, não foi com a minha cor. [posso ser descrito como cafuzo ou caboclo.]


A existência de racismo no Brasil é inegável. Que se trata de uma chaga é consenso. Que deve ser combatido idem. Mas o racismo não é o maior mal a que está sujeita uma sociedade. Um bem pior é a disseminação do mecanismo do bode expiatório como forma de dirimir conflitos e provocar uma unidade de valores. O mecanismo do bode expiatório foi estudado e explicado pelo filósofo e historiador René Girard, que com ele buscou descrever o nascimento da cultura e da civilização, usando para isso a crítica literária, a psicologia, o estudo de religiões e a antropologia. Segundo Girard, o desejo humano é mimético, está inserido em dado contexto social. Desejamos não qualquer coisa, mas as coisas que vemos o próximo desejar. No fim das contas, isso significa que acabamos por desejar objetos semelhantes, ou, pior ainda, os mesmos objetos -- o que inclusive é potencializado ao máximo em uma sociedade regida por valores igualitaristas. A natureza do desejo humano, assim, se torna em fonte segura de conflito com o outro. Estes conflitos se espraiam pelo todo social, em uma espiral de disputa, conflito, agressões e, por fim, violência, regidas pela culpabilização do outro pela não satisfação de nossos desejos, pelo ressentimento e pela necessidade de vingança. 

O bode expiatório é morto para aplacar os ''deuses'', os demônios alimentados pelos indivíduos e escondidos no anonimato da coletividade

O processo de crescimento contínuo de vingança e da violência torna a sociedade um inferno e compromete sua própria existência, o grupo fica ameaçado a mergulhar no caos. Neste ponto entra em ação o mecanismo do bode expiatório. Diante da debaclé geral a coletividade se agarra à sobrevivência pela escolha de um vítima sacrificial que será o foco de um consenso de ódio. A vítima é responsabilizada em última instância por todo o caos, ódios, vingança e ciclo de violência que acomete a sociedade, e através deste ato de projeção da culpa e do sacrifício do indivíduo escolhido, a sede contínua por vendeta é aplacada e a coletividade retorna, momentaneamente, a um estado de paz. O processo é zerado e se inicia novamente, até que o perigo da orgia de violência leve a escolha de um outro bode expiatório. Esta dinâmica pode ser antecipada, como explica Girard. A sociedade pode sacrificar vítimas expiatórias antes mesmo que o caos se instaure, como forma de evitar o ciclo de violência. Segundo o pensador francês, é este mecanismo que está por trás dos fundamentos das religiões arcaicas e da sociedade, é ele que abre espaço para a vida em comum. No cerne da vida social, portanto, se encontra a institucionalização da maior das selvagerias, realizada para que os homens não precisem enfrentar seus próprios demônios internos. 


Em entrevista hoje ao Jornal do Brasil [O racismo que fere e precisa ser combatido], a militante Mônica Fraga escreve a seguinte pérola sobre Patrícia Moreira, a jovem que foi flagrada chamando de ''macaco'' o goleiro Aranha, do Santos, em partida de futebol realizada contra o Grêmio em Porto Alegre: ''A questão não é que com esta ou aquela pessoa a repercussão ou as consequências estão sendo duras demais. Ela foi flagrada, outros não, mas ela representa a síntese dos e das racistas neste país.'' O artigo da moça clama pelo combate ao racismo. Mas o faz justificando o uso do mecanismo acima descrito, que é visto assim como meio de alcançar a unidade de valores que ela pensa ser benéfica para dirimir os conflitos raciais brasileiros. Patrícia, uma menina que cometeu um erro no meio de uma turba, de uma torcida de futebol, algo que ocorre todo santo dia em qualquer estádio do país, deve ser transformada, pensam os militantes, em síntese do mal que se deseja extirpar. Pouco importa se é duro demais para ela, se extrapola o que realmente fez. O que importa é o bem que se pretende tirar disto, a pacificação racial do Brasil. Não basta que ela seja esculachada em redes sociais, em rede nacional de televisão, que perca o emprego, que sua casa seja apedrejada, que seja processada. A lei deve cair sobre ela com braço forte, poderoso, impiedoso, sem deixar 'pedra sobre pedra', para descarná-la, destruí-la, uma representação de nosso ódio ''a todos os racistas do país''. Se ela sobreviver, marquemos sua testa com algum sinal hediondo, para que seja para sempre proscrita entre nós. Suas desculpas públicas não podem ser aceitas, ela tem de repeti-las indefinidamente, de joelhos, enquanto lhe alvejamos, quem sabe, com sacos cheios de urina e cocô de gato. 

Em Israel, o sacerdote separava dois bodes: um seria morto pelos pecados dos povo no culto do Judaísmo do Templo, e o outro seria solto do deserto para satisfazer Azazel


Quando destruirmos este indivíduo em particular em todas as suas dimensões, quando a detonarmos social, moral, psicológica e fisicamente, aí, se iludem certos ideólogos, virá a paz. Mas é uma certa paz que esconde um contínuo ódio interno, e que vai tão somente abrir espaço para que todo o ciclo volte a se repetir. O sacrifício de indivíduos no altar construído pela violência da turba repleta de ira e desejo descontrolado não é sinônimo de justiça. É a re-institucionalização do Culto a Azazel. [1]



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[1] The Scapegoat Dilemma

domingo, 31 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet - Parte 4

Ícone da Escada de São João Clímaco -- a doutrina dos ''telônios aéreos'' está associada ao ascetismo necessário à purificação das paixões.


Voltando ao tema da ''Vida após a morte'', segunda descrita no livro sobre o tema de Jean-Claude Larchet, é necessário fornecer algumas especificações a respeito da passagem da alma pelos ''telônios aéreos'', que ocorre no período que vai simbolicamente do terceiro ao nono dia após a morte clínica. Deve-se evitar qualquer tentativa fetichizada de materializar ao extremo esta batalha contra as potestades do ar. Na verdade, o bom combate já se inicia ainda em vida, pois é por meio das paixões desregradas dos homens que o diabo o escraviza, e, assim, é combatendo estas mesmas paixões desvirtuadas e as tentações demoníacas que as acompanham que o homem pode se livrar das correntes e armadilhas preparadas pelos poderes da escuridão quando deixa o corpo. Convém lembrar que o justo, o homem que venceu seus desregramentos, que retificou sua vida, passa pelos 'telônios' sem sofrer dano destes principados, já que estes nada reconhecem nele que seja deles. São Theognostos ensina que ''é inexpressável a alegria da alma quando deixa o corpo em segurança plena da salvação...indo em paz encontrar o anjo radiante que desce por causa dela, e viajando com ele pelo ar sem encontrar obstáculos, totalmente ilesa frente aos maus espíritos. Subindo com alegria, coragem e gratidão, se prostra em adoração diante do Criador, e a ela é atribuído um lugar entre aqueles que lhe são semelhantes e iguais em virtude, até a ressurreição universal''. Esta livre passagem pelos 'telônios' é assegurada pela conquista da apatheia, ou impassibilidade, como se mostra nas experiências de ascetismo de Santo Antônio o Grande que ainda em vida enfrentou as tentações correspondentes às paixões e, em êxtase, veio a passar também pelos poderes das trevas, tal como relatado por Santo Atanásio de Alexandria em sua ''A Vida de Antônio''. As paixões que o homem carrega em vida continuam a operar nele após a morte, mas agora sem a presença do elemento e do ambiente corporal, o que torna a satisfação dos vícios ou mesmo sua mitigação impossível para a alma. Há relatos dos infernos e dos telônios que, inclusive, associam o ardor das paixões, que agora não encontram limites corporais e tampouco podem ser aplacadas, como em continuidade com as próprias 'torturas' e acusações demoníacas que são realizadas sobre a alma. Este texto do Metropolita Hierotheos Vlachos ajuda a dar uma panorama ainda mais amplo desta questão: [https://www.facebook.com/notes/andré-luiz-dos-reis/the-taxing-of-souls-or-on-the-toll-houses/714602845226144].




10) Como eu dizia na resenha anterior [Parte III], a alma que passa pelos 'telônios aéreos' se encontra nas portas do Paraíso e diante do trono do Criador. Um novo ciclo 'cronológico' se inicia, que dura do nono ao quadragésimo dia. No nono dia após a morte clínica a Igreja realiza um novo serviço funerário que se associa simbolicamente às hierarquias angélicas. É neste período que a alma inicia sua visita a todas as mansões do Paraíso e, depois, todas as prisões do inferno, para conhecer o que é reservado tanto aos justos quanto aos injustos. Segundo São Simeão o Novo Teólogo, os lugares divinos da glória de Deus são os próprios Poderes do Alto e as legiões dos Anjos. Santo André de Creta, por sua vez, ensinava em suas homilias que mesmo as almas dos santos passam através do ''lugar escuro [do inferno]'', para serem iniciadas no mistério inacreditável da Economia Divina, a saber, a própria descida de Cristo aos Infernos, e para entender a extensão da vitória de Cristo sobre a morte e sobre o Hades. Esta viagem da alma pelas mansões do Paraíso e do Hades é descrita por São Macário de Alexandria em suas ''Revelações'' e também no relato de Santa Theodora e São Gregório da Trácia encontrada na vida de São Basílio o Jovem.


11) No Quadragésimo dia termina a viagem da alma pelas mansões dos Santos e pelos lugares tenebrosos do Hades e, mais uma vez, a alma é levada diante do Trono de Cristo. É neste período que se realiza o Juízo Particular de cada alma, cujo resultado será a atribuição de um lugar no além, em um estado intermediário que durará até o Fim dos Tempos e o Juízo Final. Neste quadragésimo dia após a morte clínica, associado simbolicamente às lamentações pelo Santo Profeta Moisés, a Igreja faz o mais estimado e elaborado ofício funerário em homenagem aos mortos. Sobre o estado intermediário no Paraíso ou no Hades o livro se debruça um pouco mais tarde. Agora é mais importante ressaltar que este juízo particular ocorre já na própria passagem pelos 'telônios aéreos', conforme ensinam vários Padres. Apesar de Cristo ser o único Juiz de fato e de direito, no caso do Juízo Particular, o julgamento do Senhor é intermediado e delegado primeiro à própria consciência humana, que a acusa dos seus pecados no momento da morte e durante a ascensão até os Céus, e visto também que o resultado desta ascensão é consequência direta das próprias ações do sujeito durante sua vida terrena; segundo, pelos próprios demônios que pedem 'compensação' pelas paixões e pecados possuídos pela alma. As almas que são encontradas culpadas, ou que não podem ser defendidas durante a ascensão, já rumam para os lugares do Hades que lhe são destinadas segundo seus [de]méritos. Quanto aquelas que se postam diante do Trono de Deus, ali terão confirmada a sentença já ocorrida nas tribulações pelo ar, sendo-lhes conferido um lugar divino ou estada paradisíaca de acordo com o grau de virtude que possuam. 


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continua

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet - Parte 3

Ícone mostrando as almas subindo e descendo pelas ''toll houses'' ou ''telônios aéreos''
No post anterior [Parte 2] falava eu dos três períodos 'cronológicos' em que a Santa Tradição divide o processo da morte da pessoa até sua chegada no locus que lhe está 'reservado' no além. O fim de cada uma destas etapas é marcada por um dia de ofício específico na Igreja, realizados portanto ao terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte clínica. Ressalto mais uma vez que esta contagem cronológica possui uma dimensão simbólica e não pode ser vista de maneira unívoca, pois nossa experiência espaço-temporal não pode ser transplantada pura e simplesmente para outras dimensões da existência diferentes da corpórea. Pois bem, no primeiro período a alma permanece na terra por três dias, durante os quais ela se deixa guiar ou pelos anjos que Deus coloca para guardá-la e orientá-la [o anjo da guarda e o anjo psicopompo] ou pelos demônios aos quais se fez afim durante a vida terrena. Nesta fase, a alma pode vaguear pelas regiões que quiser, ou ficando próxima do seu corpo, da sua casa, dos seus parentes ou dos locais dos quais se sente saudosa. No terceiro dia, associado com a Ressurreição de Cristo e com Sua saída do túmulo, a alma inicia sua ascensão até os Céus. Alguns santos, conforme expliquei, rumam para o Paraíso imediatamente após a morte, dada a vida piedosa que levaram e a concentração de todos os seus desejos em Cristo Nosso Deus. A maior parte das pessoas, no entanto, realiza uma ascensão gradual até o Trono de Cristo. Nesta 'subida' a alma tem de passar por aquilo que a Santa Tradição chama comumente de 'telônios aéreos'.




7) Na ascensão da alma pelos ares rumo ao Paraíso ela é acompanhada por anjos, principalmente pelo anjo psicopompo, encarregado de guiá-la até o Trono de Deus. Mas assim como no momento da morte existem batalhões de demônios prontos a arrastar a alma, assim também em seu vôo para Deus ela enfrenta oposição e resistência dos poderes das trevas, que se postam no caminho até o Paraíso e a investigam, inquirem e ameaçam de acordo com as paixões que possua e os pecados que tenha cometido. Os demônios se estabelecem no caminho da alma em ''estações'' progressivas, cada uma delas ligada a uma paixão ou a determinados tipos de pecado. Ao passar por casa uma destas estações, a alma é atacada por estes poderes, que buscam tirá-la das mãos do anjo da guarda e do anjo psicopompo e levá-la para os abismos do Hades. Em cada uma destas 'estações', ou 'telônios', os príncipes da obscuridade investigam se a alma possui aquilo que pertence a eles, demônios, ou seja, más paixões. Uma vez que estas paixões correspondentes aos telônios sejam encontradas, a alma, para prosseguir, deve 'pagar' com elementos de si mesma, ou então com virtudes e bons atos que compensem os maus feitos e os vícios. Nesta batalha, os anjos ajudam a alma reunindo tudo de bom que ela tenha feito como também as orações da Igreja que são feitas ao seu favor. Caso a alma não os possua de modo suficiente a passar por aquela estação específica, é arrastada pelos demônios a ela associados e fica sob seu poder, acorrentada e torturada, até que a Misericórdia de Deus a liberte. É a esta batalha nos ares que se refere a São Paulo quando afirma que nossa luta não é ''contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais''. Para passar ilesa pelos telônios aéreos, a alma deve ter corrigido suas paixões ainda em vida por meio do ascetismo, levado uma vida virtuosa, se arrependido de todos os seus pecados e os confessado ao pai espiritual, já que, por meio do mistério da confissão o Espírito Santo pode apagá-los do livro da vida. Todas as faltas, voluntárias e involuntárias, cometidas por palavras e atos, consciente ou inconscientemente, são trazidas à tona durante o confronto contra os demônios ''coletores'' ou ''publicanos'', que acusam a alma até mesmo do que ela não fez.




8) O ensinamento sobre os 'telônios aéreos'  não é  um dogma de fé mas está presente em virtualmente todos os Santos Padres que escreveram sobre a morte e também em textos litúrgicos da Igreja. Eles são, portanto, parte incontestável da Santa Tradição. Sobre eles falaram São Gregório de Nissa, São Paphnuntio, Sao Theodoreto de Cyrrhus, São Cirilo de Alexandria, São Gregório o Grande, São Simeão o Tolo de Cristo, São Máximo Confessor, São Theognostos, São Dorotheos de Gaza, São Hesíquio de Bastos, São Macário do Egito, São Nicetas Stethatos, São Simeão o Novo Teólogo, São João Crisóstomo, Santo Antão, São João Clímaco, Santo Abba Isaías de Scetis, São Gregório da Trácia, São João dos Cárpatos, Orígenes, São Justino Popovic, Santo Inácio Brianchaninov, São Diadochos de Foticeia, Santo Atanásio do Sinai, São João do Chipre, São Bonifácio apóstolo dos anglo-saxões, São Teófano o Recluso, São Macário de Moscou, São João Maximovich, São Serafim de Platina etc. Está também presente em vários ofícios da Igreja, como a oração de Santo Eustratio, lida no Ofício da Meia Noite, e no Cânone de Súplica à Toda Santa e Pura Theotokos no momento da Partida da alma. É muito importante lembrar  que este ensinamento não deve ser tomado de maneira completamente literal e materializada, pois descreve uma dimensão da existência que só pode ser entendida por meio de comparações, analogias e símbolos. As imagens não devem se tornar fetiches. Por outro lado, como ensinou São Teófano o Recluso, estas mesmas imagens se referem a uma realidade, não são meras alegorias morais. São uma realidade espiritual que deve ser meditada e compreendida sem apego a ideias sensuais e cruas. Outro ponto a ser notado, é que as ''toll houses'', ou ''telônios aéreos'', não devem ser confundidos com a doutrina católica-romana do ''purgatório'', que é condenada na Igreja Ortodoxa e que será tratada de maneira mais precisa em outra parte do livro. Não se deve também pensar que após a morte a alma está sob poder total dos demônios, e sim compreender que quem não se fez completamente livre das próprias paixões e pecados durante a vida terrena, tampouco se libertará facilmente deles após a morte, pois, como já dito, a alma tende a manter o mesmo estado em que se encontrava no momento da separação do corpo, e, ainda que queira, não pode alterá-lo por si própria por causa justamente da falta do elemento corporal que possibilitaria sua metanoia. 


9) Houve no fim do século passado algumas críticas aos ensinos sobre ''telônios aéreos'' realizadas por clérigos mal instruídos e que sustentavam doutrinas errôneas sobre o pós-morte [como o 'sono da alma', tratado noutra parte da obra de Larchet]. Mas elas são infundadas e já foram rebatidas não só por hierarcas mas inclusive por santos. Reproduzo cá trecho do livro que trata rapidamente destas críticas e do descrédito das dita cujas: ''Uma primeira acusação por parte [destes] autores[...] é que este ensinamento se baseia em apócrifos que possuem todos origem no Egito. Esta acusação não se sustenta: vimos que os testemunhos hagiográficos e patrísticos possuem uma base muito ampla no tempo e no espaço. Uma segunda acusação é de que este ensinamento possui origem na religião dos antigos egípcios e em crenças gnósticas. Indubitavelmente há uma analogia, mas é também verdade de muitas outras crenças cristãs (numerosos exemplos desta área podem ser encontrados nas obras de Mircea Eliade) sem que se possa colocar em questão seu caráter cristão: os dois conjuntos de crenças estão associados a contextos espirituais e teológicos irreconciliáveis (veja as considerações feitas sobre isto pelo Metropolita Hierotheos Vlachos, em ''Vida após a Morte'', pp. 77-78)[...]''.


A alma que passa pelos telônios está diante dos portões do Paraíso. Mas antes de seu juízo particular, ela tem de conhecer os Infernos e os Céus, por quais passa entre o nono e o quadragésimo dia após a morte clínica. 


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Continua

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet - Parte 2






Antes de continuar descrevendo o processo da morte de acordo com a Igreja, segundo descrito na obra ''Life after Death according to the Orthodox Tradition'', de Jean-Claude Larchet, faço cá um parêntese para expor certas posições do autor sobre as ''Experiências de Quase Morte'', ou seja, aqueles relatos de gente que chegou perto de bater as botas mas conseguiu sobreviver e relatar o que vivenciou naqueles momentos em que estava inconsciente ou com a morte clínica constatada pelos médicos. Há vários e vários relatos deste tipo, alguns deles surpreendentes, como o de cegos que, neste estado de morte clínica, foram capazes de contar depois tudo o que viram ao seu redor e até em outros cômodos. Há livros inteiros que reúnem este tipo de narrativa, classificando-as e retirando delas alguma forma de padrão. Um dos mais famosos é o ''Life after Life'', do Dr. Robert Moody. Muitos destes padrões são corroborados pela tradição ortodoxa. Essas experiências, porém, tem de ser lidas com cuidado por causa da possibilidade de interveniência de ilusões demoníacas. 





3) Após descrever as percepções sobrenaturais que o sujeito vivenciadas pelo sujeito que se encontra diante da morte, a obra passa a abordar o processo em si e as diferentes etapas por quais passa a alma em seu caminho para a vida futura. Estas etapas são abordadas pela Ortodoxia a partir de uma representação cronológica dividida principalmente em três fases: até o terceiro dia após a morte clínica; do terceiro ao nono dia; do nono ao quadragésimo dia. É muito importante notar que esta representação possui uma natureza também simbólica. A temporalidade do mundo espiritual não é aquela vivenciada na realidade corporal, então não há porque esperar que estes períodos de tempo sejam exatamente aquilo que conhecemos no cotidiano. Há uma associação temporal mas que não é certamente unívoca. Outra questão bastante importante a ser ressaltada é a própria palavra ''processo''. Embora exista um momento exato da morte clínica, a separação entre alma e corpo não é algo instantâneo nem irreversível, mas se estende durante um determinado período de tempo. É este lapso de tempo que será abordado agora, os primeiros três dias após a morte clínica, em que a separação do corpo e alma ainda não é incontornável nem total ou completa. 


4) Há uma tradição que afirma que o indivíduo ainda pode retornar à vida antes de completado este período de três dias após a morte clinica. Por isso há o costume piedoso de só enterrar o ente querido após o terceiro dia. Outra consequência desta tradição, segundo o autor, envolve a prática contemporânea da doação dos órgãos. Como a alma ainda se encontra muito ligada ao corpo nessa fase, seria desaconselhável a retirada de seus órgãos, pois isso poderia traumatizá-la e afetá-la de alguma maneira. Este tópico é controverso entre as várias jurisdições da Igreja, mas é comum um certo repúdio quanto a doação de certos órgãos, como o coração e os pulmões. Este repúdio se fundamenta no conhecimento sobre o papel do corpo e sua ligação com a alma inclusive após a separação entre ambos. Diferente das doutrinas que minimizam o papel e função do corpo no homem, encarando-o apenas como uma roupa que em nada afeta a personalidade, a Igreja ensina que a pessoa humana é composta por dois elementos complementares que existem um em função do outro em uma relação que se inicia com a vinda à existência do indivíduo e que não se esgota em nenhum momento, nem mesmo com a morte. Após a dita cuja, a alma retém potencialmente em si a memória e forma do corpo, bem como as faculdades que por ele se expressam. Da mesma maneira, há santos Padres, como Máximo o Confessor e Gregório de Nissa, que ensinam que os elementos que formam o corpo também guardam em si uma afinidade com a alma, de modo que, mesmo quando dissolvidos e espalhados pela criação, são conhecidos por ela, e continuam ainda 'pertencendo' àquela Hipóstase humana particular. É desta maneira que todo corpo humano é também uma relíquia, pois está ligado à personalidade que o possuiu. O culto cristão às relíquias se baseia nesta verdade, pois os elementos corporais não são venerados em si, mas é a pessoa à qual pertencem e a qual continuam ligados que é venerada através deles. [No caso dos santos, como são energizados por Deus, suas relíquias acabam também operando milagres.] O cuidado com o ente falecido é expressão não apenas de uma honra ao corpo, mas uma honra à pessoa humana, à qual este corpo está e sempre estará associada, inclusive após a morte. Em alguns países ortodoxos há o costume piedoso, por exemplo, de após cinco anos após o falecimento do indivíduo, exumar seus restos mortais, lavá-los com vinho e levá-los à Igreja para um serviço em memória, após o qual serão colocados em um ossuário na esperança da futura ressurreição. É por isto também que a cremação é repudiada pela Igreja e vista como uma forma ou intenção de aniquilação, desrespeito e desamor. Todo este cuidado com o corpo da pessoa humana, bem como os ritos funerários e de memória, encontram sua imagem na santas miróforas, que cuidaram do Senhor quando de Seu sepultamento. 


5) A morte clínica em si é, em geral e independente da maior ou menor santidade da pessoa, muito angustiante e dolorosa para alma. A explicação para tal é que a separação entre alma e corpo é anti-natural, como descrito no item anterior. Isto posto, o evento pode ser facilitado ou dificultado pelas virtudes ou vícios que o sujeito carrega. Uma pessoa que levou vida piedosa e dedicada a Deus, retificando suas paixões e conquistando os dons do Espírito, tende a se elevar para o alto de modo muito mais simples, desvencilhando-se da carne sem maiores apegos. Há inclusive casos raros de santos que foram levados imediatamente para o Paraíso logo após a morte, tamanha a iluminação e glória possuíam. Mas, em geral, a pessoa possui um certo grau de virtude e vício que influenciará na sua partida deste mundo. Quando o indivíduo é muito apaixonado e apegado a essa realidade material e ao corpo há muitos obstáculos em sua partida, e alguns santos, como Santa Macrina e São Gregório de Nissa, explicam desta maneira a existência de fantasmas. Quando do falecimento, as faculdades anímicas ligadas ao corpo continuam fazendo parte da alma, mas em estado potencial pela falta dos meios necessários à sua expressão. 



6) A partir da separação da alma e do corpo, a batalha pelo homem que teve lugar em toda a sua existência, se intensifica ou ganha novos contornos. Anjos e demônios se apresentam à hora da morte buscando levar a alma com eles. As imagens proporcionadas pela Igreja apresentam estes seres espirituais como dois exércitos colocados um de frente para o outro e prontos para a batalha pela alma. A pessoa vai se inclinar para cada um deles de acordo com suas tendências durante a vida e no momento da morte. Deve ser ressaltado que a alma mantém no além o estado apresentado no momento de sua morte. Depois disto, ainda que queira, ela não pode alterá-lo pela falta justamente do corpo e de seu ambiente, necessários à expressão da metanoia e de seus frutos. Após a morte, o estado da alma só pode ser alterado por uma intervenção outra, da Igreja e de seus santos, por meio das orações e serviços litúrgicos. Voltando à batalha pela alma, o momento da separação é como um julgamento, no qual os demônios tentarão reconhecer na alma as paixões que lhe são correspondentes e às quais ela mesma se escravizou durante sua vida terrena, a fim de arrastá-la com eles para o Hades. Nas imagens da Igreja, as almas tem de pagar aos demônios com os elementos de si próprias que são a afins às forças da escuridão, e os indivíduos que partem cheios de vícios são despedaçados por estes poderes das trevas. Outras imagens apresentam as almas que partem sendo defendidas pelos anjos, principalmente pelo anjo da guarda e pelo anjo psicopompo, citados na resenha anterior, e que reúnem todas as virtudes e bons atos praticados pelo indivíduo a fim de apresentá-los como compensação e livrá-los da garra das potestades do ar. O fato é que a alma enfrentará o terrível obstáculo dos poderes tenebrosos após a morte, que buscarão impedir sua subida até os céus e mergulhá-la e escravizá-la no inferno. Durante os três primeiros dias, a alma permanece na terra, sob a influência ou dos anjos ou dos demônios, em volta do seu corpo ou visitando os lugares que lhe sejam mais afins. No terceiro dia, que é simbolicamente associado à ressurreição de Cristo e à Sua saída do túmulo, se inicia sua ascensão até os céus para ser julgada diante do Trono do Senhor. Este processo, sintetizado nas imagens das batalhas entre anjos e demônios no momento da morte, é mais detalhado pelos santos nos ensinamentos sobre os 'telônios aéreos', dimensões associadas a uma hierarquia de paixões e nas quais, gradualmente, as almas são acossadas e atacadas pela fúria dos demônios que se reúnem em torno dela como 'leões prontos para devorá-la'. Este será o tema da próxima postagem.



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Continua

sábado, 16 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet -- Parte 1


Meses atrás comecei a ler um excelente livro sobre a morte segundo a Santa Tradição. Mais especificamente, o tema é aquilo que ocorre com a pessoa no processo de separação entre alma e corpo e nos dias que a ela se seguem. O nome da obra é 'Life after Death according to the Orthodox Tradition''. O autor é Jean-Claude Larchet, doutor em filosofia e teologia pela Universidade de Estraburgo e que se converteu do catolicismo-romano para a Santa Igreja aos 22 anos de idade. As fontes usadas são aquelas que embasam qualquer estudo da Santa Tradição, os escritos dos Santos Padres e Anciãos e os textos litúrgicos. Vou fazer pequenas 'resenhas', bem informais, sobre os principais tópicos da obra a fim de dividir tais preciosidades com quem quer se interesse.



1) O primeiro ponto abordado é o significado da morte segundo a Igreja. O homem foi criado em um estado entre a mortalidade e a imortalidade, entre a corrupção e a incorrupção; isto é, Adão possuía em si a possibilidade de, ao obedecer o mandamento que lhe havia sido dado por Deus, prosseguir na imortalidade que lhe fora atribuída por Graça Divina até conquistá-la efetivamente. No entanto, ao se apartar da vontade divina, o homem passou pela experiência da morte espiritual [o obscurecimento do Nous, a faculdade mais elevada da alma e que lhe permitia discernir a essência das coisas criadas e se unir ao Espírito Divino, e a desordem de seus poderes psicossomáticos, ou seja, de suas paixões] e, como consequência desta, da morte física. Uma vez sob o domínio da morte, o diabo pôde se aproveitar deste novo estado para incitar ainda mais o desvio das paixões humanas. A Encarnação de Cristo, bem como Sua Paixão, Morte e Gloriosa Ressurreição, propiciou ao homem a possibilidade de quebrar os grilhões da morte, tanto espiritual quanto física. Embora esta última continue ocorrendo, seu sentido muda radicalmente por causa da esperança da futura Ressurreição geral. 

Um parêntese: o autor indica como os Santos Padres ensinaram que a morte física também tem um aspecto positivo. Mais do que uma simples ''punição divina'' ao pecado, como é encarada comumente no Ocidente, trata-se de um bem retirado de um mal, pois permite que o homem decaído coloque fim aos seus pecados seja pelo simples limite temporal colocado à sobrevivência sobre a terra, seja por oferecer uma oportunidade de discernimento da impermanência de um mundo sem Deus e a consequente oportunidade de metanoia [arrependimento] na contemplação do próprio e no dos demais entes. É neste sentido que a morte [física] abre espaço para a vitória sobre a própria morte [espiritual], o que mais tarde será realizado plenamente pelo Cristo.




2) Depois destes esclarecimentos sobre o significado acima descrito, a obra passa a descrever as percepções do sujeito durante o processo de separação entre alma e corpo segundo o que se pode depreender das fontes ortodoxas. Os santos, em geral, viam como uma benção a existência de uma período de preparação para a morte, no qual o homem toma consciência gradual de seu estado e do fim da vida terrena que se aproxima. Esta é uma alternativa muito melhor do que falecer de repente, sem preparação, caso que pode ser traumático para o indivíduo. O período de preparação não apenas pode facilitar o desapego dos laços mundanos como também incentivar o arrependimento, crucial neste momento fundamental da existência em que estamos prestes a ficar diante do temível tribunal de Cristo. 

O processo de separação do corpo e alma propicia uma série de percepções 'sobrenaturais' ao sujeito que por ele passa. Cito as mais importantes:

a) É muito comum que a pessoa se sinta ''fora do corpo'', ou dissociada dele, sobrevoando o local onde está morrendo. Neste estado, é capaz de discernir tudo o que está ao seu redor, incluindo aí os demais indivíduos e seus estados de ânimo. Isto ocorre ainda que o corpo se encontre inconsciente e incapaz de expressão pelas vias naturais. Trata-se de uma percepção por meios extra-corporais, portanto.

b) É praticamente universal a percepção do mundo espiritual por meio de sons, e, principalmente, do contato com anjos e demônios. Pelo menos dois anjos se farão presentes na morte do homem, o seu anjo da guarda e o seu anjo ''psicopompo'', que o acompanhará pelo mundo espiritual até o destino apontado pelo 'juízo particular' pelo qual vai passar. Os demônios, por sua vez, podem aparecer às centenas ou milhares, acusando e ameaçando o morto com faces monstruosas e iradas. Mas há também casos em que os demônios se apresentam belos, como seres de luz, provocando  pensamentos, sentimentos e ilusões de boa-aventurança, de modo a tirar o foco do indivíduo daqueles últimos momentos em que pode se arrepender de seus erros e se voltar para Deus. A maneira mais eficaz de discernir as ilusões demoníacas nesse estado é  lembrar que os anjos sempre evocam esta necessidade de metanoia, não necessariamente visões paradisíacas. 

c) Outro fenômeno universal é a apresentação diante da consciência de todos os atos experienciados pela pessoa ao longo de sua vida. Eles podem se apresentar de modo rápido, em ordem cronológica, ou se situarem diante do sujeito todos ao mesmo tempo, simultaneamente. Seja como for, o indivíduo tem percepção nítida de todos eles, testemunhando-os com agudeza. Este período é mais uma oportunidade para a metanoia e para a gratidão a Deus.

d) O indivíduo também pode ter a visão de outras pessoas que estão morrendo no mesmo momento que ela. Também ocorre, mais raramente e no causo de algumas pessoas santas, que sejam recebidas por Santos, Apóstolos, pela Toda Santa e Pura Theotokos ou até mesmo por Cristo Nosso Deus.


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Continua

sábado, 26 de abril de 2014

O Noé de Aronofsky entre o gnosticismo e o cristianismo -- parte 2

''… aconteceu de eu cair em um pecado muito perigoso para minha alma. Mas embora não fosse do meu hábito esconder uma serpente nas profundezas de meu coração, agarrei-a pela cauda e descobri imediatamente que ela era um médico.'' São João Clímaco citando um monge, ''Escada da Ascensão Divina''

“As paixões da carne podem ser descritas como pertencendo à mão esquerda, o orgulho como pertencendo à mão direita'' 

São Máximo o Confessor

A Arca contendo a síntese do cosmos material em meio às águas do Caos: Noé e seu mundo se recolhem por Justiça



No post anterior citei alguns temas tratados pelo filme ''Noé'', de Darren Aronofsky. Como eu dizia, o filme se desenrola a partir de uma mistura de mitologia gnóstica e cristã tradicional, realizando uma leitura do Dilúvio permeada por simbologia cabalística. Abaixo continuo falando de mais alguns temas abordados na obra.




A semente do Jardim e a Arca no Caos

Depois de tomar a poção que lhe é oferecida por seu avô Matusalém, Noé chega à conclusão que a Justiça Divina separará o joio do trigo por meio das águas, que purificarão e renovarão o mundo. Matusalém entrega a Noé uma semente original do Jardim do Éden, por ele plantada no acampamento de sua família em frente à alta montanha em que vive o grande xamã. Os anjos caídos desconfiavam de Noé, mas a semente  brota miraculosamente dando origem a quatro rios que se estendem trazendo vida ao ambiente estéril e chamando os animais para a região. É como se da semente surgisse uma reprodução em escala menor do Éden. Este tema será repetido na Arca, mas agora com um sentido centrípeto, já que ela reúne a síntese do mundo material em seu seio. Quando o Dilúvio se abate sobre a terra, Noé conta a história da Queda para seus filhos e acrescenta: ''Lá fora é mais uma vez o Caos, e aqui um microcosmo''. 

O corpo luminoso de Eva colhendo o fruto proibido, vermelho como a carne e pulsante como um coração




O maligno mundo material

Diferente da narrativa bíblica, no filme os filhos de Noé não eram casados. Se o 'Criador' escolhera salvar a descendência de Sete, onde estariam as esposas dos filhos de Noé que supostamente garantiriam a continuidade da linhagem? Essa pergunta, feita por Cam ao pai, permanecia sem resposta, inclusive diante da esterilidade de Ila, que se encontrava em amores com Sem. Andando em meio aos descendentes de Caim, que também foram atraídos pelos rios e árvores nascidas da semente do Éden e já sabiam da iminência do Dilúvio, Noé se vê diante de toda a corrupção humana. Era gente movida apenas por seus desejos, simbolizada na exploração gananciosa de minas de Tzohar e na domesticação e morte de animais. Segundo explicou Noé aos filhos, aqueles homens acreditavam que sua força provinha do consumo da vida dos animais esquecendo que ela tinha sua origem, em realidade, no 'Criador'. Os homens se alimentavam dos desejos que possuíam pelo mundo; nas visões que Noé recebia sobre a Queda, o fruto proibido e colhido pelos pais ancestrais tinha a forma e pulsava como um coração. Os descendentes de Caim chegavam a vender as próprias crianças para conseguirem carne. Neste momento, Noé tem uma revelação ao ver sua face no rosto de um homem que devorava um animal que conseguira em troca dos filhos. Transtornado, retorna ao acampamento parecendo ter encontrado a resposta para o enigma colocado por Cam. Não há esposas pois o mal não está presente apenas nos descendentes de Caim mas em todos os homens. A tarefa da família de Noé deveria ser a de salvar os animais, os únicos livres da Queda, e deixar que a impureza -- ou seja, a humanidade e não somente a linhagem cainita -- se extinguisse da face da terra. A mulher de Noé retruca, chamando a atenção para características positivas dos filhos: Sem era leal, Ham era íntegro etc. Mas Noé a interrompe, dizendo que Sem era servil, Ham era ambicioso e que até ela teria um óbvio defeito: ''E você...você faria de tudo, bom ou mau, pelos seus filhos, não é?'' Noé percebe claramente um aspecto fundamental da natureza feminina, ligada à perpetuação e preservação da vida, e o condena. 



Tubalcaim

Na narrativa escriturística, Tubalcaim é mineiro, ferreiro, inventor de armas, instrumentos de sopro e químico. Tais funções estão ligadas àqueles que dominam as artes mágicas, lidam com o segredo das forças telúricas e são artífices da civilização. O antagonismo entre Caim e Abel evidencia toda a desconfiança que as comunidades pastoris possuíam em relação ao modo de existência e à espiritualidade dos povos agrícolas, marcada pela ideia do homicídio e sacrifício primordial. No filme, Tubalcaim se intitula rei dos homens e vê em sua capacidade de decidir pela vida e pela morte a realização de sua igualdade com o 'Criador'. Sua religiosidade não é marcada pela obediência, mas pela busca e preservação da força para realizar aquilo que deseja -- encontrada por ele no consumo do mundo, nas minas de Tzohar e na alimentação carnívora. Ao ser impedido de entrar na Arca por Noé, neste momento protegido pelos ''Guardiões'', monta um exército para derrotá-los e sobreviver ao Dilúvio. Enquanto parte para a batalha pede ao 'Criador' para que lhe dirija a palavra, mas só encontra o silêncio. Tubalcaim consegue adentrar a Arca escondido, em meio ao caos do confronto entre homens e anjos decaídos, e ali se esconde com ajuda de Cam, que àquela altura estava rompido com o pai. Os dois planejam matar Noé, mas Cam demonstra dúvida sobre sua aptidão para o assassinato. Tubalcaim lhe diz que a capacidade de matar distingue o próprio ser humano: ''O homem não é regido pelos Céus, mas por sua própria vontade''. Nesta frase se encontra a chave de toda uma postura iniciática e teúrgica, que motiva o descendente de Caim a tomar de Lamec a pele da serpente edênica e a construir seu caminho para o interior da Arca ainda que contra a decisão de Noé. Mas se tem o segredo da centralidade da vontade e da decisão humana, falta a Tubalcaim a capacidade de ''escutar o Criador''. Cam toma a decisão de salvar o pai e mata Tubalcaim, que olha seu algoz nos olhos e lhe entrega a pele iniciática da serpente edênica dizendo: ''eis que você se tornou um homem''.

Noé e Tubalcaim: o profeta e o iniciado



Noé entre a Justiça e a Misericórdia

Os conceitos de Justiça e Misericórdia são usados tanto no cristianismo tradicional e no sistema cabalístico para se referirem a modos de ação de Deus no mundo, e se associam a temas morais, escatológicos, soteriológicos, cosmológicos e metafísicos, bem como ao simbolismo da direita e da esquerda. Nas Escrituras, Noé é escolhido por Deus por ser um ''homem justo'' e também Aronofsky o retrata buscando Justiça em todo momento. É esse ardor que o leva a matar caçadores de animais, entender a restauração do mundo como a dizimação da linhagem cainita e a concluir que sua própria família não merece ser perpetuada no novo mundo. Quando descobre que Ila -- cuja esterilidade foi sanada por Matusalém por pedido de sua mulher -- está grávida de seu filho Sem, Noé afirma que deixará o bebê viver caso seja homem, mas o matará caso nasça mulher e, portanto, seja capaz de perpetuar a humanidade. Nascem duas meninas e no clímax do filme Noé não consegue realizar sua ameaça. Pensando ter falhado com o 'Criador', se isola em uma caverna depois que as águas baixam, vivendo à parte dos seus. Quando Ila lhe pergunta porque poupou as netas, Noé afirma que ''naquele momento não sentia nada em seu coração senão amor absoluto''. Ila explica então que ele não fracassou, mas que o 'Criador' o havia colocado entre a Justiça a e Misericórdia, e que Noé havia escolhido por esta última. Um dos aspectos destes símbolos é a ligação da Justiça com a água, figurada na história pela comunhão e concentração das possibilidades do mundo na Arca durante o Dilúvio, um processo que ocorre com o próprio Noé. Já a Misericórdia, por um lado associada ao fogo -- que, segundo Matusalém, Enoque dizia que colocaria fim à criação no fim das contas --, também se liga, em um certo sentido, ao espraiamento do espírito divino no mundo. Noé inicia as netas com a pele da serpente edênica, que lhe foi dada por seu filho Cam, abençoando-as para que se multipliquem.

A serpente edênica abandonando sua glória original


A serpente da gnose

A serpente é um dos símbolos do próprio Cristo na tradição cristã. Ela está figurada na vara de Moisés, que jogada na terra se transforma em serpente diante do Faraó e devora as serpentes dos magos do Egito. Cristo também se compara à serpente de bronze enrolada em um poste que curava os israelitas no deserto quando picados por serpentes 'ardentes' enviadas por Deus para puni-los por sua falta de coragem. Ela é também expressão da phronesis, a prudência, sabedoria encarnada, que os Apóstolos devem emular quando enviados pelo mundo. Nas imagens da Queda no filme, Aronofsky faz a serpente edênica abandonar sua pele original e se tornar escurecida, vindo então a tentar o homem. A pele abandonada, em sua radiação gloriosa, é guardada pela linhagem de Sete e usada na iniciação do primogênito. A troca de pele da serpente, associada à queda e à morte, toma então o sentido contrário, de vitória sobre a morte através da própria morte.


[continua]


quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Noé de Aronofsky entre o gnosticismo e o cristianismo -- parte 1




Choveram críticas ao filme Noé, estrelado por Russel Crowe, por não seguir a narrativa bíblica. E lá fui eu prevenido ao cinema, pronto pra ver mais uma distorção humanista e secular de algum enredo cristão. Mas eis que o filme é excelente! A história de Gênesis é contada tendo como fio condutor uma costura de mitologia gnóstica, mas sempre em diálogo teológico com o conteúdo das Escrituras. Não há um aprofundamento monumental, claro, estamos falando de Hollywood. Também não há de se confundir a qualidade do filme com a de Ben-Hur ou similar. Mas o resultado está longe de ser ruim. Darren Aronofsky construiu um filme nada trivial e deu a cara a tapa pra todos aqueles que esperavam ou uma visão agnóstica ou uma perspectiva literalista do Patriarca Bíblico. Parece que o sujeito flerta com o misticismo judaico, e, consciente ou inconscientemente, sua película está permeada de símbolos e temas cabalísticos. No fim das contas, a película não perde seu gosto ''ortodoxo'' e cristão apesar das mudanças na história e nos personagens. Muitas análises da obra se mostram confusas sobre o que viram. [1] Abaixo faço alguns comentários sobre alguns dos assuntos abordados. 


O diretor que não é ateu

Em diversas matérias sobre o filme li que Aronofsky seria ateu. Muitos dentre os que preferiam que a história bíblica fosse recontada a partir de uma visão secular pretenderam ver na narração da criação feita por Noé uma menção à suposta falta de crença religiosa do diretor. No filme se diz que ''No Princípio não havia nada, apenas trevas infinitas''. Esta frase, no entanto, passa longe de qualquer agnosticismo, ainda quando contrastada com todo o contexto que se segue. A existência do Criador é dada por certa por todos os personagens, e ele mesmo intervém na fluxo dos acontecimentos, mantendo contato com Noé por meio de visões e sonhos. A noção de ''trevas'' e ''nada'' original é comum em textos gnósticos para se referir à Infinitude Divina, completamente apartada de qualquer definição possível. Aliás, este aspecto permeia todo o filme: o Criador intervém e se comunica, mas seu caráter misterioso e transcendência permanecem em todo o momento. Quando se fala dele e de sua vontade, é sempre sob o olhar dos homens, que buscam compreender o que está acontecendo da maneira que podem e em seus próprios limites. Ou seja, não há no filme um narrador onisciente que possa dizer, de modo exato, aquilo que o Criador realmente tem em mente. Mesmo Noé sabe apenas fragmentos da verdade, e necessita de auxílio de outros para compreendê-los. 



As minas de Tzohar

Nos versículos sobre a construção da Arca, no capítulo 6 de Gênesis, Deus diz a Noé para iluminá-la com um ''tzohar''. A palavra pode significar uma abertura, um janela que traria iluminação de fora. Mas no misticismo judaico era encarada como sinônimo de uma gema ou pedra mística que guardaria em seu interior a luz divina. Tzohar é o símbolo da luz celeste que existiria no interior da própria Criação, e que seria fonte de poder e iluminação para todos que a possuíssem. No filme, os homens escavam e destroem o mundo em busca de Tzohar, pedras luminosas com as quais erguem suas cidades e tecnologia. Não se fala muito sobre elas, mas fica nítido que toda a terra é quase que uma grande mina de Tzohar, alvo da ganância dos filhos de Caim. Vemos Tubalcaim usar uma pedra destas como arma e é também através dela que Noé produz luz e calor na Arca. O brilho das pedras é idêntico no filme ao dos ''Guardiões'', seres espirituais decaídos e presos em corpos de rocha, e dos quais falarei logo mais.


O xamanismo e o misticismo judaico

Em algumas entrevistas, Darren Aronofsky se diz cético quanto à religião organizada mas interessado na ''verdadeira espiritualidade'' que ''uniria todas as religiões''. Afirma também ter conhecido cabalistas e xamãs capazes, segundo ele, de realizar milagres reais [2]. Isso explica até certo ponto o retrato que fez de Matusalém. Nas Sagradas Escrituras, ele é pai de Lamec, pai de Noé. O vínculo parental é mantido no filme, mas sua importância é bastante amplificada. Noé começa a ter visões da Queda de Adão e Eva e da mortandade do Dilúvio e resolve procurar seu avô para que ele o ajudasse a entender as mensagens vindas do Criador. Empreende então uma peregrinação, fugindo dos malévolos filhos de Caim e atravessando a terra dos ''Guardiões'', dos quais cai prisioneiro. No caminho, resgata e acaba adotando uma menina, Ila, cuja aldeia foi toda saqueada por homens em busca de Tzohar. A menina tem um ferimento grave que a torna em uma mulher estéril. Um anjo decaído, reconhecendo em Noé uma centelha do Adão original, o guia até a alta montanha onde habita seu avô. Matusalém conhece artes mágicas, possui uma sabedoria ancestral e é versado em poções de poder. Ele fica intrigado ao saber da visão do Dilúvio, já que seu pai, Enoque [que nas Sagradas Escrituras ''anda com Deus'' e é por Ele arrebatado vivo para os Céus], havia lhe contado que o mundo chegaria ao fim por meio do fogo. Faz então uma bebida que auxilia Noé a aprofundar sua percepção da visão recebida. Matusalém passa boa parte do filme, até sua morte no Dilúvio, procurando frutos silvestres, cuja existência e sabor já haviam se apagado de sua memória -- que por sua vez foi reavivada por seu neto, Sem, que conta ao avô que tais frutos eram aquilo de que mais gostava no mundo. A intervenção mais poderosa do grande xamã ocorre a pedidos da mulher de Noé, que teme que seus filhos morram sem descendência. A benção de Matusalém coloca fim à esterilidade de Ila.



As duas linhagens

Após o primeiro homicídio, o de Abel pelas mãos de seu irmão Caim, a humanidade se divide em duas linhagens. Os descendentes de Sete, terceiro filho de Adão e Eva, que foi gerado em substituição a Abel, mantém a fidelidade ao Criador e invocam Seu nome. A descendência do amaldiçoado Caim, por sua vez, vive de acordo com sua própria vontade. Este tema, comumente presente na literatura gnóstica, também está explicitado nas Sagradas Escrituras. A linhagem de Caim cria as primeiras cidades, torna-se especialista na guerra, na tecnologia e na mineração do Tzohar. Uma de suas principais características no filme é o consumo de carne, uma marca de sua profunda separação da linhagem de Sete. Em uma das cenas iniciais do filme, Lamec está pronto a iniciar Noé no segredo passado de pai para filho desde o Éden. Com o braço envolto na pele da serpente original do paraíso perdido, ele diz ao filho que ''O Criador fez o homem à Sua imagem e deu-lhe o cuidado do mundo''. Mas esta iniciação é interrompida quando Tubalcaim, rei dos homens e descendente de Caim, mata Lamec e toma para si a relíquia sagrada, ou seja, a pele da serpente. Para Tubalcaim, a expulsão do Éden o obriga a viver com o suor de seu rosto, e ''ai dele senão tomar aquilo que deseja''. Em uma das cenas iniciais, Noé vê Sem, seu filho, colhendo uma flor por causa da beleza da dita cuja. Ele o repreende, dizendo que cada coisa tinha seu lugar na ordem natural, e que eles só deveriam pegar aquilo que precisassem. A ênfase na harmonia desta ordem natural é tão forte em Noé que ele chega a matar caçadores de animais, tomando para si a tarefa de realizar Justiça contra os homens, que não viveriam segundo a realidade edênica primitiva. Tubalcaim tem uma perspectiva diferente sobre o papel da humanidade. Ele não hesita em domesticar, matar e comer animais, incluindo aí os raros exemplares salvaguardados na Arca. Em conversa com um dos filhos de Noé, Cam, o rei dos cainitas explica que o homem, imagem do Criador, está acima da natureza, e que todos os demais entes devem servi-lo: ''O mundo é para nosso usufruto; saboreio-o'', afirma, enquanto atira um pedaço de carne para Cam. Na primeira interpretação das visões que recebe, Noé conclui que a Justiça Divina se abaterá sobre os cainitas, que seriam dizimados pelo dilúvio. As águas separariam a linhagem impura da pura e assim o mundo poderia ser renovado pelos descendentes de Sete, retornando à bondade original. 


Os anjos caídos

Em um dos versículos mais misteriosos das Sagradas Escrituras, os ''Filhos de Deus'' são atraídos pela beleza das ''filhas dos homens'', procriando com elas e gerando uma raça de gigantes, os heróis conhecidos nos dias antigos. As Epístolas neotestamentárias confirmam a mencionada queda dos anjos, afirmando que eles foram acorrentados por causa deste pecado. Até o século IV, a maior parte dos Santos Padres corroborara esta interpretação, mas a partir de então uma visão alternativa nasceu, a de que os ''Filhos de Deus'' citados seriam descendentes de Caim que teriam se misturado com a linhagem de Sete. Na literatura gnóstica, particularmente no famoso ''Livro de Enoque'', os anjos luxuriosos que fornicaram com mulheres teriam ensinado aos homens as artes e ofícios da guerra e da civilização, além das artes mágicas e a feitiçaria. Como punição, teriam sido aprisionados sob montanhas, como Titãs no Tártaro. O filme mantém grande parte desta estrutura narrativa, inclusive dando aos seres decaídos o mesmo nome que recebem no Livro de Enoque e no misticismo judaico, mas com algumas modificações. Em nenhum momento se diz que os anjos caíram por luxúria, e sim por amor e piedade aos homens. Uma vez chegados à terra, eles teriam sido revestidos por corpos pesados, de pedra, sob a qual ainda se poderia ver, de longe, o fulgor de seu brilho original. Assim aprisionados ao mundo, teriam buscado auxiliar os cainitas com os segredos da civilização, apenas para se decepcionarem com a crescente maldade dos homens. Foram inclusive caçados por eles, e tiveram de se esconder, desesperançados, em terras estéreis e desoladas. Depois da desconfiança inicial, esses anjos decidem ajudar Noé, convencidos de que ele foi enviado pelo Criador, ao qual poderiam mais uma vez servir. Aronofsky entrelaça mais um tema na história dos anjos caídos. Na literatura gnóstica, as almas pessoais são partículas da Divina Sofia, que havia sido aprisionada ao grosseiro e corrompido mundo material, e que deveriam ser libertadas pelo conhecimento, retornando ao seu verdadeiro lar, a realidade supra-espiritual. Aronofsky  faz com que o brilho dos seres decaídos por trás de seu disforme corpo rochoso seja o mesmo da gema do Tzohar. Os ''Guardiões'' defendem a Arca do exército dos descendentes de Caim, que nela desejam entrar à força. Nesta batalha, o líder deles, Samyaza, é ferido na altura do coração. Mas não morre, antes é libertado do corpo de rocha e ascende verticalmente aos céus. Os demais "Guardiões'' percebem que o Criador permitiu que ele retornasse para 'casa' e intensificam sua luta. Um a um caem na batalha, deixando seus corpos e ascendendo de volta aos céus. 


[continua...]


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[1] O teólogo Brian Mattson descreve o filme como gnóstico [Simpatia pelo Diabo], já o cristão ortodoxo Peter Chattaway diz que a obra é tudo, menos gnóstica [Noé não é gnóstico], preferindo-a encara como uma forma de midrash judaica concordante, em sua maior parte, com a perspectiva cristã tradicional.

[2] Entrevista de Aronofsky e Mais uma entrevista de Aronofsky: diz ele que ''When we started working on Pi and putting these elements into the film, I used my Hassidic connections in Brooklyn to get to some of the leading Kabbalah scholars in the world. There are basically three heavy-duty rabbis out there who are these big, big mystics. They're like these Jewish shamans that go around the world and perform little miracles. They shared a lot of their secrets with me, and a lot of their stories. There's some stuff that would blow your mind and we brought that to Pi. Everything in the film is completely, 100% true.''