sábado, 27 de janeiro de 2024

O Problema Sinótico e a Hipótese Q


Muitos cristãos são pouco familiarizados até com as linhas mais gerais das pesquisas sobre as origens do cânone bíblico ou, de modo mais específico, dos Evangelhos. Existe uma extensa literatura que debate sobre a formação dos livros, sua autoria, as fontes usadas e questões correlatas.


Os Evangelhos foram escritos mesmo por testemunhas oculares? Quais seus verdadeiros autores? Em que fontes eles se apoiaram para construir o texto? Os autores dos diferentes Evangelhos conheceram os textos uns dos outros? Qual a data em que os Evangelhos foram escritos? O que é exatamente o Problema Sinótico, e por que alguns falam tanto de uma ''fonte Q"? São problemas importantes não só para nosso conhecimento sobre o Novo Testamento mas também para todo um campo de pesquisas denominado ''Jesus Histórico".


Recentemente, parei para assistir alguns vídeos do professor da UFRJ André Chevitarese depois de descobrir que ele criou um canal no Youtube durante a pandemia a fim de divulgar suas pesquisas e cursos sobre o Jesus Histórico. O canal tem um bom público, e aqui e ali é citado como referência por pessoas interessadas nestas questões.


Fiquei decepcionado ao perceber que o modo de argumentação de Chevitarese pouco mudou nos últimos vinte anos. Ele continua apresentando hipóteses e especulações como se fossem ''conhecimento consolidado'' e criando espantalhos constrangedores quando contestado.


Nos vídeos, Chevitarese zomba de quem adverte que a fonte Q é só hipotética, dizendo que ''existem mais de 15 mil trabalhos, artigos e livros'' dedicados a ela, e que proposta remonta a ''teólogos alemães do início do século XIX".


Bom, e daí? Q continua uma hipótese. Não há nenhum sinal concreto de sua existência. Nenhum fragmento, nenhuma menção em obra ou autor da Antiguidade. Existem hipóteses ainda mais antigas, como por exemplo a dos dois evangelhos. Além disso, nem todas as questões levantadas pelas comparações entre os evangelhos são resolvidas por Q.


Pior ainda, diferente do que o pesquisador diz nos vídeos, o status de Q nos estudos do Jesus Histórico caiu muito nas décadas mais recentes. Vinte e cinco anos atrás, quando Chevitarese passou a se dedicar a esse tema, a hipótese das duas fontes era praticamente um consenso historiográfico. Q era uma tese tão hegemônica que o ''problema sinótico'' era praticamente dado como resolvido.




Mas desde que Mark Goodacre publicou Case Against Q, em 2002, o panorama mudou. Ano após ano, a confiança da Academia em torno da hipótese foi diminuindo. Hoje em dia, ela continua sendo a solução mais forte, mas está muito longe de ser incontroversa, muito menos conclusiva. O status quaestionis é de que o problema sinótico persiste.


Surpreende as afirmações de Chevitarese de que temos ''dois documentos'' com uma teologia prístina sobre Jesus: a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, em que Cristo é apresentado com um status divino, cuja paixão e ressurreição nos redime dos pecados, e que teria constituído Doze Apóstolos para espalhar a Boa Nova; e Q, ''em que Cristo não tem Apóstolos, e sim seguidores [tanto homens quanto mulheres], e em que não Ressuscitou".


Não temos dois documentos. Temos um só, a carta de São Paulo. O outro é pura especulação de Chevitarese, não só porque Q é hipotético, mas também porque não há segurança sobre seu conteúdo. Ninguém sabe ao certo a inteireza e o teor de Q, caso tenha existido. Existem tentativas, mais ou menos fortes, de elaborar como essa fonte seria. Mas essas reconstruções são ainda mais hipotéticas do que a própria existência de Q, por motivos óbvios.


Mas o professor Chevitarese grava os vídeos cravando que Q existiu, que dada reconstrução dessa fonte hipotética é líquida e certa, e que ela permite assegurar o que seria o cristianismo primitivo de judeus helenizados da Galileia dos anos 40 e 50 do primeiro século. E ainda joga ''anátemas acadêmicos'' e dá carteiradas em quem ousa levantar dúvidas.


Uma lástima completa.


Bom, o que significa Q? Por que essa hipótese foi hegemônica e agora perdeu força? Que problema visa solucionar?

Vamos entender primeiro no que consiste o Problema Sinótico.

Dos quatro evangelhos canônicos, três são bastante similares: Mateus, Marcos e Lucas. Eles tem uma estrutura narrativa parecida, se referem a um número imenso de episódios comuns, e muitas vezes se utilizam das mesmas frases para contar esses eventos.

Para se ter noção do nível de concordância: mais de 95% do evangelho de Marcos está contido em Mateus. 80% de Marcos está em Lucas. E dois terços do texto de Lucas coincide com o de Mateus em algum grau [70% de Mateus está em Lucas]. O conjunto de passagens comuns a a esses três Evangelhos é chamado às vezes de ''tripla tradição''.

[Notem que um quinto do Evangelho de Mateus não se encontra em nenhum dos outros dois. O mesmo acontece com um terço do evangelho de Lucas.]

Alguns creem que as similaridades se devem à existência de um mesmo autor espiritual, uma forma de inspiração divina mecânica, que faz com que esses textos usem as mesmas palavras, quase como se estivessem sendo ''ditadas'' por um mesmo espírito. Mas essa posição, além de reproduzir uma visão um tanto polêmica do que seria a inspiração divina, não dá conta de explicar as diferenças, que também são importantes, entre estes três evangelhos.

No campo da pesquisa histórica, as semelhanças entre os evangelhos sinóticos [Mateus, Marcos e Lucas] levou a um conjunto de pretensas soluções. Uma delas seria imaginar a existência de fortes tradições orais capazes de se manter quando da redação dos três textos.


Ninguém duvida que as perícopes, histórias e 'ditos' de Jesus Cristo corriam à solta em forma oral nas primeiras comunidades cristãs. Mas essas tradições primevas provavelmente eram em aramaico, língua comum da Palestina do primeiro século, enquanto os evangelhos canônicos se encontram em grego. Ora, supor que esta tradição oral ficasse incólume ao ser vertida para o grego a ponto de reproduzir frases inteiras com a mesma sequência de palavras e até o uso dos mesmos verbos seria tão incrível quanto a hipótese da ''psicografia'' que mencionei aí em cima.


De modo que resta supor que as semelhanças existem porque os redatores dos três evangelhos tinham alguma dependência um do outro ou porque usavam fontes LITERÁRIAS comuns. E aí vem a questão de saber quem depende de quem ou que fontes literárias comuns seriam essas. Lucas já tinha lido Mateus? Marcos conhecia o texto de Lucas? Qual deles escreveu primeiro?


Percebam que nada aí atenta contra a fé cristã ou a inspiração dos textos. Desses três evangelistas, só um era supostamente uma testemunha ocular dos eventos: Mateus. Segundo a Tradição, Marcos era discípulo de São Pedro em Roma. E Lucas era companheiro de viagem de São Paulo. Aliás, o próprio São Lucas afirma no início de seu Evangelho que existiam outros textos sobre Jesus circulando, e que ele estava construindo uma composição baseado em uma investigação que dependia do testemunho de terceiros.


Pois bem, a hipótese Q, mais pomposamente chamada e ''teoria das duas fontes'', é uma das formas encontradas de se responder a este enigma. Ela foi elaborada, inicialmente, por teólogos alemães [protestantes] em meados do século XIX; e no último terço do século XX se tornou hegemônica, quase definitiva, nos estudos do Jesus Histórico.


Esta hipótese se fundamenta nas evidências internas dos textos e em princípios de razoabilidade e probabilidade. Isso significa também que ela não dá a mínima para as evidências externas, ou seja, os testemunhos fornecidos por obras e autores da Antiguidade, como os Padres da Igreja -- que tinham suas próprias visões sobre como estes evangelhos foram escritos. A restrição a elementos internos dos evangelhos é uma força ou uma fraqueza da teoria, a depender do ponto de vista.


Resumindo bastante o assunto, a hipótese parte de dois pilares:


i. Marcos teria sido escrito primeiro que os demais. Segundo os defensores da hipótese, a precedência de Marcos decorre de ser um texto mais curto, com teologia menos elaborada, gramática muito menos rebuscada, e pelo fato de estar contido quase inteiro em Mateus e Lucas. Para eles, seria estranho que Marcos fosse escrito depois e tivesse ''cortado'' vários episódios presentes nos dois outros sinóticos.


ii. Mateus e Lucas seriam completamente independentes, ou seja, Lucas não conhecia o texto de Mateus e vice-versa. Eles não consideram crível que houvesse dependência recíproca e ainda assim esses dois textos apresentassem discrepâncias tão sensíveis quanto a genealogia e o nascimento de Jesus. Mateus fala de Reis Magos e do massacre de inocentes em Belém a mando de Herodes [e a consequente fuga de José e sua família para o Egito]. Por que Lucas deixaria isso fora de seu texto? Além disso, Lucas dá informações importantes, como a de que João Batista [o Precursor] era parente de Jesus Cristo. Por que Mateus se calaria sobre isto?



Se os dois pontos acima estão corretos, é fácil imaginar que tanto Lucas quanto Mateus tenham sido redigidos tendo Marcos em mãos. Pronto, isso explica porque metade de Mateus e 40% de Lucas convergem com Marcos. Aí vem o outro 'porém' necessário para entender a totalidade da hipótese: 1/4 de Mateus e Lucas coincidem mas não estão presentes em Marcos. Quer dizer, 1/4 dos episódios em Mateus estão em Lucas [e vice-versa] com sequências de palavras e até verbos e frases iguais. Mas esses episódios não estão em Marcos -- chamamos a isto de dupla tradição, pra diferenciar da tripla tradição, a saber, os episódios que constam em todos os três sinóticos --, o que leva a supor que Mateus e Lucas escreviam não só com Marcos em mãos, mas com um segundo documento literário, uma segunda fonte, que foi batizada de Q [do termo ''quelle'', que significa 'fonte'].


E assim se resolve, segundo os apoiadores dessa tese, o problema sinótico. As concordâncias entre os redatores independentes Mateus e Lucas se devem ao fato de ambos usarem duas fontes em comum, os textos mais antigos de Marcos e de Q. O terço do Evangelho de Lucas que está só em Lucas, e em nenhum outro evangelho, assim como o quinto de Mateus que só se encontra em Mateus e mais ninguém, dizem respeito a tradições independentes usadas por cada um destes redatores. [Daí que a tese original das duas fontes pode se desdobrar facilmente em quatro fontes originais: Marcos e Q, e talvez M e L -- de Mateus e Lucas --, sejam estas duas últimas múltiplas ou não, tradições orais ou escritas].


Alguns foram ainda mais longe, tentando reconstruir o que seria Q a partir das convergências em Lucas e Mateus que são atribuídas a este documento. Dentre os defensores, passou a ser forte a opinião de que Q não teria uma estrutura narrativa, seria um ''evangelho de ditos''. Ou seja, de parábolas, aforismos, frases atribuídas a Cristo, mas sem contar uma história.


Daí o furor quando o Evangelho de Tomé foi encontrado no Egito em 1945, pois ele se trata de um texto apenas de ''ditos''. Os defensores de Q tiveram a certeza de que estavam na pista certa, e a tese se tornou hegemônica durante o restante do século XX, e quase que incontestada a partir dos anos 1970, quando a tradução de Tomé foi publicada. A existência de Tomé provava que os primitivos cristãos tinham coletâneas escritas de ditos de Jesus, o que tornava a hipótese Q ainda mais crível.


[O Evangelho de Tomé é uma história à parte. Sua existência já era conhecida por escritos de Padres da Igreja do início do século III, como São Hipólito de Roma e Orígenes. A cópia encontrada em Nag Hammadi é de meados do século IV, mas ela permitiu identificar fragmentos da segunda metade do século II e primeira metade do século III como passagens deste evangelho. Alguns pesquisadores entusiasmados chegam a datar o 'original' na primeira metade do século I, o que o tornaria uma dos documentos mais antigos sobre Jesus. Mas hoje essa posição é minoritária, e a Academia tende a considerá-lo um texto do segundo terço do século II. De todo modo, as camadas de tradição oral no Evangelho de Tomé são bem antigas: 80% dos ditos contidos ali tem paralelos nos Evangelhos canônicos. O restante é provável adição gnóstica -- a cópia foi encontrada junto a um conjunto de textos gnósticos. Outra questão é saber qual é a dependência de Tomé em relação aos canônicos. Os redatores de Tomé conheciam e usaram Mateus, Marcos, Lucas e João? Não se sabe, mas muitos consideram possível.]


Problema resolvido? Longe disso. A tese das duas fontes começou a perder fôlego na Academia a partir do início dos anos 2000. Ela já não é incontroversa, nem incontestável, nem a única no ''mercado intelectual''. O primeiro grande obstáculo para sua aceitação é que, se levarmos em consideração todos os argumentos para Q [prioridade de Marcos, independência completa entre Lucas e Mateus, evangelho de ditos, desprezo pelas evidências externas etc.] ainda assim a hipótese não resolve todas as questões dos sinóticos. A mais constrangedora dela são as ''concordâncias menores" entre Lucas e Mateus.


Como assim?


É que Mateus e Lucas não ''copiam e colam'' de Marcos. Eles redigem em cima da fonte Marcos. Eles pegam o texto e o reescrevem. Nessa reescrita, temos o uso de frases ou sequências de palavras inteiras em comum, mas é sempre uma ''reedição'', não uma cópia pura e simples. Os textos de Mateus e Lucas que supostamente usam Marcos como fonte tem estilo próprio e podem divergir de Marcos em detalhes, acrescentando ou retirando algumas palavras, usando um grego mais rebuscado etc. Ou seja, na redação existiriam ''desvios'' e pequenas mudanças em relação ao ''original'' [Marcos]. Nenhum mistério até aqui.


O problema é quando a redação de Mateus se desvia da de Marcos em um mesmo trecho em que a redação de Lucas se desvia também, e no entanto os dois desvios coincidem um com o outro. Ou seja, Mateus e Lucas, fazendo suas redações em cima de Marcos, e supostamente sem conhecerem o texto um do outro, fazem mudanças no original [retirando palavras, acrescentando palavras, dando esse ou aquele nuance] de maneira simplesmente...idêntica! Isso não acontece apenas um ou duas vezes. Mas dezenas de vezes.


Óbvio que se trata de um problema acachapante e aparentemente insolúvel pela hipótese das duas fontes. Será que Q também inclui estruturas narrativas que coincidem com Marcos e que são usadas por Mateus e Lucas nesses trechos? Será que é a tradição oral? Como resolver?


Até que alguns pesquisadores notaram, finalmente, que o problema das ''concordâncias menores'' em Mateus e Lucas poderia ser solucionado derrubando um dos pilares da hipótese das duas fontes: basta que Lucas tivesse acesso a Mateus [ou vice-versa] para explicar a dupla tradição. Se Lucas usa não só Marcos mas também Mateus como fonte [ou se Mateus usa Marcos e Lucas], então não só a tripla mas também a dupla tradição estão solucionadas.


Só que isso também torna a hipótese Q totalmente irrelevante, resolvendo também outro pretenso ''mistério'': por que não se encontra nenhum fragmento desse importante documento, e por que ele não é citado por nenhum autor da Antiguidade, seja ele Padre ou não da Igreja? Bom, talvez porque ele nunca tenha existido.


As alternativas para a hipótese das duas fontes podem ser multiplicadas, mas acho que as linhas principais são essas. Cabe acrescentar dois tópicos: nem mesmo a prioridade de Marcos é incontroversa. É verdade que ela é aceita pela maioria dos estudiosos do problema sinótico, mas tudo se baseia em argumentos de razoabilidade construídos em cima de evidências internas dos próprios textos. Portanto, nada disso é conclusivo.


Nada implica que Marcos não possa ser uma versão mais curta dos outros dois Evangelhos. Que se fundamente principalmente na pregação [kerigma] de São Pedro [e portanto seja econômico em sua estrutura narrativa]. O texto deste Evangelho de fato apresenta um padrão de construção mais próximo à oralidade, similar a um discurso longo, uma ''pregação'', e traz também ''latinismos''. Por uma análise crítica, é bastante razoável supor que tenha origem de fato na Itália.


Pode acontecer também de Marcos ser uma transição entre Mateus e Lucas [em vez de anterior ou posterior a ambos]. Nenhuma dessas opções pode ser decisivamente excluída só com base em evidências internas aos textos. Pode-se, no máximo, argumentar sobre o que seria mais ou menos provável.


Este é um ponto importante porque todo debate acima se dá minimizando o peso do que foi dito pelos próprios Padres do segundo e terceiro séculos. Alguns deles trataram da origem dos Evangelhos. O testemunho mais antigo é o de São Papias, que por volta do ano 100, e portanto ainda mergulhado na era apostólica, afirmou que Mateus tinha escrito primeiro uma versão em ''estilo hebraico'', mais tarde traduzida para outras línguas, e que depois Marcos, em Roma, colocou por escrito as pregações de São Pedro.


São Clemente de Alexandria e Santo Irineu de Lyon, também escrevendo no segundo século, concordam com Papias quanto a prioridade de Mateus. [A hipótese atual mais forte que mantém a prioridade mateana é a de Griesbach -- chamada também de ''teoria dos dois evangelhos'' por supor a prioridade de Mateus e Lucas].



Finalizando, chamo atenção para o que diz a Santa Tradição, que não entra nessas querelas acadêmicas: o primeiro Evangelho é o do Glorioso São Mateus, que o escreveu em hebraico ainda nos anos 40 e depois o verteu para o grego; São Marcos escreveu seu Evangelho em cima da pregação de São Pedro, quando em Roma; São Lucas escreveu seu Evangelho quando em missões ao lado de São Paulo; e, por fim, São João escreveu seu texto por último, já depois da destruição do Templo.


ps.: Os primeiros documentos que temos sobre Jesus não são os Evangelhos, e sim as cartas de São Paulo, algumas datadas da virada dos anos 40 para os 50. O que inclui as alegações na primeira carta aos coríntios, capítulo 15 ["eu vos transmiti primeiro o que eu mesmo havia recebido...''], evidenciando que a Ressurreição é, indiscutivelmente um dos ensinamentos mais prístinos na história do cristianismo.

pps.: o Evangelho de São João Teólogo é considerado uma tradição independente dos sinóticos. Os historiadores datam sua redação final da última década do primeiro século. Ele é marcado por um retorno à polêmica com os judeus, em um contexto em que os cristãos já estavam completamente apartados das sinagogas, além de uma resposta aos ebionitas [que negavam a divindade de Cristo].


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

DATANDO OS EVANGELHOS SINÓTICOS



Há de se ter sempre cuidado com os critérios de evidência interna do texto utilizados pelos especialistas na composição histórica dos cânones bíblicos.


Por exemplo, a maioria deles considera o libro do Justo Profeta Amós como da primeira metade do século VIII a.C. Mas alguns veem camadas que pertencem ao século VI a.C.

Qual é o argumento? Ora, o de que o livro prevê a destruição de Jerusalém.

O pressuposto aí é que Amós não poderia ter profetizado o evento. O trecho teria de ser escrito depois do ocorrido. Eis o perigo de se ater a um viés travestido de ceticismo metodológico.

Pois algo parecido acontece com a datação dos Evangelhos. A razão mais forte para que datem os Evangelhos de São Lucas e de São Mateus no fim dos anos 80 é que se imagina que eles tem de ser escrito: i. Depois da destruição de Jerusalém e do Segundo Templo pelos romanos, e ii. Depois do Evangelho de São Marcos.

Afinal, Cristo profetizou a debaclé, e a pesquisa prefere apostar que os textos sejam uma releitura cristã das Guerras Judaicas projetada no passado como um discurso de Juízo Divino atribuído ao Senhor.

O curioso é que isso não é justificável sequer em um viés cético. Afinal, os relatos proféticos contra Jerusalém e o Templo são comuns na literatura sagrada, como o próprio Amós é prova. Seria simples supor, nessa ótica, que Cristo estivesse emulando os Profetas.

Mas há um argumento forte, e bem ao gosto daqueles que preferem se restringir a evidências textuais, para que a data dos sinóticos seja anterior ao ano 70.

É consenso de que o autor de Atos dos Apóstolos é o mesmo do Evangelho de São Lucas, não só pelo estilo das duas obras mas também porque uma é apresentada como continuação da outra já nos primeiros versículos. Ou seja, Atos dos Apóstolos foi escrito em conjunto ou pouquíssimo tempo depois que o Evangelho de São Lucas.

Ora, o tema de Atos é a expansão da Igreja por meio de missões, principalmente as lideradas por São Pedro e por São Paulo. Ambos desembocam em Roma em algum momento, onde sabemos que foram martirizados durante as perseguições desencadeadas por Nero -- segundo Tácito, elas começam no ano 64.

Só que Atos dos Apóstolos não faz nenhuma menção a esta perseguição, ou à morte de São Paulo e de São Pedro. Também não há menção à execução ilegal de São Tiago, o Justo, que tem papel importante na obra como líder inconteste da Igreja de Jerusalém -- e que foi morto pelos sacerdotes judeus nos anos 60, tanto segundo Flávio Josefo quanto Santo Hegésipo.

Nada se diz tampouco sobre a destruição de Jerusalém e do Templo, ou, de modo mais amplo, do início das Guerras Judaicas.

O livro chega ao fim com São Paulo vivo e bem em Roma, detido mas bem tratado o suficiente para cuidar do crescimento da comunidade ''com liberdade e sem proibição''.

Isso não tem sentido caso a obra datasse do fim dos anos 80 ou início dos 90, como se pretende. Mas faz todo o sentido do mundo caso o autor a escrevesse antes da perseguição, ainda na primeira metade dos anos 60.

Se essa linha de raciocínio estiver correta, o Evangelho de São Lucas tem foi escrito antes dessa data, já que Atos lhe dá continuação.

E isso muda inteiramente a datação dos demais Evangelhos, principalmente se Mark Goodrace e outros estiverem corretos em sua negação da fonte Q -- tem que tratei noutro local. São Lucas teria conhecimento do Evangelho de São Mateus, que assim seria decididamente da década de 50, jogando São Marcos igualmente para essa época.

Não vou tratar da questão da chamada ''prioridade de Marcos'' aqui. Mas estas observações já são suficientes para alertar o quão frágeis são as tentativas de datar os Evangelhos de forma tardia.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Margaret Barker, o Cristianismo e a História

  ''E Maria passou a ficar no Templo como uma pequena pomba, recebendo seu sustento das mãos de um anjo.''


Proto-Evangelho de Tiago






As ideias da Margaret Barker reproduzem um ''clima intelectual'' muito em voga nos estudos sobre o antigo Judaísmo.


Os historiadores finalmente conseguiram confirmar o pano de fundo da Reforma do Rei Josias e da produção dos textos do que se convencionou chamar de "História Deuteronômica". A Arqueologia demonstrou, sem sombra de dúvida, que entre os séculos IX e VII a.C., os Reinos de Israel e de Judá eram sociedades politeístas no sentido mais comum do termo.


Tanto a religiosidade popular e cotidiana, quanto o culto no Templo [o primeiro Templo] estavam imersos nas crenças e práticas cananeias. Então, se orava e se fazia sacrifícios pra vários deuses e deusas. Incluindo no Templo. Se sacrificava para Moloch, se adorava Astarte, Asherá etc.

As Sagradas Escrituras se referem a esta situação e a remontam ao fim do Reinado do próprio Salomão, que teria se rendido aos cultos de suas mulheres e concubinas.

A questão é: segundo a ''História Deuteronômica'' registrada pela Reforma de Josias, o politeísmo era uma degradação da Revelação recebida por meio do Santo Profeta Moisés, o Vidente de Deus. A Reforma seria uma maneira de retornar à religião primitiva dos hebreus.

Mas muitos na Academia veem a Reforma de Josias como uma "evolução" de Israel rumo à monolatria, não como retorno a uma situação original. [Algumas teses vão além, e julgam a Reforma como uma reação intolerante e masculinista contra a religiosidade até então vigente.]

Margaret Barker tem de ser entendida a partir daí. Quando ela diz que consegue recuperar os principais elementos presentes no Culto do Primeiro Templo, e que o Cristianismo é um retorno a este Culto Original, ela parte do princípio de que não houve nada antes da religião henoteísta [segundo ela] dos séculos IX ao VII a.C. Não houve Páscoa, Êxodo, Monte Sinai etc.

Não seria necessário entrar em detalhes sobre a possível reconstrução que ela faz do culto do Primeiro Templo para entender que essa hipótese é inaceitável diante do ponto de vista cristão, incluindo aí o ponto de vista de alguns dos autores em cima dos quais ela vai enxergar elementos que confirmariam suas teses.

O culto do Primeiro Templo, segundo uma ótica cristã, estava degenerado desde o fim do Reinado de Salomão. Ele não prestava. Logo, a Igreja não podia ser uma recuperação daquela teologia. Tinha de ser uma superação completa e em consonância com o Sinai.

[Não digo com isso que a Reforma do Rei Josias foi uma maravilha. A interpretação é de que ela apenas adiou a Ira Divina, que teria vindo com a conquista de Israel pelos babilônios. Aliás, o topos da Reforma de Josias deixou um legado interessante do imaginário moderno, e um dia pretendo explorar este tema.]

Só que a reconstrução que Barker se dispõe a fazer do culto do Primeiro Templo tampouco pode ser levada a sério no âmbito histórico em que ela se coloca.

Os problemas metodológicos são muito evidentes. Ela pretende entender o culto do Primeiro Templo a partir de uma releitura dos próprios textos hebraicos a partir da premissa de que foram alterados [ou por vocalizações diferentes dos massoretas e/ou pelo trabalho de escribas da história deuteronômica etc.] com o propósito de esconder o tipo específico de henoteísmo que ela enxerga.

Para além das pressuposições que esta hipótese carrega, as mudanças textuais que Barker faz pra forçar sua tese são arbitrárias, subjetivas, e em alguns casos francamente errôneas.

Por tudo o que se sabe no terreno histórico, não dá pra cravar com segurança nem que a "Rainha do Céu'' fosse Asherá e não alguma outra deusa, como Astarte. Não dá pra cravar tampouco que no período entre IX e VII a.C. os hebreus ainda não identificavam Iahweh com El. Que dirá imaginar uma tríade divina subordinacionista cultuada oficialmente e em segredo pelo Alto Sacerdócio, em que El era Deus supremo e Iahweh uma divindade nacional que tinha Asherá como consorte.

Se as bases não fossem frágeis o suficiente, Barker piora a situação ao apelar para uma "tradição secreta'' que teria sido mantida depois das Reformas 'monoteístas' de Josias, e perdurado até a Era Cristã.

Ela diz perceber as reminiscências dessa tradição em uma literatura que foi produzida meio milênio depois [em alguns casos, mais de um milênio depois] da Reforma de Josias, como o Livro de Enoch, escritos dos Santos Padres da Antiguidade, e apócrifos cristãos.

Como História acadêmica, o valor do empreendimento está irremediavelmente comprometido. Fica bem melhor no terreno da teologia e das narrativas esotericistas, um tipo de literatura que tem alternativas com credenciais que considero muito mais legítimas do que a imaginação de Margaret Barker.

A busca por ler o cristianismo pelas lentes do judaísmo do Segundo Templo é bastante válida. Ou pelo menos o que deveria ser o culto de acordo com os movimentos religiosos da Palestina daqueles tempos, já que não dá pra apelar para representantes desta ou daquela corrente de modo totalmente impune. [E eu admito considerar muito mais fundamentado ler os primórdios do cristianismo sob a lente de correntes que aceitavam o culto do Templo do que daquelas que o consideravam maculado.]

De modo que Barker se encontra em terreno muito mais sólido. Outros pesquisadoresd já apontaram os vínculos entre a Teologia de São João e os sacrifícios pascais no Templo, das associações da eucaristia com as tradições sobre o maná do deserto e dos sacrifícios incruentos [pães da proposição], e ainda da Liturgia cristã com os banquetes celestes dos anciãos que subiram ao Sinai e com o sacerdócio levítico, com noções de escatologia realizada presentes no primeiro século, ou ainda com o misticismo da Merkabah, ou as visões proféticas de Daniel.

Mas como se comprometeu a apontar a continuidade da ''tradição secreta'' que ela própria reconstruiu, Barker acaba fazendo extrapolações enviesadas e também arbitrárias em cima de textos como o apócrifo Evangelho de Tiago, hiper-interpretaçõs de prováveis rasuras de Manuscritos do Mar Morto, e distorções [problemáticas para uma historiadora que se pretende séria] de escritos de Fílon de Alexandria, sem conseguir manter consistência nem mesmo com suas próprias alegações sobre o culto do Primeiro Templo.

Aliás, a alegação de Barker de que Fílon conheceria os ensinamentos secretos dos Altos Sacerdotes porque ele próprio seria de descendência sacerdotal me faz pensar se ela refletiu sobre as implicações pra suas ideias caso o sumo-sacerdócio e o Sinédrio fossem mesmo dominados pelos saduceus -- que é a hipótese mais sólida diante das evidências que temos.

Desnecessário apontar a polêmica presente em alguns dos escritos cristãos mais antigos [cartas de São Paulo, Evangelhos canônicos, Atos dos Apóstolos] com os saduceus, principalmente sobre a questão da Ressurreição dos Mortos e da existência de poderes angélicos.

Mesmo que Barker apele e tente ver a Ressurreição de Cristo como uma ''ascensão mística'' em que o Iniciado se identifica com ''Poderes Angélicos" -- algo que não se pode extrair dos escritos canônicos, e daí que ela busque fundamentação em escritos gnósticos do século III, como o ''Evangelho de Filipe" --, isso não resolveria o problema dela com os Saduceus, a não ser que se deseje super-interpretar as crenças deles, que mal conhecemos exceto justamente pelo que se costuma dizer nos escritos canônicos, em Josefo etc.

Enfim, se já seria complicado demonstrar o que ela diz ver em apócrifos ou, por exemplo, na Epístola aos Hebreus, que dirá extrapolar isso para uma abordagem da Igreja dos primeiros séculos, daí para uma ''tradição secreta'' mantida pelo Alto Sacerdócio, até chegar no suposto culto triádico subordinacionista do Primeiro Templo, que ainda por cima seria a Tradição hebraica original.

História? Não. Tour de force para construir uma mitologia esotericista um pouco mais competente que a ''média'', certamente mais bem informada, e sem dúvida com intuições interessantes. Mas não passa disso.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A Bíblia Protestante NÃO É a da Igreja Primitiva e a dos Apóstolos

 "Muita gente não sabe, mas a Bíblia usada pelos protestantes é uma tradução de um texto hebraico completamente diferente daquele usados pelos primeiros cristãos e pela maioria dos judeus na Antiguidade Clássica. É o texto massorético, uma versão do Antigo Testamento que se consolidou entre os judeus a partir do século II depois de Cristo. Os cristãos, e a maioria dos judeus, usavam outra versão das Escrituras, a Septuaginta, uma tradução em grego koiné feita em Alexandria a partir do século III a.C. Existem divergências importantes entre a Septuaginta e o Texto Massorético. Diferenças de palavras, de divisão de livros, e até de número de livros [a Septuaginta é maior, contém mais obras]. Estas diferenças não foram causadas pela tradução para o grego no século III a.C. Escavações realizadas nas cavernas de Qumram, perto do Mar Morto, revelaram um conjunto de textos datados dos séculos II e I a.C. Estes textos demonstram que existiam versões das Escrituras em proto-massorético com divergências uma para a outra. Também foram encontradas a Septuaginta e versões em aramaico e hebraico que traduziam a Septuaginta em determinados trechos."




Algumas pessoas se surpreenderam por eu dizer que a Bíblia utilizada pelos protestantes NÃO É a ''Bíblia" [Escrituras] da "Igreja Primitiva", e sim uma versão escolhida e elaborada pelos Rabinos do Judaísmo a partir do século II depois de Cristo. Vou aprofundar o assunto em etapas.



i. E os textos das Escrituras judaicas antes da Septuaginta?


Essa é uma pergunta recorrente, principalmente dentro daqueles círculos que gostariam de ter os ''textos originais'' em mãos. A resposta para ela é simples: por tudo o que sabemos da composição da 'Tanach' [as Escrituras Judaicas], não conhecemos nenhuma versão, cópia, fragmento de texto comprovadamente anterior à Septuaginta.

A tradição judaica assegura que uma cópia das Escrituras [Lei e Profetas] foi trazida de volta para a Palestina no fim do Exílio na Babilônia, no fim do século VI a.C. Acredita-se que cerca de 40 mil judeus retornaram para a Palestina a fim de reconstruir o Templo e o culto religioso.

Pois bem, como atestado pela própria tradição judaica, o hebraico já tinha se perdido como língua comum do povo nesse tempo. A maioria dos judeus falava o aramaico e, com o passar dos séculos, o grego [principalmente em sua versão popular, o koiné]. Só uma minoria entendia o hebraico, de forma que quando as Escrituras eram lidas em público, elas tinham de ser 'traduzidas' e explicadas para quem a ouvia. [origem dos targums, mas não vou me estender sobre isso aqui.]

Essa versão pós-exílica das Escrituras Judaicas é chamada entre historiadores de "Documento Sacerdotal" [ou ''priestly tradition''], pois foi recomposta pelos levitas que passaram a dominar a religião judaica em torno do culto realizado no Segundo Templo. Ela se consolida por volta do século V. a.C.

Ora, não temos nenhuma copia, fragmento ou versão qualquer desse texto. Mas é provável que tenha sido ele o utilizado para traduzir as Escrituras judaicas para o grego a partir de meados do século III a.C. [A versão conhecida como Septuaginta, ou ''Versão dos Setenta", ou ainda LXX.]

De modo que não há nenhuma razão para imaginar que alguma versão em hebraico é mais próxima do texto pós-exílico do que a Septuaginta. E, como vou explicitar ainda mais, a versão usada pela "Igreja Primitiva'' [Era Apostólica, inclusive] era não só a Septuaginta, como o texto massorético é POSTERIOR a ela.



ii. Existia texto em hebraico usado ao lado da Septuaginta?

Existia mais de uma variante correndo pela Palestina dos dois séculos anteriores a Cristo. Provavelmente existia uma versão usada no Templo de Jerusalém, mas que não nos chegou. E existiam variantes conhecidas a partir, por exemplo, das escavações nas comunidades de Qumram, no Mar Morto [a poucos quilômetros de Jerusalém].

Em Qumram foram encontrados mais de 15 mil rolos de papiros com textos datados de fins do século III a.C. até meados do século I a.C. Quase metade deles são textos das Escrituras Judaicas hoje conhecidas como "Tanach" [mas tenham atenção aqui, pois volto a isso mais adiante].

Pois bem, estes textos tem variações importantes quando comparados com os textos massoréticos. E tem variações importantes dentro de seu próprio ''corpus''. Antes da descoberta e da tradução desses manuscritos, a maior parte dos historiadores acreditava na seguinte teoria de transmissão dos textos: uma versão que teria sido traduzida para a Seputaginta; uma versão que teria dado origem ao texto massorético usado pelo Judaísmo Rabínico; e uma terceira versão usada pelos Samaritanos [um problema à parte, que não vou tratar aqui.]

Esta teoria é considerada muito problemática atualmente: a multiplicidade de variantes em circulação na Palestina era MUITO MAIOR do que apenas três versões textuais.

Mais uma observação: cerca de um terço dos manuscritos encontrados são fragmentos e cópias de textos e livros que não fazem parte hoje da Tanach, ou seja, das Escrituras Judaicas, mas que fazem parte de outras versões do cânone do Antigo Testamento. Alguns destes livros estão presentes na Septuaginta e não estão presentes no texto massorético: Tobit, o livro da Sabedoria, o Salmo 151 etc. Alguns não estão presentes nem mesmo na Septuaginta, como o Livro de Enoch.

Isso demonstra que não existia um cânone fechado no Judaísmo do século I. Não existia uma lista de livros canônica definitiva, esse cânone estava aberto a discussões. Quem acha, portanto, que o texto massorético mais tarde consolidado no Judaísmo Rabínico [e depois usado pelos protestantes] é mais próximo de um "cânone judaico'' original está viajando na maionese: não há nenhuma razão para se acreditar nisto.



iii. Por que a maioria dos judeus usava a Septuaginta?

Já respondi em parte a esta questão: com exceção de uma elite, os judeus não falavam nem liam hebraico. A língua comum da Palestina era o aramaico. E a língua franca dos letrados do Império Romano era, principalmente, o grego.

Vou acrescentar mais uma informação: a maior parte dos judeus no século I, o século em que Cristo realizou sua Missão Pública, NÃO vivia na Palestina, e sim em outras regiões dentro e fora do Império Romano.

A população judaica no Império Romano entre os século I a.C e I d.C. gravitava entre 4 e 6 milhões de pessoas. [entre 5 e 10% da população do Império.]. Existiam também judeus no Império ao lado de Roma, o Império Persa.

Pois bem, a população de judeus na Palestina estava entre 500 mil e 700 mil pessoas. Isto quer dizer que apenas entre 10% e 20% dos judeus viviam na Palestina. Os demais habitavam o Egito, a Síria, a Etiópia, a Itália etc. A população de judeus no Egito, por exemplo, era no mínimo tão grande [provavelmente maior] quanto a da Palestina. [no século I a. C, entre 500 mil e 1 milhão de judeus vivia no Egito].

Alexandria era a segunda maior cidade do mundo romano no século I a.C, atrás apenas da própria Roma. Sua população era estimada em cerca de meio milhão de almas. A população judaica da cidade ficava entre 150 mil e 200 mil habitantes, o que a tornava a maior cidade judaica do mundo [Jerusalém, por exemplo, tinha entre 30 mil e 80 mil habitantes nessa época, e nem todos eram judeus.]

Agora, o uso do grego no dia a dia se espalhavam mesmo na Palestina. A língua era comumente falada nas principais cidades da Galileia e da Judeia [e muito menos nas aldeias e no mundo rural]. A Galileia, por exemplo, era região de forte influência helênica. Uma cópia completa dos Profetas Menores da Septuaginta foi encontrada em uma das cavernas de Qumram!

Conclusão: o grego era a língua franca da maioria dos judeus. Era a língua que distinguia os judeus em Roma até o século V depois de Cristo! [a comunidade judaica de Roma se comunicava em grego, e não em latim!] Isso não apenas ajudou a disseminação da Septuaginta: a Septuaginta era uma DEMANDA das populações judaicas.

Além disso, a Septuaginta era venerada pelas populações judaicas, segundo o testemunho de Fílon de Alexandria. Existia um festival anual no porto de Alexandria em que os judeus, e também gregos, comemoravam o local em que a ''luz da Septuaginta" tinha surgido a partir da tradução dos anciãos.

Essas populações judaicas não faziam questão alguma de que o texto fosse em hebraico, nem achavam que isso fosse necessário para que eles se comunicassem com a mensagem divina.



iv. É seguro dizer que a Igreja Primitiva usava a Septuaginta?

É líquido e certo. Por diferentes razões:

a) Todos os livros do Novo Testamento foram escritos em GREGO: as cartas de Sao Paulo, os Evangelhos, Atos dos Apóstolos, as cartas católicas [as epístolas de São Tiago, Sao Judas, de São João e de São Pedro]. O único texto do Novo Testamento que pode ter sido escrito em aramaico ou hebraico é a primeira versão [hoje perdida] do Evangelho de São Mateus. Mas isto é uma Tradição da Igreja que não tem crédito entre os historiadores. Seja como for, o Evangelho canônico de São Mateus é também a versão em grego. Ora, o fato de todos os livros do Novo Testamento terem sido produzidos e copiados em grego indica que eles eram escritos e lidos por comunidades que liam e se comunicavam também em grego.

b) Os escritores cristãos entre os séculos II e V d. C. citavam e defendiam o uso da Septuaginta. E inclusive criticaram os judeus quando os rabinos, a partir de fins do século II e mais acentuadamente no século III, passaram a defender o uso de versões hebraicas [o texto proto-massorético, como vou explicitar].

c) Os próprios textos do Novo Testamento demonstram que seus autores usavam a Seputaginta! Há citações das Escrituras nas cartas de São Paulo que batem perfeitamente com a Septuaginta, mas não com o texto massorético. No Capítulo 7 de Atos dos Apóstolos, Santo Estêvão faz um discurso baseado nas Escrituras Judaicas, e afirma, no versículo 14, que 75 pessoas foram com Jacó para o Egito. Ora, o numero 75 está na Septuaginta, tanto em Gênesis 46:24 quanto em Êxodo 1:5. No texto massorético o número é de 70 pessoas. O autor do Evangelho de Lucas, escrevendo nos anos 60 [ou nos anos 80, segundo os historiadores], usava a versão da Septuaginta. Mais: em 7:43, Santo Estêvão cita o capítulo 5 do livro de Amós, falando do deus Renfão. Ora, no texto massorético, nesse lugar em Amós, o nome do deus é Quinjum! O nome 'Renfão' só se encontra na Septuaginta! São exemplos simples para ilustrar o ponto.

Ou seja, os protestantes não usam a mesma versão do ''Antigo Testamento", ou Escrituras judaicas, que a ''Igreja Primitiva'', que os cristãos da Era Apostólica etc. Eles usam outro texto, que foi adotado pelos Rabinos a partir do século II depois de Cristo.




v. Como surgiu o texto massorético usado pelos protestantes?


A cidade de Jerusalém e o Templo de Jerusalém [o Segundo Templo] foram inteiramente destruídos pelos romanos por volta do ano 70 d.C. como consequência das Guerras Judaicas. Mais tarde, os romanos reconstruíram Jerusalém como cidade romana e deram permissão aos judeus pra que reconstruíssem o Templo [seria o Terceiro Templo]. Mas a Revolta de Bar Kochba, incentivada pelos próprios sacerdotes, levou à expulsão da maior parte dos judeus da Palestina [por volta de 135 d.C.].

A religião judaica teve de ser reconstruída em cima da autoridade dos Rabinos. Esse rabinato se considerava herdeiro das escolas farisaicas da Palestina no século I. Portanto, eles são herdeiros 'espirituais' dos fariseus. O Judaísmo Rabínico nasce a partir da Mishná e, posteriormente, do Talmud, conforme expliquei na outra postagem.

Pois bem ,foram estes rabinos que escolheram uma das variantes em hebraico para ''texto oficial'' e que estabeleceram o cânone judaico -- vamos lembrar que o cânone final dos judeus não estava ainda definido! Essa definição só ocorre no século IV da Era Cristã, quando finalmente se chega a um consenso sobre os 24 livros da Tanach [Escrituras Judaicas].

Voltando ao ponto principal, o texto em hebraico adotado pelos Rabinos é chamado de Proto-Massorético. Não é ainda esse o texto usado depois pelos judeus e pelos protestantes. Explico:

O hebraico não tem vogais. Assim, na hora de entender o texto, as vogais tem de ser inseridas. Não apenas isso, mas também os acentos etc. Qualquer mudança na vocalização do texto pode trazer diferenças de sentido. Os massoretas [os escribas responsáveis pela definição do texto que os judeus passaram a chamar de ''tradicional''] trabalharam nesta uniformização. Martin Goodman, professor da Universidade de Oxford, diz o seguinte:

"Os estudiosos responsáveis pela produção do que ficou conhecido como masorah, ou ''texto tradicional'', trabalharam principalmente na segunda metade do primeiro milênio da Era Comum, a maior parte na terra de Israel, culminando no texto bíblico determinado na Escola de Tiberíades no século X. Suas anotações críticas consistiam em marcar cada lugar onde o que é lido no texto (keri) deve ser diferente do que está escrito (ketiv). Esse processo poderia alterar completamente o sentido aparente de um trecho, lendo (por exemplo) lo (com um vav) significando ''para ele'' em vez de lo (com um aleph) significando ''não'' em Isaías 63:9. Em vez de ler que ''não era nem um mensagem nem um anjo, mas sua própria Face que os salvava", os massoretas entendiam que o texto dizia, "e Se tornou seu salvador. Ante sua angústia Ele se angustiava", com a importante implicação de que Deus sofre com os sofrimentos de Israel".[GOODMAN, 2017]

O trecho citado pelo professor é típico: comparem Isaías 63:9 numa bíblia protestante, que segue o texto dos Rabinos, com o texto nas traduções que seguem a Septuaginta nesse trecho [bíblia Ave Maria, por exemplo]. As implicações são óbvias pra quem quiser refletir minimamente sobre o tema...

Enfim, os massoretas trabalharam em cima do texto em Academias na Palestina e na Babilônia entre o século V e o século X. Só no fim desse período podemos falar do estabelecimento definitivo de um Texto Massorético, seguindo as linhas das famílias rabínicas que dominavam a chamada "Escola de Tiberíades". Só a partir daí ocorreu real homogeneidade de transmissão do texto em hebraico.




vi. Os protestantes e o Texto Massorético

Quando Lutero rompeu com a Igreja Católica-Romana e traduziu as Escrituras para o alemão, decidiu utilizar o texto massoreta dos Rabinos por supor ingenuamente que ela refletia de forma mais exata as Escrituras dos tempos de Cristo.

Conforme argumentei aqui, os protestantes ESTÃO ERRADOS. O Texto Massorético é uma elaboração gradual realizada entre os séculos V e X a partir de uma versão em hebraico chamada de 'proto-massorético', adotada pelos Rabinos nos séculos II e III, e que era UMA DAS variantes existentes na Palestina entre os séculos II a.C e I d.C.

Não bastasse isto, o texto proto-massorético NÃO ERA a versão das Escrituras usada pela ''Igreja Primitiva'' e pelos Apóstolos.

Existe ainda um problema a mais para o protestantismo: os Rabinos que escolheram e elaboraram o Texto Massorético alegavam ser herdeiros das escolas farisaicas. Não preciso nem dizer o que os Apóstolos e o próprio Cristo pensavam dos fariseus, basta ler os Evangelhos, principalmente os de São Mateus e São João.

Por fim, esses mesmos Rabinos que estavam compondo o Texto Massorético elaboravam e ensinavam também o Talmude. Existem trabalhos acadêmicos que demonstram que, no Talmude, Jesus Cristo é retratado como um feiticeiro, que aprendeu magia no Egito, foi corretamente executado, e cuja alma se encontra no inferno [eles descrevem as torturas de Cristo no Inferno].

Nada disso aqui é invenção minha, tudo pode ser facilmente comprovado.

Muitos protestantes acreditam no 'Sola Scriptura', ou nas Escrituras como única regra de fé. Ao mesmo tempo, usam Escrituras que foram elaboradas por autodeclarados herdeiros dos fariseus séculos depois da Ressurreição do Senhor e que NÃO ERAM usadas na ''Igreja Primitiva'', que os próprios protestantes tendem a ver como uma ''era de ouro'' do cristianismo.

Complicado, né?